As defesas dos principais arguidos do caso Universo Espírito Santo estão a usar todos os meios legais à sua disposição para repor Ivo Rosa como o juiz titular da instrução criminal daquele processo mediático, invocando uma alegada violação do princípio do juiz natural. O problema é que nem o beneficiário dessas diligências (o próprio Ivo Rosa) reconhece razão às defesas: “Deixei de ser o juiz natural para tramitação” daqueles autos, afirma o magistrado.
Em vários requerimentos e comunicações que trocou com o Conselho Superior da Magistratura (CSM) desde junho, aos quais o Observador teve acesso após solicitação formal dirigida ao CSM, Ivo Rosa confirma que foi ele próprio quem quis sair do Tribunal Central de Instrução Criminal, também conhecido por Ticão.
A documentação em causa também comprova que Ivo Rosa aceitou com naturalidade a sua substituição como titular do Juiz 2 do Ticão decidida por unanimidade pelo órgão de gestão de juízes.
Explicador. Houve mesmo uma “remoção ilegal” de Ivo Rosa do caso Universo Espírito Santo?
Mais: Ivo Rosa diz mesmo que, caso soubesse antecipadamente que seria acusado num processo disciplinar “por infrações disciplinares graves” (como aconteceu em junho), ter-se-ia antecipado. “Teria apresentado a minha desistência ao concurso para os Tribunais da Relação e teria apresentado requerimento para a transferência para outros tribunais da primeira instância”. Até porque o seu estado de saúde “desaconselha o exercício de funções num tribunal” em que a pressão e a complexidade dos processos são uma constante”.
Ou seja, teria desistido da graduação em desembargador. Apesar de, sublinha, se considerar “absolutamente inocente”.
“Perdi a competência e deixei de ser o juiz natural para tramitação do caso BES”
As defesas de 10 arguidos do caso Universo Espírito Santo decidiram avançar com um requerimento junto do juiz Pedro Correia, o novo titular do caso Universo Espírito Santo, solicitando que o magistrado declarasse nulas precisamente as deliberações do CSM que o nomearam substituto de Ivo Rosa.
Tudo porque consideram que as mesmas violaram o “princípio do juiz natural (também na vertente da inamovibilidade dos juízes)” e a forma como foi determinada a composição do tribunal. Assim, os dez arguidos entendem que a intervenção do juiz Pedro Correia nos autos do caso Universo Espírito Santo é inválida e todos os atos que praticar nos mesmos serão igualmente inválidos.
Ora, o juiz Ivo Rosa reconheceu ao Conselho Superior da Magistratura no passado dia 5 de setembro que no movimento judicial ordinário o “lugar de Juiz 2, até agora por mim ocupado, foi preenchido por um outro juiz que, por esse motivo, passou a a ser o titular do relativo ao Juiz 2 do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC)”, lê-se na sua comunicação dirigida a Susana Ferrão, vogal do CSM.
“Deste modo, dado que deixei de ser o Juiz 2 do TCIC e o processo em causa está distribuído ao Juiz 2 do TCIC, é meu entendimento que perdi a competência e que deixei de ser o juiz natural para tramitação do mesmo.”
“O juiz natural”, diz assim Ivo Rosa, “para a tramitação do processo em causa será o Juiz 2 do TCIC, dado que na instrução, antes de iniciado o debate instrutório, não tem aplicação ao princípio da plenitude da assistência dos juízes”.
Para além disso, o juiz Ivo Rosa considera que a aceleração processual decidida pelo CSM, que definiu a data de fevereiro de 2023 como o prazo máximo para a conclusão da instrução do caso Universo Espírito Santo, é “impossível” de ser cumprido, “em virtude da complexidade” dos autos.
Só a 6 de setembro, vinte e quatro horas depois da comunicação de Ivo Rosa e com o prévio conhecimento e concordância deste juiz, é que o CSM decidiu duas questões fundamentais no atual momento do processo Universo Espírito Santo:
- afetar Ivo Rosa ao Tribunal Central de Instrução com “o fim de prolatar a decisão instrutória” relativa à Operação O Negativo, uma vez que iniciou o debate instrutório no mesmo processo”;
- e nomear Pedro Correia, que tinha sido colocado como juiz auxiliar no Ticão, como juiz auxiliar de substituição do titular do Juiz 2 (Artur Cordeiro). E afectá-lo em exclusividade ao processo Universo Espírito Santo, retirando-o da distribuição do tribunal.
As duas decisões foram tomadas por unanimidade dos 15 membros do plenário do Conselho Superior da Magistratura presentes na reunião de 6 de setembro.
O contexto das comunicações de Ivo Rosa
Para se perceber o contexto das comunicações de Ivo Rosa com o CSM, é importante recordar que o Ticão tem atualmente nove lugares de juízes efetivos, que se designam de “Juiz 1”, “Juiz 2”, “Juiz 3”, etc. Por exemplo, Carlos Alexandre é o efetivo titular do “Juiz 1”, enquanto que o juiz Ivo Rosa era o titular do “Juiz 2”.
Isto é, foi ao “Juiz 2” que foram distribuídos os autos do caso Universo Espírito Santo em outubro de 2021, e não pessoalmente ao juiz Ivo Rosa. Logo, o juiz natural do processo é quem titular o “Juiz 2” e não um magistrado em específico.
Tendo isto assente, é importante recordar igualmente que o juiz Ivo Rosa decidiu candidatar-se à graduação em desembargador, tendo a sua candidatura sido conhecida em novembro de 2021 e a graduação sido concedida em abril de 2022.
Foi por isso que o lugar de “Juiz 2” — que iria vagar quando Ivo Rosa subisse à Relação de Lisboa — foi colocado a concurso no Movimento Ordinário dos juízes da primeira instância. Vários juízes candidataram-se e o lugar do Juiz 2 foi ganho pelo juiz Artur Cordeiro, que também é presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Devido precisamente a essa comissão de serviço como juiz presidente, Artur Cordeiro foi substituído a 6 de setembro pelo juiz Pedro Correia.
Voltando a Ivo Rosa. A sua promoção a um Tribunal da Relação foi suspensa porque o CSM lhe abriu um processo disciplinar em fevereiro, devido a uma participação de juízes desembargadores da Relação de Lisboa. De forma simples, foram imputadas ao juiz Ivo Rosa várias infrações disciplinares graves, como não respeitar várias decisões da Relação de Lisboa e ter anulado decisões do seu colega Carlos Alexandre sem ter competência para tal.
“Caso tivesse tido conhecimento da acusação, teria desistido” de ser desembargador
Foi devido a esse processo disciplinar (e respetivo congelamento da promoção, imposto pela lei) que Ivo Rosa interpôs um requerimento a 14 de junho a solicitar ao CSM que o transferisse para o Juízo Central Criminal do Funchal, como o Observador noticiou.
Foi nesse requerimento dirigido ao conselheiro Sousa Lameira, vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura, que Ivo Rosa explicou porque razão quis sair do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Além do óbvio desejo de querer ser juiz desembargador, Ivo Rosa apontou uma segunda razão: “O facto de o Tribunal Central de Instrução Criminal, na sequência da recente alteração, ter deixado de ser um tribunal especializado, passando a englobar as competências do tribunal de instrução criminal de Lisboa”.
Por várias vezes, Ivo Rosa manifestou a sua discordância com o alargamento do quadro do Ticão de dois juízes (o próprio Ivo Rosa e Carlos Alexandre) para nove juízes — uma medida que foi elogiada por grande parte da comunidade jurídica.
Como queria mesmo sair do Ticão, Ivo Rosa diz mesmo que, “caso não tivesse ficado graduado para os tribunais da Relação”, iria “concorrer no presente movimento judicial para outros tribunais de primeira instância”.
Certo é que, como o Observador revelou em exclusivo, Ivo Rosa foi acusado de alegadas violações disciplinares graves, tendo o desembargador Vítor Ribeiro, inspetor judicial que lidera a processo disciplinar, proposto uma pena de suspensão.
No seu requerimento de 14 de junho, Ivo Rosa fez uma revelação: “Caso tivesse equacionado um desfecho de acusação” aquando da sua primeira audição no processo disciplinar, “teria apresentado a minha desistência ao concurso para os Tribunais da Relação e teria apresentado requerimento para a transferência para outros tribunais da primeira instância”.
O juiz repete esta afirmação mais à frente no requerimento para enfatizar de que tem noção da gravidade dos factos que lhe são imputados.
Ivo Rosa diz-se “absolutamente inocente” e ficou “surpreendido” com a acusação do processo disciplinar
O juiz de instrução prestou pela primeira vez declarações durante a instrução do processo disciplinar que lhe foi interposto em fevereiro, tendo a sua audição junto do inspetor judicial Vítor Ribeiro ocorrido a 6 de maio.
“Prestei declarações quanto ao objeto do processo, através das quais e de forma devidamente fundamentada, esclareci todos os actos processuais por mim praticados no âmbito das minhas funções jurisdicionais”, escreveu no seu requerimento datado de 14 de junho.
“Expliquei de forma clara, com recurso à lei e à jurisprudência pertinente para o caso, todos os actos processuais praticados e fiquei absolutamente convencido que todas as dúvidas atinentes à minha atuação, enquanto juiz de instrução criminal, estavam dissipadas e que o único desfecho seria o arquivamento do processo disciplinar”, lê-se no requerimento.
“No passado dia 6 de junho, quando já terminado o prazo para o movimento judicial, sou surpreendido por uma acusação, na qual me foram imputadas infrações disciplinares graves”, enfatiza Ivo Rosa.
A dedução da presente acusação, continua Ivo Rosa, “não obstante a presunção da inocência, para além dos efeitos pessoais, emocionais e reputacionais, sobretudo devido à repercussão pública, apresenta também efeitos profissionais imediatos”. Ou seja, a sua promoção à Relação de Lisboa ficou congelada.
Ivo Rosa disse mesmo que “permanecer no mesmo tribunal [Tribunal Central de Instrução Criminal]” que está na origem da acusação disciplinar, “constitui para mim (e creio para a justiça também) uma situação ‘desconfortável’, sobretudo se tivermos em conta o teor da acusação”.
Daí que tenha pedido a transferência para o Juízo Central Criminal do Funchal, pois o congelamento da sua promoção à Relação de Lisboa deveu-se a uma situação (o processo disciplinar) que, diz Ivo, “não me é imputável”.
10 arguidos do caso BES contestam substituição do juiz Ivo Rosa
O CSM não lhe reconheceu razão e indeferiu o requerimento por uma razão formal: Ivo Rosa foi graduado em desembargador e não pode solicitar transferência para um tribunal de primeira instância.
Em vez de o colocar no Funchal, o CSM falou com Ivo Rosa e o magistrado aceitou ficar colocado no Ticão como juiz auxiliar e apenas com um processo em mãos: a Operação O Negativo, cujo debate instrutório já se iniciou por decisão do próprio juiz.
Ivo Rosa diz-se com “capacidade de trabalho limitada” e em “fragilidade emocional”
Tal como o jornal Eco noticiou em fevereiro, o juiz Ivo Rosa ficou de baixa médica para ser operado de urgência ao coração.
No seu requerimento de 14 de junho, Ivo Rosa explicou que a sua saída do Ticão era inevitável, porque o seu estado de saúde “desaconselha o exercício de funções num tribunal” em que a pressão e a complexidade dos processos são uma constante”.
Na sua comunicação de 5 de setembro ao CSM, o magistrado voltou a abordar a questão de saúde para esclarecer o órgão de gestão de juízes que a sua “capacidade de trabalho e dedicação ficou muito mais limitada”, o que o “impossibilita uma dedicação ao trabalho por longas horas e em períodos de final de semana, como acontecia até então.”
O que, no entender do juiz, é igualmente incompatível com o stress próprio do trabalho que caracteriza o Ticão — o tribunal que costumam receber os processos mais complexos da criminalidade económico-financeira.
Acresce que Ivo Rosa esteve em gozo de férias até esta quarta-feira, dia 28 de setembro, o que impossibilitou qualquer tramitação no processo Operação O Negativo, “bem como a eventual realização das diligências agendadas no processo BES para os dias 27 de 28 de setembro”.
Ivo Rosa sublinha ainda as consequências do processo disciplinar na sua vida. “Com a gravidade das imputações aí constantes, conjugado com a repercussão pública da situação veiculada pela comunicação social, e por considerar que estou completamente inocente quanto ao teor das mesmas, tudo isso conduziu a uma situação de bastante fragilidade emocional”.