Caixas de madeira vermelhas com o carimbo “fragile”, escadotes, fitas métricas e quase 30 trabalhadores atarefados compõem o cenário da montagem daquela que é uma das exposições mais aguardadas do ano em Serralves. A artista é Joana Vasconcelos e isso parece justificar a azáfama que se vê nos corredores durante esta semana. Foi em 1996 que aqui se apresentou pela primeira vez, na mostra “Mais Tempo – Menos História”, onde no parque expunha a instalação “Trianons”, uma peça feita com fitas mosquiteiras de PVC, ferro pintado e uma rede tremida, inspirada nos famosos edifícios Grand Trianon e Petit Trianon. Este foi apenas o ponto de partida de uma viagem pelas artes plásticas e de uma carreira que ultrapassou fronteiras.
As suas obras de grande escala estão “cheias de portugalidade”, diz-nos, de significados e de uma dose generosa de loucura. Cada peça que imagina é construída com objetos do quotidiano, tem luz, som, cor e movimentos capazes de captar as atenções dos curiosos. Prova disso, é o facto de já ter dado nas vistas na Bienal Internacional de Arte de Veneza ou no mítico Palácio de Versalhes, onde em 2012 foi a primeira mulher e mais jovem artista a marcar presença.
No ano passado, foi a primeira portuguesa a expor em nome individual no Museu Guggenheim de Bilbau, com a mostra “I’m Your Mirror”, visitada por mais de 600 mil pessoas. No Porto, esta mesma exposição será composta por mais de 30 peças icónicas da sua obra, datadas desde 1997, distribuídas pelo museu e pelo jardim de Serralves, onde podem ser vistas até 24 de junho. “Gosto de exposições que se prolonguem no tempo”, diz a artista referindo-se às cinco obras expostas no exterior, que, segunda ela, irão alterar-se consoante a luz do dia ou a folhagem das árvores. Resta-nos esperar, para ver. A inauguração está marcada para segunda-feira, dia 18.
Qual é a sensação de regressar ao Porto e a Serralves?
É a sensação de terem passado muitos anos, uma sensação estranha porque quando eu saí daqui só tinha uma peça, mas tinha imensa vontade de ter um corpo de trabalho, construir uma obra, e a verdade é que agora volto com essa obra construída. Nem damos tempo passar, vamos fazendo uma coisa e depois fazendo outra, de repente “oh estás aqui outra vez!”, passou tudo muito rápido.
Que relação tem com a cidade do Porto?
Tenho toda a relação, a minha família é daqui. Significa uma coisa engraçada: se não tivesse acontecido a guerra colonial e o facto de a minha família ter saído daqui do Porto para Moçambique, eu eventualmente teria nascido aqui. Tenho cá a minha bisavó, a minha avó, o meu pai, primos… Venho cá com alguma regularidade e vai ser muito giro, porque é voltar a uma cidade que é minha também, da qual eu faço parte, com fortes laços familiares desde sempre.
Das mais de 30 peças em exposição, tem alguma preferida?
A máscara (“I’ll Be Your Mirror”, 2018) é sem dúvida a peça que dá mote a esta exposição. Foi feita para o Guggenheim, em Bilbau, e é importante porque resume no fundo esta ideia de ao fim de tantos anos tirar a máscara e mostrar quem sou, mostrar as múltiplas dimensões e personalidades que me compõem. Por isso é que é feita com uma série de espelhos, mais de 200, que representam essas essas múltiplas identidades e dimensões que depois acabo por desenvolver ao longo de uma carreira.
De que forma é que o espaço expositivo de Serralves se relaciona aqui com o seu trabalho?
É sempre um diálogo que se cria entre a obra e o lugar e este espaço é muito particular e característico, tem um lado muito pessoal e íntimo até, é uma espécie de casa. Em termos de museu, não é nada um museu comum, de grande rasgo, é um museu também ele um pouco casa. É gira essa sensação de te sentires à vontade, de ser acolhedor.
Como está organizada a mostra? Qual o percurso ideal para a conhecer?
Há um percurso muito claro que começa lá fora com a peça “Portugal a Banhos”, de 2010, [que será montada no separador na Avenida Marechal Gomes da Costa] e depois o jardim tem o solitário [um anel feito de jantes douradas e copos de whisky de cristal], os castiçais [feitos com garrafas de vinho], o bule [em ferro forjado] e os sapatos [uns stilettos construídos a partir de panelas e tampas de aço inoxidável]. No interior começa com a peça “Noiva”, [um lustre com 14 mil tampões femininos] que será montada no hall de entrada e por aí fora…
Tem noção da importância deste regresso? Há quem diga que é mesmo o evento do ano.
Espero bem que seja! Eu não faço as coisas por isto ou por aquilo, faço porque que sinto que tenho de fazer e porque dentro da minha verdade e daquilo que eu sou faz sentido fazê-lo. Obviamente que eu comunico com o meu país e com as raízes que eu tenho, e a minha cultura e de onde sou, e portanto, eu vou beber aquilo que sou. A pressão é uma coisa exterior a mim, nunca pode influenciar o meu trabalho. A minha pressão é fazer bem o meu trabalho, é atinar com as peças e fazer com que as peças sejam boas e resultem. O que acontece de forma exterior ao criador não pode ser controlada, não podemos achar que temos mão nisso, porque não temos, é impossível. Se vão passar muitas pessoas ou não por Serralves, se vão ou não gostar, é impossível queremos controlar isso, nem vale a pena. Eu faço as coisas com verdade e sinceridade, e depois logo se vê o impacto que isso tem. Se for bom, muito bem, se não for bom, muito bem também.
Por que razão acha que as suas peças comunicam tanto e criam tanto impacto nas pessoas?
Eu acho que as peças são feitas com muita verdade e sinceridade e são relacionadas com coisas que toda a gente conhece, como o doméstico, as famílias, as nossas heranças… Eu, no fundo, trabalho a um nível muito direto, sem esquemas, mas depois o resultado tem uma profundidade que cada um lhe queira dar. Essa profundidade tem a ver com a idade de quem vê, com a experiência, o background de quem visita. Eu falo e desenvolvo aqui alguns temas bastante complexos e difíceis até de falar, mas depende muito do background, daquilo que as pessoas trazem consigo. Por exemplo, se olharmos para a peça das Nossas Senhoras de Fátima e pensarmos num sentido religioso e católico, é uma peça que fala da espiritualidade e da forma como a vemos em Portugal, como é que nós nos revemos no fenómeno de Fátima ou não. Mas se a a pessoa que aprecia a obra não é religiosa, provavelmente olha para aquilo e pensa no consumismo à volta de Fátima, e de como aquele local é um centro comercial. Portanto, depende do ponto de vista de cada um, depende sempre de quem vê e daquilo que lhe forma o olhar. Se estiver em causa uma família muito religiosa, em que toda a gente vai a Fátima todos os anos, é provável que veja a minha peça como um altar, se se tratar de uma pessoa completamente ateia, vai ver aquele trabalho como um negócio. Essa dualidade existe e faz parte da minha obra. Como cada um vai ver a minha obra? Não vai depender de mim, mas sim do público. E o público quando é variado encontra na obra um espelho da sua experiência, um reflexo.
O humor e a crítica são ingredientes essenciais no seu processo criativo?
Depende de quem vê o meu trabalho e se vê o mundo assim. Tem a ver com quem somos, o que fazemos, se temos um olhar crítico sobre a sociedade, se gostamos de ver o lado risório das coisas… mas há quem olhe para a minha obra e não ache nada disso.
Mas lida bem com a crítica?
Tanto faz. Quando crio um espaço para que a interpretação exista, significa que eu posso pensar assim, tu assado e ele cozido. E isso é que é interessante, a criação desse espaço, dessa oportunidade, onde a interação e a comunicação acontecem. Agora, se tiver uma peça que é uma coisa, e sobre essa mesma peça toda a gente vê precisamente a mesma coisa, então a seguir não acontece nada. Nas minhas peças pode vir a neta de 8 anos e a avó de 80 e vão falar necessariamente de coisas totalmente diferentes, uma gostou de uma peça e outra achou piada a outra, e depois ainda vem a mãe e a tia. Portanto, abre-se um leque e isso é o mais interessante ao criar um espaço para as pessoas pensarem sobre esses temas e até sobre elas próprias.
No ano passado Serralves passou por um período conturbado com a demissão do diretor do museu, João Ribas. Como viu e reagiu a esta polémica?
Eu ando de museu em museu pelo mundo, entram diretores, saem diretores, uns são polémicos outros não são, e as vezes há grandes dramas. Ainda agora na Tate Modern a saída do Nicholas Sarota foi um grande drama. O meio artístico é como todos os outros meios, tem uma historia própria, tem um grupo social, tem uns mais importantes que outros, há uma espécie de elite e, como em todos os universos, há tricas e histórias, mas nada disso tem importância porque os museus são as catedrais do meio artístico e por isso vão existir muito além de qualquer artista ou diretor, e sobrevivem sempre a isso. Porque o valor mais alto é o facto de Serralves não ser uma estrutura do Porto com umas tricas, mas sim um museu de arte contemporânea numa rede internacional de museus. Pertence ao mundo de arte contemporânea ao qual eu também pertenço e sobre o qual as pessoas pensam: “OK, em Portugal vamos expor em Serralves”. É visto como parte de uma teia e isso é muito mais importante do que qualquer outra história e é sobre isso que nos temos que concentrar. Não interessa se houve um diretor ou uma polémica, isso só vai denegrir a imagem de Serralves no panorama internacional. A imagem da instituição, que é a imagem de um país e de uma classe, tem de ser mantida, bem tratada e estimada.
Estando lá fora, sentiu essa imagem manchada de alguma forma?
Sim, tive pessoas a fazerem-me perguntas: “Então o que se passa lá em Portugal?”. Têm de perceber que em termos internacionais há um valor muito mais alto que as questões pessoais, que é a instituição. Esta instituição representa o nosso país e como tal tem de ser mantida assim, com qualidade, com profissionalismo e com originalidade, que é fundamental neste meio.
Como artista, já se sentiu afetada pela troca de diretores?
Sim, eu trabalho em muitos palcos internacionais e não é a primeira vez que estou num sítio onde trocam diretores, estas coisas acontecem, mas isso não impede que o funcionamento não seja mantido com profissionalismo. É para isso que há equipas, e há uma excelente equipa em Serralves, que manteve a coisa a funcionar. E é isso que tem de acontecer, porque as histórias pessoais não têm importância nenhuma numa estrutura deste tamanho. Nem deviam ter, dá-se demasiada importância a isso, fala-se demasiado disso.
2019 está a começar, que ano vai ser este para si?
Ui, este vai ser um ano… eu só queria parar um bocadinho no meu ateliê durante uns tempos. Tem sido a loucura, nós viemos de Paris, daqui vamos a Colónia, Genebra, Veneza, Edimburgo e depois vamos a Roterdão, em setembro a Madrid…
Já está a pensar na próxima peça?
Ah isso estou sempre, ainda não consegui começar a fazê-la, mas já tenho o projeto feito. É um bolo de noiva com três andares e 10 metros de altura, todo feito em azulejos para o Lorde Rothschild.
Já tem a noiva, o solitário e agora o bolo…
Sim, agora só falta casar (risos).