Jovem, português e considerado pela revista Fortune um dos talentos (sub-40) mais promissores no mundo financeiro, Diogo Mónica inscreveu há poucos dias o seu nome na história das criptomoedas. A empresa de que é co-fundador e presidente, o Anchorage Digital Bank, obteve a primeira licença dada pelo regulador financeiro dos EUA para operar como um banco que lida exclusivamente com a bitcoin e quase todas as outras criptomoedas – um mercado que superou recentemente um bilião de dólares.
“Já ninguém pode ignorar a Bitcoin. É demasiado grande“, diz Diogo Mónica, em entrevista ao Observador por videoconferência. Os reguladores não podem ignorar as criptomoedas – a licença dada ao Anchorage comprova precisamente que não estão a fazê-lo – e os bancos tradicionais (potenciais clientes da empresa de Diogo Mónica) também têm de tirar a cabeça da areia e oferecer produtos de criptomoedas aos seus clientes, caso contrário vão perdê-los – “as alternativas são demasiado fáceis, estão a um clique de distância”, diz o português, que se doutorou no Técnico, em Lisboa, antes de “dar o salto” para os EUA. Entretanto, abriu no ano passado um escritório no Porto e quer “duplicar ou triplicar” a sua dimensão em 2021.
O que é o Anchorage Digital Bank, o que é que faz?
O Anchorage é uma plataforma digital que permite a outras instituições criar produtos em criptomoedas e acaba de se tornar a primeira empresa do mundo que lida essencialmente com criptomoedas a ter uma licença para operar como um banco, por parte do regulador federal nos EUA. Foi um enorme passo para esta indústria, porque é a primeira vez que o governo federal dos EUA diz, inequivocamente, que ‘a custódia de criptomoedas pode ser feita com esta regulamentação e aqui está uma empresa que o pode fazer‘. Finalmente houve preto no branco, já que até agora foi sempre uma “área cinzenta”.
Mas trabalham para quem? Quem são os clientes?
Trabalhamos só com outras instituições, não trabalhamos com retalho [investidores individuais]. Ajudamos as outras instituições a criarem produtos financeiros em criptomoedas e oferecê-los aos seus clientes. A nossa raiz é tecnológica – não há criptomoeda sem a tecnologia associada à proteção de chaves privadas [digitais] – mas temos a componente de serviços e uma shell (carapaça) que é o banco.
Que tipo de produtos?
Produtos semelhantes aos que qualquer banco fornece, mas em criptomoedas. Fazemos custódia de criptomoedas, compra e venda, fazemos empréstimos, trading (operações de mercado), aconselhamento, etc – fazemos tudo isso em cima de uma plataforma que permite às outras empresas criarem produtos financeiros.
Como é que podem funcionar, na prática, com um cliente (institucional) em Portugal, por exemplo?
Um banco em Portugal poderá estar a ver o Paypal nos EUA, por exemplo, a começar a vender criptomoedas como a Bitcoin ou o Ethereum – a ter muito sucesso na venda a retalho – e apercebe-se que os millennials gostam muito de criptomoedas e que vai perder essa vaga se não adicionar isso à tua linha de produtos. O que o Anchorage fará, num caso prático como esse, é ajudar o cliente – o banco – a adicionar essa linha de negócio à sua atividade.
O vosso contributo, num caso desses, é técnico?
Em parte é técnico, com a nossa plataforma, a forma como podemos integrá-la nos seus serviços. Mas o mais importante para as instituições (muito mais do que para os consumidores) é perceber qual é o regime de regulação – e é por isso que para o Anchorage é tão importante estar ao mesmo nível (regulatório) que os outros bancos. Com esta licença, em termos regulatórios passamos a estar ao mesmo nível que o Bank of America ou que o Goldman Sachs. Como somos um banco, se um banco como esses quer fazer uma colaboração, se quiser ser nosso parceiro, usar a nossa plataforma, torna-se muito mais fácil porque é uma relação de banco-para-banco.
Até esta decisão do regulador, ou seja, até à semana passada, isso não existia? O que é que vos deu vantagem para serem os primeiros? Claramente haverá outros a querer…
Não, não existia uma instituição – um banco – que tivesse não só a tecnologia necessária como a regulamentação, muito clara, de forma a permitir que se colabore. Há muitas instituições que não estavam a participar em criptomoedas explicitamente porque não havia clareza na regulamentação – agora passam a poder fazê-lo. Da nossa parte, já tínhamos uma instituição fiduciária, no Dakota do Sul, em operação há dois anos – centenas de clientes, milhares de milhões de dólares em custódia e a serem transacionados através da plataforma. Ou seja, quando fomos ao regulador eles viram uma empresa a operar, com provas dadas e com a melhor tecnologia.
A ideia é que um dia eu possa comprar bitcoins ou outras criptomoedas no meu banco habitual – que vos teria como parceiros, por exemplo – em vez de usar, por exemplo, uma das várias wallets digitais que existem, como a Coinbase ou a Bittrex?
Exatamente, porque até agora sempre que fosse comprar bitcoin estaria a comprar através de uma entidade não regulamentada ao mesmo nível dos bancos, com os mesmos níveis de capital, a mesma regulação – estaria sempre a lidar com uma empresa nascida num contexto de ausência de regulação específica, permitindo-lhes fazer custódia e compra e venda. A prazo, empresas como a Coinbase ou a Bittrex ou fazem o mesmo caminho que nós fizemos ou, então, terão de se associar a uma empresa como a Anchorage.
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O facto de o regulador ter dado esta licença – neste caso, a vós – o que é que isso nos diz sobre a forma como os reguladores estão a olhar para as criptomoedas e, no fundo, para o que poderá ser a “legitimação” (ou não) destes instrumentos? E porquê agora?
Acho que isto mostra que os reguladores estão a ir na direção certa. Porquê agora? Penso que tem muito a ver com a valorização das criptomoedas: pela primeira vez o valor do mercado das criptomoedas ultrapassou um bilião de dólares. Até agora, os reguladores podiam olhar para as criptomoedas e dizer que eram irrelevantes, que não era preciso regular porque era uma coisa pequena. Quando chegamos a um bilião de dólares, já não podem dizer isso – é demasiado grande para que eles o possam ignorar.
Tornou-se obrigatório ter uma regulação…
Para eles, é muito melhor que haja um enquadramento que permita que empresas como a Anchorage – que têm a tecnologia e têm vontade de serem reguladas, de estar debaixo da alçada deles – do que não se pronunciarem sobre este assunto e terem este mercado a crescer sempre em “áreas cinzentas”. Se os reguladores demorassem demasiado, quando isto crescesse ainda mais eles já não teriam capacidade para dizer às empresas ‘venham por aqui, que por aqui é o melhor caminho’ ou, sequer, para evitar que estas empresas inovadoras já tivessem sido empurradas para fora dos EUA. E isso pode acontecer, porque tens a China a fazer rápidos progressos nas divisas digitais e tens os EUA e a Europa a ficarem para trás.
É diferença entre ver as criptomoedas como uma ameaça ou um complemento ao dinheiro tradicional?
As criptomoedas são uma alternativa ao mercado financeiro tradicional. E há muitas vantagens em ter alternativas, competição. Se as pessoas não tiverem competição, ficam paradas. Nos EUA temos uma série de incumbentes que se protegem uns aos outros e que não deixam ninguém entrar – e não inovam nada. As fintechs tentam comer mas têm muitas dificuldades em quebrar as barreiras que existem. É aí que surgem as criptomoedas, a criar um sistema alternativo que irá contribuir para criar concorrência – e isso só ajudará a proporcionar melhores produtos para os consumidores.
Em 2017 ou 2018 ouvimos o presidente do JPMorgan dizer que isso da bitcoin e das criptomoedas era coisa de bandidos. Há poucos dias vimos a área de research do mesmo banco a dizer que o influxo de investidores institucionais pode levar a bitcoin a aproximar-se dos 150 mil dólares. O que mudou nestes anos, além da valorização do mercado?
Além da valorização do mercado, temos agentes diferentes a entrar neste mercado. Em 2017 a subida do preço foi principalmente liderada pelo retalho, consumidores comuns que com criaram, de certa forma, uma bolha – e quando é assim, podemos estar a falar de investidores menos sofisticados e aí é mais fácil descartar como uma coisa não-sofisticada…
Ou, mesmo, criminosa…
Sim, mas essa narrativa em 2017 já tinha morrido um pouco. É uma ideia errada achar que é com bitcoin que os criminosos se safam, a bitcoin é a pior coisa que eles podem utilizar porque não é anónima, é pseudónima. É muito fácil rastrear todas as transações que levaram até lá. Até para os reguladores é muito mais fácil para eles saberem que transações estão a ser feitas, em criptomoedas, em tempo real, do que nas notas e moedas tradicionais.
Dizia, então, que na escalada dos preços em 2017 foram investidores de retalho. E agora, quem é que está a puxar novamente pelos preços, até estes novos recordes?
Agora, são as instituições. Estás a ver investidores extraordinários como o Paul Tudor Jones e Stanley Druckenmiller a dizer que a bitcoin é, efetivamente, um ativo que protege contra a inflação; que é, efetivamente, uma reserva de valor… A bitcoin tem, cada vez mais, uma função semelhante à do ouro, e é impossível ignorá-la. Os argumentos são tão fortes e os seus defensores são tão prestigiados que o presidente do JPMorgan já não pode dizer que é o “retalho burro” que está a comprar – não é.
Mas, insistindo, o que é que mudou para que eles [os investidores institucionais] tenham entrado neste mercado?
Penso que em 2017 se superou um patamar que aguçou o interesse das instituições e durante os três anos seguintes tiveste muita educação. Em 2017 as pessoas perguntavam o que eram criptomoedas, o que podiam fazer nessa área, e hoje essas mesmas instituições vêm com ideias muito concretas sobre os negócios que querem construir e de como os podemos ajudar. O interesse foi aguçado em 2017 e, como é natural em grandes instituições, demoraram dois ou três anos a ficar confortáveis.
Há uns anos, por alturas dos problemas com a bolsa de criptomoedas Mt.Gox, um banqueiro português, perguntado sobre o blockchain e as criptomoedas, disse que “isso era tudo muito bonito mas que tinham desaparecido umas centenas de moedas e meses depois ainda andavam à procura delas”. É uma perceção errada?
Não sei se é uma perceção errada… O que motiva a existência de empresas como a Anchorage é que, de facto, isto é tecnologicamente complexo. Nós estamos no mercado há três anos, com um track record impecável, nunca houve problemas – e, tal como a Anchorage, há outras empresas competentes que estão a ajudar a deixar para trás essa narrativa.
Mas há, também, um instinto de sobrevivência por parte dos bancos, que estão sempre a pedir uma regulação equivalente às fintech de modo a que a sua posição não seja posta em causa?
Há sempre uma defesa do status quo, porque isso beneficia os incumbentes, em todo o lado é assim. Os bancos têm muitas formas de inovar, criando spinoffs – e temos visto os bancos a fazerem isso, a criarem pequenas empresas subsidiárias que operem com a mesma carga regulatória que é pedida às empresas fintech.
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Os bancos arriscam perder clientes se não lhes oferecerem serviços de criptomoedas, desde logo a capacidade as comprarem através deles?
Sem dúvida, sobretudo porque as alternativas são muito fáceis de usar, estão a um clique de distância. Faz sentido ter criptomoedas como parte de uma carteira de investimentos moderna. Da mesma forma que tentamos diversificar entre ações, obrigações ou imobiliário devemos olhar, numa ótica de diversificação, apostar nas criptomoedas como um ativo que não está correlacionado com os outros mercados normal, o que é muito importante. Além disso, é uma aposta no futuro, é uma aposta na Internet, num ativo que tem confiança a nível mundial e um ativo que nenhum banco central pode “imprimir” mais. Nos EUA, 30% de todos os dólares em circulação foram “criados” pela Reserva Federal em 2020 – a expansão monetária que está a acontecer nos EUA, na Europa, um pouco por todo o mundo, faz com que as nossas moedas governamentais estejam a perder a confiança. Se precisas de um ativo para te proteger dessa inflação, um ativo que não pode ser replicado, então a bitcoin acaba por ser uma aposta perfeita. Uma pessoa comum deve aplicar 1% a 3% dos seus investimentos em criptomoedas. Comprar e não pensar ativamente nisso, depois – é muito volátil, mas com muito potencial de crescimento.
Quais são os planos de expansão da Anchorage, no imediato?
Em 2020 tivemos uma expansão muito grande da empresa, mesmo com a pandemia. Temos quatro escritórios: a sede na Califórnia, um em Nova Iorque, um em Sioux Falls (Dakota do Sul, porque era lá que tínhamos a licença original) e, este ano, abrimos escritório no Porto, com 15 pessoas. Planos para 2021? No ano passado, finalmente, abri um escritório no Porto e este ano estou a pensar duplicar ou triplicar o tamanho desse escritório. Cresci em Portugal, conheço o talento português, sei as empresas que já estão a ser criadas na área das criptomoedas e sinto que tenho uma vantagem – um “segredo” – que é saber o tipo de cultura e o talento que temos em Portugal nestas áreas digitais. Gostava de ter apostado mais cedo no escritório no Porto.
Querem duplicar ou triplicar o escritório? Mas o que fazem lá as pessoas?
Trabalham totalmente em produto – não temos departamento de vendas nem contact center em Portugal. É puramente produto de engenharia e design. Apesar do enfoque nos EUA, que é onde está o maior mercado de criptomoedas, já temos operações na Ásia e na América do Sul, bem como na Europa. E queremos crescer na Europa, para ter mais bancos a usarem a nossa plataforma.
E o que será a Anchorage daqui a 5 anos? Uma grande empresa do setor? Uma empresa cotada? Já foi comprada por uma “gigante” qualquer da área tecnológica ou financeira?
Não… Já tivemos muitas ofertas para comprar e se fosse para vender a empresa já o tínhamos feito, numa das ofertas que tivemos. Admito que possamos cotar ações em bolsa, um dia, se fizer sentido. Mas que seja independente… Eu gosto de contar a história do BNY Mellon, um banco que foi criado por um dos “Pais Fundadores” dos EUA, Alexander Hamilton – um banco que já tem 300 anos de história. As criptomoedas estão a criar uma oportunidade para criar entidades grandes e duradouras.
Uma empresa pioneira fundada "por necessidade"
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Diogo Mónica é co-fundador (ao lado de um norte-americano, Nathan McCauley) e presidente do Anchorage Digital Bank. Estava a fazer o doutoramento em ciências computacionais no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e foi aos EUA fazer umas palestras – “e houve pessoas da Google e do Facebook que vieram falar comigo e que me puseram a ideia na cabeça de ir para os EUA”.
Acabou por ir para os EUA, para gigante emergente nesta área – a Square – que na altura tinha 30 funcionários (fundada por Jack Dorsey, criador do Twitter). “Não quis ir para uma empresa muito grande, onde vou ser uma gota num oceano de engenheiros de segurança informática – quis ir para uma empresa menor onde poderia ter impacto em tudo”. Foi para São Francisco, aterrou num domingo às 11 da noite e na segunda-feira de manhã estava a trabalhar nos escritórios da Square.
Esteve quatro anos na Square, liderou equipas na parte da segurança e foi aí que conheceu o seu sócio na Anchorage – “entrámos na mesma semana” e quando Diogo Mónica se mudou para outra empresa, a Docker, foram juntos também, sempre com a ideia de um dia criarem a sua empresa.
A Anchorage “foi criada por necessidade”. Diogo Mónica sempre trabalhou muito com chaves digitais privadas e houve um fundo que o contratou porque tinha perdido a password de uma carteira bitcoin que na altura valia na altura 1,5 milhões de dólares – “oferecemos-te 20% se conseguires quebrar e entrar”. Conseguiu, e depois dessa vieram muitas outras oportunidades semelhantes o que o levou a ter a ideia de criar uma plataforma dedicada a isso.