Para quem já venceu a Palma de Ouro em Cannes e foi nomeado para o Óscar de Melhor Realizador, Gus Van Sant parece estranhamente pouco à vontade perto de jornalistas. Fala devagar, quase sussurando, voz pausada, hesitando na palavra seguinte, por vezes corrigindo o arranque da frase para lhe mudar o sentido, engolindo em seco de seguida. Como se fosse a primeira vez que fizesse um musical em inglês, com um elenco de jovens atores portugueses, sobre Andy Warhol. Surpresa: é mesmo uma estreia para o realizador norte-americano de 69 anos.
Gus Van Sant tinha acabado de mostrar à imprensa quatro cenas — de um total de 17 — de Andy, o musical que abre a temporada no Teatro D. Maria II, em Lisboa, a 23 de setembro, no contexto da 3.ª edição da BoCA — Bienal de Artes Contemporâneas, e que ainda passará por Faro, no Teatro das Figuras, a 16 de outubro, antes de seguir em digressão por 12 cidades europeias. Por outras palavras, o realizador, argumentista, escritor, pintor, fotógrafo e músico norte-americano prepara-se para juntar “encenador” e “dramaturgo” ao já extenso curriculum vitae.
A ideia de criar uma peça é recente, explica Gus Van Sant. Já o tema, Andy Warhol e a cena artística em Nova Iorque nos anos 60, é algo que vem de trás. Mais precisamente, do período entre 1987 e 1990, quando Gus Van Sant co-escreveu com Paul Bartel vários argumentos centrados no célebre artista da Pop Art. A versão que chegaria às mãos da Universal em 1990 retratava três períodos da vida de Warhol.
O realizador queria River Phoenix, o irmão de Joaquin que morreu aos 23 anos de overdose, para interpretar um jovem Andy. Como a Universal não aprovou o financiamento, o argumento voltou para a gaveta e River Phoenix acabaria por partilhar com Keanu Reeves o protagonismo no filme seguinte de Gus Vant Sant, “My Private Idaho” (1991), que ajudaria a sedimentar Gus Van Sant enquanto figura de proa do cinema indie norte-americano da época.
O sucesso mainstream chegaria com “O Bom Rebelde” (1997), escrito por Ben Affleck e Matt Damon. “Finding Forrester” (2000), “Elephant” (2003) e “Milk” (2008) são alguns dos títulos que reforçaram a sua notoriedade nos anos seguintes. O seu filme mais recente, “Don’t Worry, He Won’t Get Far on Foot”, estreou-se em 2018. Ou seja, ele tem andado ocupado, o que ajuda a explicar que nunca mais tivesse olhado para o que tinha guardado na gaveta.
“Não andava a planear fazer nada sobre Andy Warhol, mas nos últimos anos comecei a escrever qualquer coisa que seria para o palco. Foi um pouco inusitado. Escrevera pequenas peças, mas sempre me pareceu que para Andy teria ser algo grande”, recorda.
“Como é que acabei em Lisboa a fazer um musical sobre Andy Warhol? Boa pergunta. Deu-se o acaso de John Romão, o diretor da BoCA, me ter ter ligado quando veio a Los Angeles para dizer que estava interessado em saber se eu teria algum projeto para o palco…”
Com texto, encenação, música e letras de Gus Van Sant, Andy reconstrói o passado de um Warhol em início de carreira através de uma narrativa ficcional baseada em factos reais e de memórias tendo como pano de fundo o nascimento da Pop Art. O realizador — e, dentro de dias, dramaturgo e encenador – aponta os holofotes para o período inicial na carreira do artista. “E mesmo assim há tantas histórias para contar que optei antes por uma espécie de greatest hits de momentos da sua vida no período entre 1959 e 1967.”
A peça está estruturada em 17 cenas. São fragmentos da vida de Warhol, pequenas polaroids, que Gus Van Sant retrata seguindo “quase sempre” uma linha cronológica. “Começamos em 1959 e rapidamente passamos para o plano de Warhol de expor as latas de sopa Campbell com Irvin Blum. Essa exposição foi talvez o momento mais importante na sua vida. Aparecer na cena artística de Nova Iorque com a imagem certa na altura certa impulsionou-o para esta existência de superestrela que ele tanto procurava. De certa forma, ele tropeçou nela. Tornou-se um pintor famoso, mas também lhe interessava dar o passo seguinte, que era fazer escultura. Chegou depois aos filmes com relativa facilidade.”
Tudo isto entra em Andy, que não excluindo a The Factory, o atelier de Andy Warhol que se tornou no epicentro da vida cultural e boémia de Nova Iorque nos anos 60, apenas alude à sua existência. “A The Factory já foi retratada muitas vezes… É quase intocável. Não se consegue transmitir a cena à sua volta a não ser que se tenha ido lá. É muito difícil”, admite.
A atriz Edie Sedgwick, o escritor norte-americano Truman Capote ou o crítico de arte Clement Greenberg — além do próprio Warhol — são algumas das personagens interpretadas por jovens actores portugueses, alguns ainda adolescentes; miúdos com estilo e talento que interpretam em inglês e cantam. John Romão, habituado a trabalhar com adolescentes, ajudou no casting que ainda esteve para ser feito em Los Angeles, com atores americanos, mas os prazos, a Covid e o próprio orçamento levaram Gus Van Sant a trabalhar antes com Carolina Amaral, Diogo Fernandes, Francisco Monteiro, Helena Caldeira, João Gouveia, Lucas Dutra, Martim Martins, Miguel Amorim e Valdemar Brito. “Eles são ótimos. Têm muita experiência, ao contrário de mim (ri-se).”
A escolha de um elenco jovem pareceu natural, explica: “Creio que foi uma forma de nos distanciarmos da realidade de Warhol, o mundo da arte em Nova Iorque e a The Factory. Também nos inspirou aquela citação em que ele diz que no futuro todos os filmes, peças de teatro e séries de televisão seriam interpretados apenas por atores jovens”, recorda, fascinado pelas profecias do artista que se revelariam certeiras. “Ele também disse, em 1971, que os cinemas iam acabar e que veríamos os filmes em casa. As pessoas com quem ele estava duvidaram, mas ele estava certo. Sabia que a qualidade da imagem teria de melhorar, e melhorou. Ele sabia.”
O ensaio para a imprensa decorreu numa fase ainda inicial da preparação, a três semanas da estreia, sem figurinos e parca cenografia. Quatro letras gigantes são empurradas pelo palco. Por vezes soletram a palavra ANDY, outras vezes andam apenas por lá. Quando a peça estrear, estas letras estarão pintadas com diferentes imagens que, por sua vez, serão planos fechados de fotografias de flores, revistas industriais, papel de alumínio e um quadro.
No estúdio onde o ensaio decorreu também não vemos o chão branco que vai cobrir o palco do Teatro Nacional D. Maria II entre 23 de setembro e 3 de outubro, nem os restantes elementos que lhe darão uma aspeto kitsch. “Ainda o estamos a construir”, diz Gus Vant Sant. “A cenografia é bastante elaborada. Vamos ter uma cortina de plástico prateado brilhante. Os figurinos usam cores muito claras. E no fundo vamos ter a imagem de um vison cor de rosa.”
Inspirado por musicais que o realizador descreve como sendo “sérios, divertidos e engraçados, como o ‘The Book of Mormon’”, dos autores de South Park, Gus Van Sant recorda que o guião que passou três décadas na gaveta não era para ser um musical. Isso só surgiu quando começou a escrever a peça. “Foi nos últimos anos. Pensei que a história de Warhol é tão caótica que faria sentido fazer um musical.”
Além de assinar o texto da peça, também escreveu as letras das canções e compôs as músicas. Paulo Furtado, mais conhecido como The Legendary Tigerman, é responsável pela direção musical. “Enviei-lhe gravações das canções que toquei apenas com guitarra para que as pudesse reinterpretar. Ainda mudou alguns acordes. Está quase pronto.” Não espere ouvir algo que se assemelhe a Velvet Underground, que a direção musical levou o realizador num caminho mais próximo de um registo rock e pop usual nas produções da Broadway. O realizador concorda: “Não começou assim, mas evoluiu nesse sentido.”
Será este o início de uma carreira no teatro para Gus Van Sant? “Não sei. Ainda nem terminei de trabalhar nesta peça. Mas trabalhar com o palco tem sido muito interessante e uma mudança surpreendente em relação ao cinema”, admite, antes de revelar as expectativas em relação à recepção do público. “Estou a assumir que o público que venha ver a peça já saberá algumas coisas sobre o Andy Warhol e espero que entrem tendo esses elementos presentes. Depois aqui e ali encontrarão coisas novas, que ainda não conheceriam.”
Para construir o texto Gus Van Sant recorreu à sua própria memória, a livros e a conversas e entrevistas com amigos que tiveram um papel ativo na cena artística de Nova Iorque desse tempo. “Na altura, quando pensava em fazer o filme, conhecemos algumas pessoas que foram importantes para conhecer o Andy Warhol. Pessoas como a [fotógrafa] Paige Powell, com quem continuei a falar durante os 40, quase 50 anos seguintes”, diz. “Nunca o conheci pessoalmente, mas através das conversas com a Paige sinto que o conheço”. No fundo o que vai importar é a escrita, considera. “O sucesso ou falhanço da peça vai dever-se à escrita”.
Gus Van Sant cruzou-se com Warhol uma única vez, no cruzamento da 59th Street com a Madison Avenue, em Nova Iorque, em 1982. “Eu na altura trabalhava em publicidade. Estava na rua e ele passa por mim. Lembro-me que ia a conversar com alguém de fato e que Warhol usava um casaco de ski e que tinha uma mochila às costas. Lembro-em de pensar ‘Oh, ali vai o Andy Warhol’.”
Comissionado pela BoCA, o espectáculo – falado e cantado em inglês, com legendas em português – estreia em Lisboa, no D. Maria II, a 23 de setembro, onde tem marcadas nove apresentações, seguidas de uma outra no Teatro das Figuras, em Faro, a 16 de outubro. Depois a peça vai, com toda a equipa portuguesa, em digressão europeia por cidades como Roma, Amesterdão, Antuérpia, Hamburgo e países como Grécia e França.