Passam 50 anos da edição da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, escândalo literário apreendido e matéria de julgamento em Tribunal Plenário, acusada de ofender o “pudor geral”, a “decência”, a “moralidade pública” e os “bons costumes”. Passa meio século desse serviço que Natália Correia prestou à liberdade.
O projecto de reunir textos “dos cancioneiros medievais à actualidade” considerados malditos pelas regulamentações legais e sociais vigentes foi, segundo a investigadora Isabel Cadete Novais, o aprofundamento de uma empreitada iniciada por Manuel Cardoso Marta, amigo de Natália, a quem a escritora comprara uma generosa biblioteca. Terá sido o jornalista que a iniciara sob o título “O purgatório dos poetas” e após a sua morte o projecto fora recuperado, completado e publicado com outra designação, no ano de 1966, pelas edições Afrodite, de Ribeiro de Mello.
Juntam-se assim dois nomes subversivos nesta provocação bem preparada: o da extravagante açoriana e o do excêntrico portuense Fernando Ribeiro de Mello, o “Editor Contra”, para usar a expressão do título de um livro da autoria de Pedro Piedade Marques. Nesse volume, editado em 2015 pela Montag, descrevem-se assim, com citações do prefácio, as razões da pesquisa: “Esta antologia foi um trabalho de fundo da poetisa, visando ‘exumar do cemitério das obras malditas’ poesias que trouxessem à superfície (e à modorra dos anos finais de Salazar) as ‘recalcadas supurações do instinto’”. O prefácio, “O Cativeiro de Afrodite”, começa por aludir ao facto de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, quando se ocupou das cantigas satíricas dos nosso Cancioneiros medievais, ter declarado que não evitaria as obscenidades típicas do “género Burlesco” dos Cancioneiros, sempre que estivesse em causa apurar a verdade.
Panteão do hedonismo
E que autores figuravam nesse pouco recomendável álbum de família? De jograis de corte e do Abade de Jazente a poetas na altura ainda na casa dos 30, como E.M. de Melo e Castro e Herberto Helder, que escreve em “Ciclo” os seguintes versos:
Escuto a fonte, meu misterioso desígnio
de cantar o amor.
Da tremenda alegria da carne
deve vir o espírito do canto, da vossa
deslumbrante alegria, ó intensas
criaturas solares (…)
De autores do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende até a um António Botto (com dois inéditos) ou a um Luiz Pacheco, cujo “Coro de Escárnio e Lamentação dos Cornudos em Volta de São Pedro tem um inequívoco “Finale, muito católico”:
Assim termina o lamento
pois recordar é sofrer.
Ama e fode.
É bom sustento!
E por nós reza um pater
Mais ou menos no centro deste panteão nacional do hedonismo em forma de verso encontra-se, naturalmente, Manuel Maria Barbosa du Bocage. O texto que antecede o rol de poemas com os quais o bardo nascido em Setúbal em 1765 é representado tem o tom e o desenho próprios da autora de “A Ilha de Circe”: “É com Bocage que a poesia erótica portuguesa se preenche de maior complexidade e explora com a mais refinada ciência poética a versatilidade do Eros proteico”. A nota é rematada com uma referência à contradição que nele se sacudia: “E não é com menor brilho que o poeta celebra ou abomina os transes da luxúria do que aquele amor imaterial que ‘na terra quer imitar o do céu’”.
Daniel Pires, presidente da direcção do Centro de Estudos Bocageanos, vê nestes termos a importância da publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. “Foi um marco relevante por divulgar inúmeros textos poéticos ditos imorais, por ser o corolário de uma ampla investigação, quer em arquivos, quer em bibliotecas, e ainda por revelar inéditos de vulto que se encontravam em colectâneas manuscritas antigas”. Chama a atenção para o prefácio “marcante, nos domínios conceptual e formal”. E para a circunstância decisiva de a iniciativa ter partido de uma mulher, contribuindo para o desmoronamento de um tabu sexista.
Segundo o autor de Bocage, a Imagem e o Verbo (Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 2015), as opções de Natália Correia relativamente a Bocage reflectem o estádio da investigação da época. “A introdução é clara e abrangente e tem o mérito de afirmar que uma parte da poesia de carácter erótico ou pornográfico que lhe é atribuída não lhe pertence”. Considera pertinente a selecção de poemas, realçando a publicação de um excerto de “Cartas de Olinda e Alzira”, “eventualmente o primeiro manifesto feminista português, hino que exorta à insurreição dos sentidos e denuncia uma sociedade anémica e preconceituosa”.
É importante referir que o volume se distingue graficamente, como lembra Piedade Marques, pelas ilustrações de Cruzeiro Seixas e pelos poemas visuais de Ernesto de Melo e Castro e Mário Cesariny de Vasconcelos (reproduções facsimiladas dos poemas “Panasca” e “Praeludium”). Há escolhas, surpreendentes, de textos de Antero de Quental, Camilo Castelo Branco e Fernando Pessoa. E, no grupo dos autores mais recentes à época, estão nomes como João Rui de Sousa e Liberto Cruz. E, mais nova, Maria Teresa Horta.
A autora de Amor Habitado, que aceitou, sem a questionar, a escolha de poema feita por Natália Correia, releva o facto de ser uma mulher a ter o desassombro de assinar a antologia, numa altura em que eram muito poucas as mulheres que assumiam posições de destaque nos assuntos literários. “Era inusitado”. Os escritores, sublinha, na altura muito unidos, colocaram-se todos do lado dela. Com destaque para David Mourão-Ferreira, que escreveu um texto para a badana no qual se podiam encontrar afirmações como esta: “Não ter medo das palavras e não recear as realidades que elas exprimem é, sobretudo, evitar o trânsito pelo consultório do psiquiatra”. Mourão-Ferreira categorizará ainda a “antologia” como “obra de erudição, de criação e de civismo” que haveria de constituir, para as gerações vindouras, um documento indispensável. Mas é provável, anotou, que o nome de Natália também suscitasse nalguns a “sádica nostalgia das fogueiras do Santo Ofício”.
Os “subalimentados do sonho”
Durante muito tempo, recorda Maria Teresa Horta, os censores não se importavam com o género poético. Mas tudo se alterou a partir do momento em que José Carlos Ary dos Santos começou a repetir que a poesia era uma arma. Tal como toda a gente previa – a começar pela própria Natália –, o livro foi apreendido pela PIDE e o julgamento teve lugar no Tribunal Plenário — e não, como aconteceu com o processo das “Três Marias”, num tribunal correcional.
Em Editor Contra – Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite é lembrado o veredicto oficial sobre a “Antologia”: “Apesar do pretensioso prefácio da autora da selecção, eivado de tendências sartreanas e das intenções que daí derivam, não é possível admitir que seja viável a circulação deste livro em Portugal, dado o seu carácter pornográfico”. Foi apreendida e retirada do mercado. Houve buscas da PIDE em casa do editor, da organizadora e de colaboradores. Ribeiro de Mello decide então que deve ser posta a circular imediatamente nas livrarias uma edição pirata e Natália Correia concordou com a decisão. O livro seria apresentado como uma importação do Brasil e assim não teria de passar pela censura. “O autor dessa edição pirata terá sido o livreiro Luís Alves Dias, então a trabalhar no Centro do Livro Brasileiro em Lisboa, que pagou os direitos ao editor e à organizadora para uma edição de três mil exemplares”. Foi esta edição pirata que popularizou a obra e a espalhou.
A edição da obra aconteceu em 1966 mas o julgamento só terminou em 1970, acabando a obra por ser considerada ofensiva dos pudores referidos no início deste texto. A escritora escreveu um violento poema para ler durante a sessão judicial que terminava com os seguintes versos:
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer
O seu advogado, Adelino da Palma Carlos, demoveu-a do gesto. Fernando Dacosta escreve em O Botequim da Liberdade (Casa das Letras, 2013) que o jurista terá feito o comentário entre próximos: “É doida varrida, se o tivesse feito levava uma talhada que não se endireitava!”.
Segundo o relato do Diário de Lisboa de 21 de Março desse ano, acabaram condenados, no julgamento que terminou a 21 de Março de 1970, Natália Correia, o editor Fernando Ribeiro de Mello, a 90 dias de prisão correccional, substituíveis por igual tempo de multa a 50$00 por dia e mais 15 dias de multa à mesma taxa. Também foram distribuídas penas de 45 dias de prisão – substituíveis por multas — para os escritores Luiz Pacheco (que foi dispensado de pagar por causa da sua situação económica), Mário Cesariny de Vasconcelos, José Carlos Ary dos Santos e Ernesto de Melo e Castro. As penas de Natália, Cesariny, Ary dos Santos e Melo e Castro foram suspensas pelo período de três anos. Os livros apreendidos foram declarados perdidos a favor do Estado para serem destruídos.
A terceira edição da “Antologia” surgiu em 1999 com o selo de uma associação entre a Antígona e a Frenesi, quando as editoras cumpriam 20 anos de existência. Luís de Oliveira e Paulo da Costa Domingos justificam-se: “Dois editores, a contrapelo de quem antes e de quem depois tentou disfarçar a festa do corpo, selam, aqui e em público, a sua inabalável amizade, dando, pois, expressão física a um tão forte conjunto de poemas eróticos e satíricos”. O livro fecha com espírito anárquico, apelando ao prazer: “Os editores dedicam o esforço posto nesta edição aos leitores que fazem do erotismo prática viva e satirizam os costumes e a ordem”. Uma dedicatória à altura de Natália.
Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.