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Milton Nascimento Singing
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Bettmann Archive

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Há 50 anos, Milton Nascimento quis fugir do mundo e criou o "Clube da Esquina"

Em março de 1972, Milton Nascimento interrompeu uma carreira de sucesso para gravar com um miúdo de 18 anos. Esta é a história do Clube da Esquina, um álbum basilar da música popular brasileira.

“Quando você foi embora fez-se noite em meu viver”. A delicadeza da primeira frase, com o séquito melódico da Bossa Nova, é um lugar comum reconfortante, o homem solitário a dedilhar um violão. “Estou só e não resisto, muito tenho p’ra falar”. A segunda estrofe destapa o engano, anuncia uma voz a descolar, qual descoberta do Brasil, que estranha dissonância é esta, com tanto de novo como de antigo. “Solto a voz nas estradas/ Já não quero parar”. A canção “Travessia” revela um rapaz de Minas Gerais, entre as cidades e as serras, que subitamente deixou um país boquiaberto com a imensidão da voz, segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1967. O nome é Milton Nascimento.

A única comparação possível, meditam os espectadores, é com Elis Regina, cada vez mais distante do auto-controlo vocal da Bossa Nova. E é mesmo Elis que abraça primeiro o músico mineiro, ao gravar “Canção do Sal”, outra criação inquietante do compositor novato. Deslumbrado, o produtor e arranjador Eumir Deodato, radicado nos EUA, convida Milton Nascimento a gravar um álbum em Nova Iorque, e com uma perninha de Herbie Hancock, apresenta a batucada ao Tio Sam. O Brasil, quem sabe o mundo, estava à mão de semear, bastava-lhe dar um passo em frente. Mas Milton Nascimento não se move à velocidade frenética da restante humanidade, a passada deste calmeirão é vagarosa. O músico sobe a perna e, surpreendentemente, o passo é para trás: recolhe-se em casa, Minas Gerais, sequer continua no Rio de Janeiro, quanto mais Nova Iorque.

“No Rio, não dá pé. Nem nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar do mundo. Sabe como é: a terra, a casa, os amigos, a nossa gente. Isso tudo está aqui em Belo Horizonte”, justifica então o músico ao jornal O Globo, na capital de Minas Gerais. “O que eu quero é formar um outro conjunto, com os meus amigos. Com a turma que tinha a maior fé em mim, quando eu ainda era apenas um cara que tocava, compunha, e cantava músicas: um cara que ainda não tinha feito ‘Travessia’”. O compositor apercebeu-se que seria naquele preciso momento, provavelmente sem retorno, que teria de responder em definitivo à questão: quem é Milton Nascimento?

A capa do álbum "Clube da Esquina", editado em março de 1972

“Cheguei a Belo Horizonte em 1962, vindo do sul de Minas Gerais. Eu tinha vinte anos e ia fazer vestibular para entrar na faculdade. Eu trabalhava como datilógrafo no centro da cidade e passei a frequentar o ponto dos músicos na cidade”, contou ao Observador Milton Nascimento na sua última passagem por Portugal, uma digressão em celebração de um álbum basilar da música popular brasileira, Clube da Esquina, lançado há 50 anos. Uma década antes do Clube da Esquina, o datilógrafo de Belo Horizonte é também músico amador, crooner de bares e contrabaixista de improviso com o amigo Wagner Tiso, com algumas gravações avulsas. No centro da cidade, morava na pensão da dona Benvinda, Edifício Levy, o mesmo prédio onde, durante uma temporada, estava uma família de onze irmãos: os Borges. “O primeiro Borges que conheci foi o Marilton, depois veio o Márcio.” O Márcio Borges insiste com o amigo que as suas interpretações de Bossas e standards são praticamente composição, que ninguém canta daquela forma singular. “Foi Marcinho quem me incentivou a começar a compor, antes disso eu só queria saber de cantar e tocar baixo”. Faltava o estopim para eclodir a revolução: Márcio arrasta Bituca — como Milton é conhecido entre amigos — para o Cine Tupi, onde está a passar “Jules e Jim” de Truffaut. O impacto é avassalador, e no mesmo dia, nasce um compositor. “Quando vi ‘Jules et Jim’, de François Truffaut, me tornei compositor. Porque e como, não sei. Sei apenas que o filme libertou uma coisa que estava presa em mim”.

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Milton Nascimento: “Ganhei muitos amigos, esse foi o meu maior bem”

A magnitude da natureza brasileira estava enclausurada no corpo de um miúdo negro franzino, um paz-de-alma solitário de poucas palavras, abandonado à sua sorte em criança. “Todo mundo sabe que nasci em Três Pontas, Minas”, diz-nos. Um detalhe técnico: Milton Nascimento não nasceu em Minas Gerais, mas no Rio de Janeiro, a mãe morre de tuberculose quando o filho tinha somente quatro anos e, após alguns anos de desamparo, é finalmente adotado pela madrinha Lília, agora sim, em Três Pontas — a mãe “Lilia” é homenageada na única canção do Clube da Esquina composta somente por Milton Nascimento. “Mas pouca gente sabe que eu não entrava no clube de lá, por causa da minha cor. Queria mostrar música, ouvir as orquestras, aprender. Não queriam nada disso”. Impedido de entrar no circuito musical da Três Pontas, o cúmplice de Milton é o vizinho Wagner Tiso, filho da professora de piano, que acompanha o amigo na exploração de música brasileira, hispânica, blues e do jazz. “E foi mais ou menos nessa época que eu descobri Ray Charles, e isso salvou minha vida. Através de Ray Charles descobri que os homens podiam cantar”.

O amadurecimento do cantor culmina, anos depois, em “Travessia”, com letra do poeta Fernando Brant, que conhece enquanto toca com Wagner Tiso no Berimbau Club, à entrada do icónico Edifício Maletta, Belo Horizonte — hoje devidamente assinalado com uma placa a marcar o nascimento do Clube da Esquina. Apesar do sucesso de “Travessia”, e da gravação de dois LPs em nome próprio, Milton Nascimento não consegue libertar-se de Minas Gerais, e volta a bater nas mesmas portas, nomeadamente de Márcio Borges, agora a morar numa vivenda no Bairro Santa Tereza com os restantes dez irmãos. Numa destas visitas, Bituca depara-se com Lô Borges, dez anos mais novo, feito homem, a beber caipirinhas e a fazer cantigas, já a formiga tem catarro. Num golpe do destino, Lô procura o violão, Márcio puxa o bloco de notas, Milton cerra os olhos e começa a cantar: “Venha até a esquina, você não conhece o futuro/ Que tenho nas mãos”.

Nos escritórios da editora Odeon, Rio de Janeiro, explica o projeto: ao invés de mais um álbum em nome próprio, ia gravar, imaginem, um álbum a meias com um moleque desconhecido de 18 anos: Lô Borges. E mais, um álbum duplo, que até então não existia no Brasil. A editora renega por completo a brincadeira, até que, graças a Deus, que nem por acaso é brasileiro, Adail Lessa, membro da direção da Odeon, coloca o seu bom nome em jogo e aprova o projeto.

Que futuro é este que Milton Nascimento tem em mãos, que dá o nome de “Clube da Esquina” e coloca a meio do seu quarto LP? Comecemos pela esquina, entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis, Bairro Santa Tereza, o ponto de encontro do adolescente Lô Borges com os amigos; e no bate papo, o único que consegue competir com Lô Borges em beatlemania é Beto Guedes, um guitarrista rock’n’roll de fartos recursos. Ao contrário dos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil, esta miudagem não se revê na Jovem Guarda de Roberto Carlos, ou na poesia intrincada dos concretistas, é malta descomplicada, querem canções elegantes de letra imediata, que se cole ao ouvido como a leve brisa de Minas Gerais. Em “Para Lennon e McCartney”, novamente gravado por Milton em 1970, escrevem o manifesto: “Sou do mundo, sou Minas Gerais”.

A solução era evidente, segurar o destino pelos cornos, e gravar este instante de harmonia e camaradagem em disco, Milton Nascimento ia-se definir pelas amizades e serras de Minas Gerais. Nos escritórios da editora Odeon, Rio de Janeiro, explica o projeto: ao invés de mais um álbum em nome próprio, ia gravar, imaginem, um álbum a meias com um moleque desconhecido de 18 anos: Lô Borges. E mais, um álbum duplo, que até então não existia no Brasil. A editora renega por completo a brincadeira, até que, graças a Deus, que nem por acaso é brasileiro, Adail Lessa, membro da direção da Odeon, coloca o seu bom nome em jogo e aprova o projeto. O nome da banda estava determinado: Clube da Esquina. Milton Nascimento tenta explicar a novidade inusitada: “Sei lá. Clube da Esquina é um lugar, um ponto de reunião das pessoas que a gente gosta. É só.”

A capa do Clube da Esquina é quase acidental, o fotógrafo Cafi abre a janela do carro, em andamento, pega na câmara e tira uma única fotografia. Estava tudo ali: o verde e amarelo da bandeira brasileira, o pé descalço, e sobretudo, uma amizade inocente entre um negro e um branco, sob o arame farpado da ditadura militar. O âmago de todas as canções de Clube da Esquina é a fraternidade improvável entre Milton Nascimento e Lô Borges, um epifenómeno que ocorre quando os dois amigos começam a compor. “Muita gente, mesmo entendendo das coisas, acha que eu dei tremenda colher de chá ao Lô, ao destacá-lo em meu disco”, defende Milton Nascimento, a responder aos críticos que o acusam de excesso de compadrio. “Primeiro, o disco não é meu só, mas de todo o mundo que aparece na capa, gente que acredito. A ideia foi juntar essa gente num trabalho. Clube da Esquina foi um negócio criado por Lô e por mim”.

Depois da Odeon, faltava Milton convencer os pais de Lô Borges, e depois, o próprio músico adolescente, que não se gravam discos em Minas Gerais. Na condição de ser acompanhado pelo camarada dos Beatles, Beto Guedes, Lô aceita mudar-se para o Rio de Janeiro. Mas a cidade carioca não é dos brandos costumes mineiros, está sitiada pela ditadura, os músicos cabeludos são expulsos dos apartamentos, um atrás do outro,  com direito a visitas ao DOPS, a tenebrosa polícia política brasileira. “Depois que estava mais clara a ideia de fazer o disco do Clube, decidi alugar uma casa na praia de Mar azul, em Niterói, e fomos para lá Lô Borges, Beto Guedes e eu”, recorda Milton, que aluga uma casa em frente ao mar, na vila de Piratininga em Niterói, distante dos olhares censuradores. “Tinha gente na casa o tempo todo, os letristas, os músicos, os produtores, nossa família. E ali a gente passou alguns meses, compondo, tocando, enfim, fazendo o clube”.

A génese das canções de Clube da Esquina nasce na reclusão dos quartos de Bituca e Lô, e só depois, na congregação dos dois compositores em retiro. Um exemplo paradigmático é uma melodia que Lô compõe num único acorde, sem início e fim, que para resultar em qualquer coisa palpável, precisava de uma voz do tamanho da natureza, capaz de transformar poeira em terra: Milton Nascimento. “Tudo que você podia ser” sugere uma canção na simplicidade desarmante do violão de Lô Borges, e confirma a existência na voz de Milton, a alongar-se ciciante: “Com sol e chuva/ Você sonhava”. O protagonista é um “herói das estradas”, que na sombra do regime militar esconde um segredo: “Você tem medo”. A road trip pela estrada é comunitária, segue-se o resto da malta, Beto Guedes num baixo sincopado, Tavito em contraponto nas 12 cordas, a ginga percussiva de Robertinho Silva a impor andamento, e Toninho Horta a eletrificar a Bossa, um João Gilberto em ácidos. No vértice, Milton rende-se em vocalizações que se confundem com a essência da terra, mais velho que qualquer samba. “Tudo que você podia ser” é a primeira canção da viagem metafísica, a bordo do Clube da Esquina.

O mistério das canções está numa dissonância harmoniosa que percorre as vinte e uma faixas, desde “Tudo que você podia ser” a “Ao que vai nascer”. O contraste base é entre a excentricidade de Milton, e a frontalidade pop de Lô, este último, com melancolias à McCartney — “O Trem Azul”. Ao lado do miúdo, está a guitarra prog e hard rock de Beto Guedes — “Trem de Doido”; e a remar em direção contrária, a Bossa de Toninho Horta e Eumir Deodato, ou a canção latino-americana que Milton inclui no cancioneiro brasileiro, afinal estamos no mesmo continente — “Dos Cruces”. E um samba antigo a girar em volta do dedilhado sincopado, “Me deixa em paz”, na voz de Alaíde Costa — quem o sustenta é o carioca Robertinho Silva, percussionista de Som Imaginário, banda que acompanhava Milton em palco. Na banda estavam também Zé Rodrix e Tavito, de viola caipira, gente dada à vida modesta na roça, não tivessem acabado de compor “Casa no Campo”, um clássico popularizado por Elis Regina. Wagner Tiso era o maestro do Som Imaginário, de formação clássica, remete o clube para o barroco indissociável à paisagem de Minas Gerais.

“Gente, eu estou compondo aqui, neste quarto com o meu violão, mas não esqueço da realidade do meu país e do mundo”, garante Milton Nascimento, há 50 anos. “Nordeste, Minas, Vietnam, Irlanda, entram todos os dias neste quarto. São personagens minhas, assim como eu também sou um personagem delas”.

A campestre Minas Gerais está entre o Rio e São Paulo, outrora percorrido pela estrada real da coroa portuguesa, um caminho com séculos de lavoura, mineração e escravatura, onde os quilombos de escravos libertos soavam batucada pela noite adentro. “Minas Gerais é um estado riquíssimo musicalmente, e essa tradição vem desde os primeiros anos. Temos uma cultura popular muito forte, os tambores de Minas são uma herança dos escravos que perdura até os dias de hoje em várias regiões do estado”. Em 1972, Minas Gerais era um estado abandonado, um ponto de passagem entre as duas cidades que escreviam a história, até Milton Nascimento e companhia resgatarem a cultura mineira do esquecimento. “Canto, toco, danço, componho — faço de tudo isso um instrumento só. Para mim, a coisa mais importante é mesmo a música — minha linguagem. Com ele me criei, posso dizer que é até um alimento. Mas não falo só de música, meu trabalho não tem apenas um lado. Falo da vida inteira, do que sei e estou aprendendo, do que vi e ouvi e senti”. A vivência de Bituca entre a gente de Minas Gerais atinge entoações quiméricas em “Os Povos”, são impressões da nação em melodia, como o retrato de “Cravo e Canela”, poema de Ronaldo Bastos.

O carioca Ronaldo Bastos, do coletivo de poesia marginal Nuvem Cigana, era o único letrista do Clube da Esquina que morava a poucos minutos da vila de Piratininga. Numa célebre passagem, ao reouvir as músicas de Milton e Lô, reza a lenda que Ronaldo Bastos escreve de enfiada as letras de Clube da Esquina, a começar pelo lamento de “Cais”. Nesta canção, Piratininga transmuta-se num refúgio diante do mar, um cais ilusório, já que a desgraça permanece fora da praia — “Para quem quer se soltar/ Invento o cais”. Em “O Trem Azul” o cais é um hotel ou comboio, outro refúgio, agora em viagem, mas com a mesma tragédia em cada paragem:

“Quero estar, onde estão
Os sonhos desse hotel
Muito além do céu
Nada a temer, nada a combinar
Na hora de achar meu lugar no trem
E não sentir pavor
Dos ratos soltos na praça”

“Os versos foram saindo assim como se não fossem meus, e a verdade é que escrevo depois de ouvir a música de Milton”, explica Fernando Brant ao jornal O Globo, após o lançamento do álbum. O poeta era correspondente da revista Cruzeiro em Minas Gerais, atento a qualquer desenvolvimento local, como por exemplo, quando um tal de Sérgio Godinho e mais uns quantos são presos em Ouro Preto. A sua primeira letra é um prodígio, “Travessia”, após insistência do amigo Bituca. Ao contrário de Ronaldo Bastos, Brant morava em Minas, e precisava de alguma proximidade com os músicos para dar palavras às melodias. Numa passagem do Clube por Diamantina, em Minas Gerais, Lô mostra-lhe uma melodia juvenil ao piano, sem nome. Da janela do quarto do hotel, em frente a um papel em branco, Brant descreve o cenário:

Da janela lateral do quarto de dormir
Vejo uma igreja, um sinal de glória
Vejo um muro branco e um vôo pássaro
Vejo uma grade, um velho sinal”

Na penumbra estão “homens sórdidos” a montar “um temporal”, que derrubará os “cavaleiros marginais”. “São símbolos ligados à experiência de cada um, que vou colhendo ou observador de amigos e de mim mesmo. Com eles formo uma linguagem contendo determinada mensagem. Na música brasileira, a renovação ficou dependente do simbolismo como forma de dizer as coisas”.

[ouça o álbum “Clube da Esquina” na íntegra através do Spotify:]

Em 1972, a Ditadura Militar estava sob o controle do general linha-dura Emílio Garrastazu Médici, que persiste na imposição do infame Ato Institucional n.º 5, carta branca para perseguir, torturar e matar, críticos do governo, incluindo músicos, com o caso célebre dos exílios de Caetano Veloso e Gilberto Gil. O simbolismo da própria Ditadura Militar é pervertido e arremessado como uma arma pelos artistas e poetas, em “Saídas E Bandeiras Nᵒ 2”, Fernando Brant apresenta a bandeira do Brasil, da ordem e progresso, numa vala de sonhos afogados pelo nacionalismo, os estudantes fuzilados a protestar na Avenida Presidente Vargas:

“Andar por avenidas enfrentando o que não dá mais pé
Juntar todas as forças pra vencer essa maré
O que era pedra vira homem
E um homem é mais sólido que a maré”

“Gente, eu estou compondo aqui, neste quarto com o meu violão, mas não esqueço da realidade do meu país e do mundo”, garante Milton Nascimento, há 50 anos. “Nordeste, Minas, Vietnam, Irlanda, entram todos os dias neste quarto. São personagens minhas, assim como eu também sou um personagem delas”.

O resultado final deste laboratório é um álbum conceptual: a cena são os músicos a percorrer eternamente a estrada, à Kerouac, a viagem faz a vez de remédio santo — “Eu já estou com o pé nessa estrada” — e este escape revela-se, entre linhas, um engodo, somente outra forma de tapar o sol com a peneira. Quando os “heróis da estrada” se apercebem do engano, da lástima do Brasil, submergem em cenários fantasiosos, de solidão avassaladora — “A gente aprende a morrer só/ Meu povo, meu povo/ Pela cidade a viver só”. No entanto, mesmo que ilusória, a viagem é sempre revigorante, e comprova que, ao cantar a liberdade, ainda existe pensamento, um gosto de sol — “Resistindo na boca da noite um gosto de sol”.

O álbum é apresentado em longa temporada no Rio de Janeiro, Teatro Fonte da Saudade; Lô Borges, com 19 anos, assina contrato com a Odeon e lança no mesmo ano mais um clássico, conhecido com o Disco do Ténis; Milton conserva-se definitivamente no imaginário de Minas Gerais para os melhores álbuns da sua carreira; todos os restantes tornam-se nomes incontornáveis da música popular brasileira; e o Clube da Esquina regressa triunfalmente em 1978.

No centro do Rio de Janeiro, Avenida Rio Branco, o clube invade os estúdios da Odeon, de pés descalços cobertos de areia, sem qualquer plano de gravação. Milton Nascimento, acostumado a esta andanças, assume alguma liderança, mas na fita de dois canais, toca quem chega primeiro, ou conseguir solucionar canções sem rumo. Em “Um girassol da cor de seu cabelo”, Lô assume o piano, acompanhado pela gravura impressionista de Márcio: “Vento solar e estrelas do mar/ A terra azul da cor de seu vestido/ Vento solar e estrelas do mar”. E quando a canção está encurralada, Eumir Deodato improvisa um intermezzo, suspende o tempo, e cria uma espiral melódica. As sessões de gravação revelam mais uma camada do Clube da Esquina, de descendência tropicalista, os arranjos com lugar de fala, equiparados aos instrumentos e às palavras. No final de “Cais”, Wagner Tiso afunda a melodia no mar, e em “Um gosto de sol”, compõe uma sinfonia iluminada. Os astros alinham-se em volta do sol Milton, numa leveza meticulosa que custa a crer que foi tudo de improviso, um fenómeno meteorológico que acontece uma vez por cada humanidade.

Em março de 1972, é lançado o Clube da Esquina. “Enfim, um lançamento perfeito da Odeon, que não se descuidou de nenhum detalhe”, analisa O Globo. “É o que de melhor me tem chegado às mãos desde Construção”. Lançado no ano anterior, ainda reverbera Construção, a obra-prima de Chico Buarque contra a Ditadura Militar. E o ano de 1972 seria fértil de mais obras-primas, à cabeça, Transa de Caetano Veloso, e o álbum de estreia dos Novos Baianos. Mas se Transa é um álbum solitário de exílio, e Novos Baianos é a glória da folia alienada, Clube da Esquina são as canções do Brasil em frente ao espelho, tomado pela estrada rumo a melhores dias, em busca do país do futuro.

A profecia é do próprio Clube da Esquina: “Sei que nada será como antes amanhã”. O álbum é apresentado em longa temporada no Rio de Janeiro, Teatro Fonte da Saudade; Lô Borges, com 19 anos, assina contrato com a Odeon e lança no mesmo ano mais um clássico, conhecido com o Disco do Ténis; Milton conserva-se definitivamente no imaginário de Minas Gerais para os melhores álbuns da sua carreira; todos os restantes tornam-se nomes incontornáveis da música popular brasileira; e o Clube da Esquina regressa triunfalmente em 1978.

Hoje, 50 anos depois, em ano de eleições brasileiras, de mais embates sociais e políticos, de tudo ou nada — e no resto do mundo, de guerra e pandemia — celebremos que ainda ainda há um gosto de sol, um Clube da Esquina, um abrigo de braços abertos a todos os refugiados do mundo.

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