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O dia é 15 de dezembro de 2022 e alguns membros do grupo, autointitulado Copa 2022, trocam mensagens na aplicação Signal. Às 20h33, um deles diz que está no estacionamento de um restaurante no Parque da Cidade, em Brasília, pronto para avançar no plano que está em marcha. “Tô na posição”, responde outro. “Ok. Qual a conduta?”, responde o primeiro. “Aguarde”, diz um terceiro elemento.
São depois enviadas várias mensagens de áudio e, cerca de meia hora após a primeira mensagem, um quarto membro envia nova mensagem escrita: “Tô perto da posição. Vai cancelar o jogo?” Dois minutos depois chega a resposta: “Abortar… Áustria… volta para local de desembarque… estamos aqui ainda…”
Áustria era o nome de código de um dos membros da operação Copa 2022, cujos operativos mantinham alcunhas com nomes de países (ou seleções de futebol) como Alemanha, Brasil, Argentina, Japão e Gana. Imagens com as mensagens desta conversa foram divulgadas por membros da Polícia Federal à Globo, a propósito da Operação Contragolpe lançada esta terça-feira.
Segundo os investigadores, o plano tinha como objetivo assassinar Lula da Silva, vencedor das presidenciais brasileiras mês e meio antes, Geraldo Alckmin (seu candidato a vice) e raptar e depois matar o juiz Alexandre de Moraes, à altura presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Este foi o juiz responsável pela decisão judicial que permitiu a Lula ser candidato e foi frequentemente criticado pelo Presidente Jair Bolsonaro, à beira de abandonar o poder, durante toda a presidência.
Com previsão de ser executado a 15 de dezembro de 2022, o objetivo do plano seria eliminá-los antes da tomada de posse de Lula, marcada para dia 1 de janeiro do ano seguinte.
Operação Contragolpe. Cinco detidos, quatro deles “kids pretos”, que planeavam um golpe de “características terroristas”
É pelo menos esta a convicção do próprio Moraes que, como juiz do Supremo Tribunal Federal (o que lhe dá poderes como juiz de instrução em investigações de alto nível), ordenou esta terça-feira uma operação policial para deter cinco pessoas e divulgar a informação relacionada com o alegado plano. A Operação Contragolpe levou à detenção de quatro militares e um agente da Polícia Federal em várias zonas do país, do Rio de Janeiro ao Amazonas.
Segundo o comunicado divulgado pela Polícia Federal, os detidos — Mário Fernandes, Hélio Ferreira Lima, Rafael Martins de Oliveira, Rodrigo Bezerra de Azevedo e Wladimir Matos Soares — são suspeitos dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, Golpe de Estado e organização criminosa. Os quatro militares são todos membros na reserva dos chamados “kids pretos” — o Comando de Operações Especiais do Exército, especializado em reconhecimento especial, operações contra forças irregulares e contraterrorismo —, cujo lema é “Qualquer missão, em qualquer lugar, a qualquer hora, de qualquer maneira.”
Por esta razão, os investigadores consideram que os suspeitos usaram o seu “elevado nível de conhecimento técnico militar para planear, coordenar e executar ações ilícitas nos meses de novembro e dezembro de 2022″. Segundo o juiz Alexandre de Moraes, o plano — que teria por base um documento elaborado por Mário Fernandes, ex-conselheiro de Jair Bolsonaro na presidência — teria “características terroristas, no qual constam descritos todos os dados necessários para a execução de uma operação de alto risco.”
A maioria das provas em que se baseia a operação vieram de conversas na aplicação Signal, como a retratada no início deste texto, e outros registos contidos em telemóveis. Os indícios terão sido detetados nos telefones dos militares detidos, bem como nos que já tinham sido encontrados no telemóvel de Mauro Cid, general e ex-ajudante de ordens do Presidente Bolsonaro.
O plano “Punhal Verde e Amarelo”: a morte dos três alvos e de uma “eminência parda”, o “arsenal de guerra” e o posterior “gabinete de crise”
O que estava então no plano “Punhal Verde e Amarelo”? Segundo os investigadores, um planeamento detalhado para assassinar os três homens e um possível quarto, que teria como objetivo um golpe de Estado e neutralização da resposta judicial, de forma a impedir a chegada ao poder dos recém-eleitos.
Primeiro, seria preciso matar “Jeca” — ou seja, Lula da Silva. Os militares pretendiam aproveitar-se da saúde mais frágil do líder do PT, que já teve um cancro na laringe e várias complicações posteriores, envenenando-o diretamente ou recorrendo ao “uso de químicos para causar um colapso orgânico”. Perante a morte do vencedor das presidenciais, a Constituição dita que poderia tomar posse o seu candidato a vice, Geraldo Alckmin. Por essa razão, era ele, apelidado de “Joca”, o segundo alvo do plano. O documento previa que, com a sua morte, seria extinta a “chapa vencedora” da eleição e assinalava que “não se espera grande comoção nacional” com a morte de Alckmin — antigo membro histórico do PSDB (centro-direita) que se juntou a Lula da Silva para derrotar Bolsonaro.
A terceira parte do plano era a neutralização da “Professora” — ou seja, de Alexandre de Moraes. “Foram consideradas diversas condições de execução do ministro Alexandre de Moraes, inclusive com o uso de artefacto explosivo e por envenenamento em evento oficial público. Há uma citação [referência] aos riscos da ação, dizendo que os danos colaterais seriam muito altos, que a chance de ‘captura’ seria alta e que a chance de baixa (termo relacionado a morte no contexto militar) seria alta”, pode ler-se nos documentos libertados pelo juiz. Apesar disso, os investigadores consideram que foi essa a fase do plano que foi mandada “abortar” naquela conversa no Signal. Porquê o recuo? Esse ainda é um mistério.
Para além de “Jeca”, “Joca” e “A Professora”, o plano previa ainda o assassinato de “Juca”, descrito como “eminência parda do 01 [Lula] e das lideranças do futuro gov[erno]”, cuja “neutralização desarticularia os planos da esquerda mais radical”. Os investigadores ainda não assumiram formalmente quem pensam ser “Juca”, mas fontes da Polícia Federal já avançaram aos media brasileiros que suspeitam tratar-se de Flávio Dino, que viria a ocupar o cargo de ministro da Justiça no novo governo e que é atualmente juiz do Supremo Tribunal.
Para levar a cabo o plano, os suspeitos terão reunido uma série de meios que incluíam não só vários telemóveis descartáveis, como um enorme arsenal de armamento. Há referências a pistolas e revólveres, uma metralhadora, um lança-granadas e uma bazuca — a polícia classifica os meios referidos como “um arsenal de guerra”. O plano incluía ainda uma série de diligências de vigilância e monitorização de Moraes, descrevendo até os itinerários habituais do juiz — “Eixo Monumental”, “Av Exército” e “L4″. Os investigadores suspeitam que terão sido usados carros do Exército para fazer estas operações de reconhecimento.
O plano também incluiria uma estratégia para “o dia seguinte”. Perante os assassinatos de Lula, Alckmin e Moraes no dia 15 de dezembro de 2022, seria criado um “gabinete de crise”, liderado pelo general Augusto Heleno (à altura ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional) e pelo general Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil de Bolsonaro.
Braga Netto não foi apenas ministro de Bolsonaro — foi o nome escolhido pelo à altura Presidente para ser o seu candidato a vice na eleição de 2022. E o seu envolvimento no “Punhal Verde e Amarelo” pode ser maior do que parece à primeira vista: a Polícia Federal acredita que o plano foi discutido em novembro de 2022 na casa do próprio general, já que terá sido essa a informação avançada em interrogatório pelo general Mauro Cid e, segundo o G1, confirmada agora por materiais apreendidos a Mário Fernandes.
O documento impresso no Planalto e o áudio que aproximam a investigação de Bolsonaro
Por que razão então não foi Braga Netto um dos detidos desta terça-feira? Fontes judiciais explicaram ao jornal Globo que, nesta fase do processo, não podem arriscar “errar a mão” e que ainda faltam provas da “participação efetiva” do general no plano. Mas relembram que podem vir a ser feitas novas detenções no futuro.
A detenção de Braga Netto aproximaria perigosamente a investigação de Jair Bolsonaro. Por agora, há já pequenos sinais que apontam para ligações dos suspeitos golpistas ao antigo Presidente: o general Mário Fernandes, detido esta terça-feira, foi secretário-executivo da presidência e chegou a ocupar cargos de ministro interino no governo Bolsonaro.
E o nome de Fernandes não é novo para a Justiça brasileira, que já o havia relacionado com a atual investigação às suspeitas de tentativa de golpe de Estado, a propósito da invasão à Praça dos Três Poderes em janeiro de 2023. A Operação Tempus Veritatis inclui na sua investigação uma gravação em vídeo de uma reunião, que teve lugar no verão de 2022, onde o Presidente Bolsonaro pressiona os seus ministros a agirem contra o Tribunal Superior Eleitoral (liderado à altura por Moraes). No encontro, Mário Fernandes afirma que depois das presidenciais será necessário “um novo golpe de 64”, em referência ao putsch militar que instituiu a ditadura militar brasileira.
Agora, a atual investigação coloca Fernandes no centro da teia. Segundo a investigação do Supremo, no dia 9 de novembro de 2022 — dez dias depois da segunda volta das presidenciais vencidas por Lula da Silva —, Fernandes terá imprimido o documento de três páginas com o plano da operação: um ficheiro intitulado “Plj.docx”, em referência à palavra “planejamento”, segundo os investigadores. Fê-lo numa impressora do próprio Palácio do Planalto, o gabinete da presidência. E, de acordo com dados revelados pela CNN Brasil, Fernandes terá depois levado o documento ao Palácio da Alvorada, a residência oficial do Presidente.
As comunicações de Fernandes ao longo dos dias seguintes também podem vir a revelar-se comprometedoras para Bolsonaro. A 8 de dezembro de 2022, o antigo general enviou um áudio ao ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, onde se refere ao Presidente como este tendo conhecimento do plano que estava em marcha: “São duas coisas. A primeira, durante a conversa que eu tive com o Presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação [confirmação oficial do resultado eleitoral] do vagabundo [Lula da Silva], não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo”, afirmou. “Mas, porra, aí na hora eu disse, ‘Pô, Presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades’”. Os registos de acesso ao Palácio da Alvorada comprovam que Fernandes esteve nesse mesmo dia na residência oficial durante 40 minutos.
Por todos estes indícios, fontes do Supremo Tribunal Federal já avançaram aos media brasileiros que a possibilidade de Bolsonaro vir a ser acusado no âmbito deste processo é real. À CNN Brasil, alguns juízes afirmaram que a ligação do antigo Presidente aos alegados golpistas é clara, mas que uma acusação judicial a Bolsonaro só acontecerá se os indícios estiverem bem sustentados no relatório final da investigação, que deverá estar concluído antes do final do ano.
Perante esta situação, a reação política ao caso e a tentativa de colagem de Bolsonaro ao putativo golpe não se fizeram esperar. Do lado de Lula da Silva, que está a fazer de anfitrião no G20, não houve ainda uma reação oficial — mas o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos Rodrigues, confirmou que o informou da operação minutos depois das detenções e que este teve uma reação de “surpresa e indignação”.
Já o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, o petista Paulo Teixeira, recorreu ao seu perfil no X para co-responsabilizar diretamente o antigo Presidente “É preciso chegar em quem estava no topo desse absurdo. Ainda falta um: Jair Bolsonaro”, escreveu.
Não são atos isolados. A sequência de operações da PF mostram que a tentativa de golpe em 8 de janeiro e os planos contra o presidente Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes foram orquestrados. É preciso chegar em quem estava no topo desse absurdo. Ainda falta um: Jair Bolsonaro. pic.twitter.com/q0Z0VerZQG
— Paulo Teixeira (@pauloteixeira13) November 19, 2024
Do lado do antigo Presidente, só um dos seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro, se pronunciou. “Por mais que seja repugnante pensar em matar alguém, isso não é crime. E para haver uma tentativa é preciso que sua execução seja interrompida por alguma situação alheia à vontade dos agentes. O que não parece ter ocorrido”, escreveu na mesma rede social.
Quer dizer que, segundo a imprensa, um grupo de 5 pessoas tinha um plano pra matar autoridades e, na sequência, eles criariam um “gabinete de crise” integrado por eles mesmos para dar ordens ao Brasil e todos cumpririam???
Por mais que seja repugnante pensar em matar alguém, isso…— Flavio Bolsonaro (@FlavioBolsonaro) November 19, 2024
Já o próprio Bolsonaro manteve-se em silêncio durante as primeiras horas. Fontes próximas do antigo Presidente brasileiro garantiram à revista Veja que, enquanto Mário Fernandes e os outros militares estavam a ser detidos na manhã desta terça-feira, Bolsonaro estava a pescar em Alagoas, com o seu ex-ministro Gilson Machado.