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Octavio Passos/Observador

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Luís Onofre: “Comecei a fazer sapatos porque o meu pai via que eu era um bocado destravado e pôs-me a trabalhar"

A 3 meses de se tornar presidente da Confederação Europeia da Indústria do Calçado, Luís Onofre fala da sua primeira coleção falhada, dos sustos que já viveu no mar e da crise que o setor atravessa.

Quis ser designer de vestuário, interiores e até arquiteto, mas o negócio da família paterna ligada aos sapatos acabou por falar mais alto. Começou a trabalhar nas férias na fábrica dos avós, estudou design de calçado e aos 28 anos lançou a sua própria marca, que em 2019 comemora duas décadas de vida. Apesar de ter começado por uma linha desportiva, hoje Luís Onofre é conhecido pelos famosos saltos altos elegantes, sofisticados e femininos, aqueles que seduziram Letizia Ortiz, Michelle Obama, de quem guarda uma carta de agradecimento que emoldurou e colocou no seu shworoom, Naomi Watts ou Paris Hilton, nomes que integram a sua lista de clientes, distribuídos por países como Espanha, França, Itália, Holanda, Rússia, EUA, Angola ou América do Sul. Por cá, pode encontrar as suas criações, entre acessórios, marroquinaria e sapatos femininos ou masculinos, nas lojas oficiais da marca no Porto, na Avenida da Boavista, e em Lisboa, na Avenida da Liberdade.

Nascido na véspera de Natal de 1970 em Oliveira de Azeméis, é desde sempre motivado pelo pai, Jorge Onofre, que aos 83 anos ainda trabalha consigo na fábrica em Oliveira de Azeméis — sorridente, bem disposto e cheio de energia, deixou-se fotografar pelo Observador mas regressou rapidamente a uma sala repleta de caixas, fitas métricas e palmilhas, onde, muito concentrado, faz pequenos acabamentos à mão. Outra das suas fontes de inspiração é o mar, onde se aventura no surf, apesar dos sustos. Luís Onofre é hoje presidente da Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos (APICCAPS) e a 24 de maio tomará posse como presidente da Confederação Europeia da Indústria do Calçado (CEC), sendo o segundo português a ascender a esse cargo. A responsabilidade não o assusta, a pressão também não, mas a atual crise no setor e todas as mudanças associadas ao mercado e à forma como consumimos moda deixa-o com “medo do futuro”, num ano que prevê “muito difícil”.

Mais calmo, ponderado e resiliente, Luís Onofre continua a ser o eterno otimista e insatisfeito que fala com entusiasmo de cada coleção, de cada par de sapatos e de cada desfile. Como se estivesse a começar agora.

Luís com o pai, Jorge, na fábrica onde ambos trabalham há duas gerações. (Octavio Passos/Observador)

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Faz parte da terceira geração deste negócio familiar. Quem deu o primeiro passo?
Em 1937 o meu avô paterno chegou do Brasil já com esta ideia de negócio e resolveu estabelecer-se por Oliveira de Azeméis, onde já tinha família. Infelizmente passado um ano morreu e a minha avó, Conceição Rosa Pereira, ficou à frente da empresa. Na altura era uma coisa muito pequenina com cinco funcionários e onde se faziam um ou dois pares de sapatos por semana. Está a ver aquela mota ali na entrada? Era a mota que o meu pai usava para distribuir os sapatos pelas clientes e assim visitá-las. Era uma coisa muito engraçada. Já recuperei a mota duas vezes, é algo que estimo muito. Tal como a máquina de costura Singer antiga da minha mãe, é um marco que ajuda a contar a história deste lugar.

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Que memórias tem da sua avó à frente da empresa?
Lembro-me dela como uma mulher de armas, de signo leão, muito decidida. Todos os fornecedores tinham um enorme respeito por ela, era exigente e não admitia qualquer tipo de erro. Segundo o que o meu pai me diz, faziam-se aqui coisas incríveis e com muita qualidade, tenho pena de não termos um arquivo com um grande historial, mas antigamente não se tiravam fotografias e os sapatos eram praticamente todos feitos à medida para cada cliente. Os primeiros que tenho são de 1970, não ficámos com muitas referências do passado e tenho muita pena disso.

Pouco tempo depois, os seus pais assumiram a gestão da fábrica?
Sim, chamava-se Calçado Onofre e foi crescendo até ao 25 de abril. O meu pai fez muitas parcerias com clientes estrangeiros, nomeadamente em França onde trabalhámos com as Galeries Lafayette e marcas como a Cacharel, a Daniel Hechter ou a Kenzo. Até aos anos 1990 tivemos um crescimento muito interessante, nessa altura Oliveira de Azeméis e São João da Madeira eram o centro do calçado, mais do que Felgueiras que é hoje o centro máximo da produção em Portugal. Existiam muitas empresas especialistas num calçado estilo Luís XV, não havia muita moda ali presente, mas estamos a falar de um sapato de salto alto bem feito, com qualidade e bons materiais. Usava-se muito nos anos 80 e 90 o sapato liso com aplicações na parte da frente, ainda hoje é algo que revisito nas minhas coleções. Depois com a Guerra do Golfo, em 1990, perdemos quase toda a exportação desse mercado, foi um período muito difícil para toda a indústria portuguesa e claro que nós também sofremos com isso, acabámos por perder quase tudo. O meu pai sempre foi uma pessoa trabalhadora, aliás ainda hoje está comigo aqui, e lá conseguiu dar a volta por cima.

O seu pai trabalha na fábrica consigo?
Sim, aos 83 anos tem uma salinha só dele onde gosta de fazer pequenos acabamentos à mão.

"Está a ver aquela mota ali na entrada? Era a mota que o meu pai usava para distribuir os sapatos pelas clientes e assim visitá-las. Era uma coisa muito engraçada. Já recuperei a mota duas vezes, é algo que estimo muito. Tal como a máquina de costura Singer antiga da minha mãe, é um marco que ajudar a contar a história deste lugar".

Em miúdo, como era a sua relação com os sapatos?
Fui crescendo no meio do calçado, quando acabava a escola ia para a fábrica e estudava lá, sentia o cheiro da pele, da cola e toda aquela azáfama, mas era uma coisa que, francamente, nunca me fascinou. Com 15 anos até cheguei a vir trabalhar nas férias para ganhar algum dinheiro, fazia um pouco de tudo, mas não queria vir para o calçado.

Nunca pensou fazer disto a sua vida profissional?
Não, nunca foi uma coisa que me fascinasse. Estava mais virado para a moda de vestuário, eventualmente arquitetura ou designer de interiores. Comecei a fazer sapatos porque o meu pai via que eu era um bocado destravado e tinha que me pôr algum travão, por isso pôs-me a trabalhar. Quando percebi que gostava realmente disto foi quando fiz o meu primeiro sapato do início ao fim, demorei quase um mês, tinha 19 anos e andava na Academia de Design e Calçado, em S. João da Madeira. Ver um sapato transformado em 3D, passar do desenho para a realidade, foi o momento em que me deu o verdadeiro clique.

Lembra-se de como era o seu primeiro sapato?
Perfeitamente, era inspirado no românico, feito em veludo bordeaux e verde, com uns bordados e uma cunha em madeira. Para mulher, claro.

Ainda sabe fazer um sapato do início ao fim?
Acho que a única coisa que não consigo fazer é a costura, o resto sim. Acho essencial os designers, principalmente os de calçado, perceberem da área técnica e não ficarem apelas pelo desenho no papel, é um conselho que dou sempre. Às vezes inventamos coisas fantásticas que depois não são exequíveis na realidade. Tudo isto faz parte da experiência que fui adquirindo ao longo do tempo e que me permite fazer hoje rapidamente uma coleção e ter uma visão abrangente de tudo o que este processo implica.

"Em 1993 fiz a primeira coleção Luís Onofre, com 10 ou 12 modelos, mas não correu bem. Estava mesmo muito verde e pensava que percebia tudo, mas não percebia nada, por isso acabou por não funcionar de todo. Houve muita coisa que falhou, tanto a nível de formas como de moldes, não tinha exatamente a noção como era o pé da mulher".

Quando terminou o curso lançou-se logo em nome próprio?
Sim, em 1993 fiz a primeira coleção Luís Onofre, com 10 ou 12 modelos, mas não correu bem. Estava mesmo muito verde e pensava que percebia tudo, mas não percebia nada, por isso acabou por não funcionar de todo. Houve muita coisa que falhou, tanto a nível de formas como de moldes, não tinha exatamente a noção de como era o pé da mulher. Lembro-me que dos poucos que comprou a coleção foi o Zé que na altura tinha uma loja em Lisboa que se chamava Bandarra, uma sapataria alternativa onde se vendiam sapatos mais fora da caixa, como as Dr. Martens, e era um sonho para qualquer designer vender ali. Ele gostou muito de mim na altura e do meu projeto, mas foi praticamente o único. Em 1999 quando lhe disse que ia voltar ele ficou todo contente e foi o primeiro a ver a minha coleção.

Depois dessa primeira tentativa, o que fez?
Quando falhei em 1993 foi algo que nunca mais me saiu da cabeça, pensei que um dia iria conseguir, mas tinha de aprender e ter uma atitude mais humilde. Acabei o curso, estive em Itália uns meses e depois vim trabalhar para a empresa de família. Pedi ao meu pai para passar por todas as áreas, estive quase um ano e meio na produção da fábrica a perceber como se fazia um sapato. Tudo o que aprendi foi realmente com o meu pai e, claro, com o lidar das situações do dia-a-dia. Recordo que o meu pai ficou doente passado dois ou três anos, teve de fazer uma cirurgia, e acabei por ficar à frente de tudo. Acho que foi aí que o meu pai percebeu que podia confiar-me as coisas e foi um crescendo. Na primeira coleção que fiz para fora, vieram cá uns franceses e decidiram tudo, as cores, os materiais, as formas, era toda a gente a escolher. Eu, que já era um bocadinho teimoso, pensei: “Não, eu vou fazer isto à minha maneira”. Corri um risco grande, o meu pai deu-me todo o apoio e a verdade é que quando eles viram a coleção disseram que não estava nada do que tinham pedido, mas começaram a olhar bem e reconheceram o meu trabalho: “Bem, isto está porreiro”. Esta foi das coleções mais vendidas, a partir desse ano o meu pai disse-me para fazer tudo sozinho, da parte criativa à modelação. A minha mãe tratava das vendas, coordenava mais a parte comercial, e também me ensinou muito. Foi uma coisa que me ajudou imenso a ter uma visão do mercado mais alargada, saber quais eram os melhores parceiros, os clientes chave, a ter o contacto mais próximo com eles, saber o que eles gostaram, o que funcionou. Para mim, a parte técnica aliada à parte comercial, que depois termina no design, faz com que um designer tenha sucesso.

"O meu pai deu-me asas para fazer o que queria, deu-me carta branca e pensava mais com o coração do que com a carteira. Foi uma coleção completamente emocional, mas ainda hoje acho que o meu trabalho é assim. Quem percebe de sapatos às vezes olha para um modelo meu e diz “Oh Luís, estás aqui a meter-te num berbicacho”, porque é algo complicado de produzir".

Em 1999 lança, pela segunda vez, a sua própria marca. Foi uma necessidade?
Sim, o objetivo na altura era fazer uma coleção mesmo à minha medida, que representasse exatamente aquilo de que gostava, e vender. Ao todo eram 50 modelos com formas muito alongadas, muito na onda do que está a ser apresentado pela Balenciaga, por exemplo, onde também usei as licras, que não se usavam muito naquela altura. Foi um choque para as pessoas que trabalhavam comigo que, apesar de saberem fazer sapatos, estavam a fazer uma coisa que nunca tinham feito, então iam a medo. Lembro-me que no primeiro ano a nível produtivo foi algo que não nos deu lucro nenhum, foi uma adaptação a um novo conceito. Acompanhei tudo, do início ao fim, e de facto se não tivesse a fábrica dos meus pais seria bem mais difícil criar esta coleção. O meu pai deu-me asas para fazer o que queria, deu-me carta branca e pensava mais com o coração do que com a carteira. Foi uma coleção completamente emocional, mas ainda hoje acho que o meu trabalho é assim. Quem percebe de sapatos às vezes olha para um modelo meu e diz “Oh Luís, estás aqui a meter-te num berbicacho”, porque é algo complicado de produzir. Gosto de complicar as coisas, de não ser aquela coisa chapa cinco, fácil de replicar. Isso acabou por ser o ADN da marca. Sei que sou conhecido pelos saltos altos, mas hoje em dia tenho de tudo, dos modelos básicos aos mais trabalhados, e até comecei por uma vertente mais desportiva.

Como é que se deu depois o salto para o segmento de luxo?
Foi algo muito natural, os clientes foram exigindo que enriquecesse o meu trabalho aos poucos. Acompanhava muito a parte comercial, ainda hoje faço isso, e percebia, às vezes sem me dizerem, quais os sapatos que iam ser escolhidos. Isso fez-me ver que caminho é que deveria seguir na próxima estação. Acredito que é necessário estarmos atentos para antecipar, de certa forma, o que as pessoas vão pedir ou escolher.

Quando é que sentiu que já ocupava um lugar internacional?
Desde o início que comecei a trabalhar com Espanha, hoje em dia continua a ser um dos meus principais mercados, e vendia para uma sapataria multimarca em Madrid, a loja Llorona. Em 2003 tive a felicidade de calçar a Letizia Ortiz numa das suas primeiras apresentações oficiais. Segundo o que o embaixador me contou na altura, ela foi a essa mesma loja escolher uns sapatos acompanhada por vários conselheiros e embirrou com uns sapatos meus e foram aqueles que quis usar, independentemente de serem portugueses ou não. Depois foi altamente criticada por não ter usado calçado espanhol. Na altura tive um boom grande, comecei a crescer noutros mercados e deu-me uma visibilidade internacional que não tinha.

No showroom podemos ver a coleção outono-inverno, disponível nas lojas oficiais do designer. (Octavio Passos/Observador)

Octavio Passos/Observador

O que foi mais fácil e difícil?
Ao contrário do que as pessoas possam pensar, hoje é muito mais difícil lançar uma marca própria, a globalização nesse aspeto foi negativa. Antigamente aquilo que víamos em Portugal não era a mesma coisa que víamos em Itália, em Nova Iorque ou em Londres. Atualmente vamos a qualquer cidade europeia que seja metrópole e vemos as mesmas lojas, os mesmos modelos em todo o mundo. Na altura não era assim, havia mais emoção nas ruas, uma emoção maior por parte dos clientes, cada sapataria multimarca, que cada vez existem menos, tinha o seu estilo próprio. Quando lancei a minha marca começaram a surgir em Portugal várias lojas multimarca interessantes e fui acompanhando esse ritmo. Vendia muitos sapatos em Portugal nessa altura, a Marques Soares, por exemplo, foi um dos meus primeiros clientes e permanece até hoje. Há 20 anos havia uma apetência grande por novas marcas, coisa que já não existe tanto, a introdução no mercado é agora muito mais difícil. Acho que as pessoas estão focadas em 20 ou 30 marcas e as outras acabam por estar a passar um momento mais amargo. As coisas mudaram, a noção de consumo mudou totalmente, as pessoas preferem ter experiências mais sensoriais e investir mais em viagens low cost do que em moda, por exemplo. Isto é uma tendência que pode mudar, sinto isso já nos EUA, onde as pessoas dizem mesmo que se emocionam com algo diferente. Em Portugal existe uma preocupação grande no calçado vegan mais sustentável, estamos na vanguarda e isso pode ter efeitos muito positivos no futuro.

Como é o seu processo criativo?
A tela branca é aquilo que assusta mais um criador ou um artista, no entanto, há sempre pontos de partida, nomeadamente a coleção anterior. No meu caso existe uma coerência com o trabalho anterior para que não exista uma quebra ou uma rutura de pensamento, dentro daquilo que é a minha identidade. Também é importante perceber junto dos nossos agentes o que funcionou ou não funcionou, ir a feiras de tendências, ver quais as cores e os materiais que vão surgir, é talvez aqui que perco mais tempo. Hoje em dia também olho para algumas redes sociais, como o Instagram, onde existem determinadas mulheres que no geral vão ser seguidas e que também podem ditar caminhos. Tento ter sempre presente “onde é que isto vai parar?”, “o que nos vai dar daqui a seis meses, ou um ano?” Tudo isto tem de ser posto em cima da mesa, se são botas de cano alto ou baixo, se são sandálias… hoje temos de fazer sandálias no inverno e botas no verão. O próprio clima mudou radicalmente, temos de ter praticamente quatro coleções por ano e a mid season acaba por ser a estação em que vendemos mais.

"Portugal não é reconhecido até agora como um país produtor de designers. É altamente reconhecido como produtor de qualidade, todas as marcas de renome mundial estão aqui, o que é bom, mas considero que falta o made in Portugal, essa assinatura. Ajudaria muito o setor. Os italianos têm esse carimbo"

Ao fim de 20 anos percebe-se com mais facilidade que a moda é mesmo cíclica?
Sem dúvida. Em 2002, por exemplo, fiz a minha primeira coleção com botas texanas que foi um sucesso, agora volta a ser. Há, de facto, um ciclo e estou a sentir exatamente o que era a moda há 20 anos. Lembro-me que quando lancei os meus primeiros modelos olhava para a moda dos anos 70 ou 80 como uma coisa horrorosa, dizia: “Isto nunca mais na vida vai estar na moda”. Pensar assim é um erro comum dos designers, porque não há mesmo dúvidas de que a moda é mesmo uma repetição. É claro que muda tudo, nós podemos ir buscar como fonte de inspiração os anos 80, mas temos de lhe dar um refresco, acrescentar algo novo e adaptar, ou então fazemos algo mesmo retro assumidamente, que também pode resultar.

A mulher que calça os seus sapatos também mudou?
Sim, penso que é uma mulher totalmente diferente, está muito mais informada, mais atualizada e mais culta. Antigamente não havia internet, não havia formas de nos atualizarmos, tínhamos revistas boas. Hoje no online as pessoas estão a ver em tempo real aquilo que está a acontecer, os próprios desfiles saem logo na comunicação social, coisa que não acontecia. Tínhamos de esperar e achava essa espera interessante. No outro dia falei disto com criadores amigos, perde-se muito em apresentar uma coleção e só passado seis meses é que ela está nas lojas. Se calhar devíamos apresentar a coleção in loco e no dia seguinte já devia estar à venda, acho que é essa emoção que faz com que as pessoas comprem, esse impulso. A paixão de ver um sapato na passerelle desvanece, perde-se ao longo do tempo com demasiada informação, isto é algo que tem acontecido com alguma frequência. Os tempos mudaram, temos de nos saber adaptar.

Considera-se uma pessoa nostálgica?
Não, não sou nostálgico, quando vejo coisas antigas sinto sempre um saudosismo, mas acabo por não ligar muito. Não guardo quase nada, tenho tantas coisas que poderia ter guardado, mesmo da minha primeira coleção, que nem sei onde andam, foram-se perdendo ao longo do tempo. Acho que olho muito mais para o o futuro e para o presente, quero é fazer coisas novas.

Em 2016 entrou no mercado masculino. Agora com quatro filhos, para quando uma linha para criança?
Fiz uma linha de criança em 2004, uma coleção de verão com modelos iguais para mãe e filha. A nível produtivo foi muito complexo e acabei por desistir desse projeto. Gostava de fazer, mas sinceramente não é uma coisa que me apaixone. Agora estou a fazer uns sapatos, número 22, para o meu filho Vicente, de seis meses. Homem achei que fazia todo o sentido lançar, até porque a minha loja de Lisboa tem dois andares e muita gente pensava que no primeiro piso se vendiam sapatos de homem. Foram tantos que acabei por introduzir modelos masculinos e tem corrido bem.

Ainda pratica surf?
Sim, claro. Agora fui operado a um braço, porque quando fui à Indonésia em 2013 tive um susto nos corais e não recuperei totalmente, mas isto é como as pessoas que gostam de andar de mota, podem-se partir todas, mas continuam. Adoro o mar, é talvez a minha maior fonte de inspiração. Continuo a praticar em Espinho, Leça da Palmeira ou Matosinhos, depende de como estiverem as ondas. Sim, sou daqueles que vai ver como está a ondulação antes de sair de casa. Antigamente não havia nada disso, lembro-me de apanhar o comboio aqui em Oliveira de Azeméis com a prancha debaixo do braço sem saber o que iria encontrar. Nunca tive aulas, sou completamente autodidata, comecei aos 17 anos e não fui mais cedo para dentro de água porque os meus pais não me deixaram, tinham medo que partisse alguma coisa. Também gosto de caminhar, tenho um grupo de amigos com quem já fiz o caminho de Santiago de Compostela várias vezes, tanto o português como o francês, que é bem mais complicado. Uma vez ao subirmos uma montanha apanhámos um choque térmico, vimos um japonês a ser evacuado de helicóptero e tivemos de pegar numa italiana durante dois quilómetros porque ela queria morrer. É uma experiência fantástica, estamos a pensar agora fazer o caminho pelo litoral.

Onofre é o atual presidente da Apiccaps e futuro presidente da CEC, mas garante que não lhe falta tempo para criar. (Octavio Passos/Observador)

Octavio Passos/Observador

Como é a sua rotina?
Gosto de acordar cedo, levanto-me às 6h30, 7h00. Vivo no Porto e venho quase todos os dias à fábrica, em Oliveira de Azeméis. Paro sempre numa estação de serviço para tomar café, que ando a tentar reduzir, e dar uma vista de olhos pelos jornais. Em altura de coleções saio daqui às tantas da manhã, mas gosto de acompanhar todo o processo. Com a função de presidente da Apiccaps é mais complicado, mas tenho uma equipa fantástica que me ajuda imenso.

Em maio faz três anos que assumiu o cargo. Que balanço faz?
É um trabalho constante à procura de novos mercados e a ajudar as nossas empresas a serem reconhecidas a nível internacional. Sou daqueles que aposta nas novas marcas portuguesas para ficarem firmes e irem para fora com alguma estrutura. Acho que o calçado português é altamente reconhecido, o que não acontece muito com as marcas portuguesas.

Que tipo de dificuldades tem sentido?
Talvez a maior seja a de Portugal não ser reconhecido até agora como um país produtor de designers. É altamente reconhecido como produtor de qualidade, todas as marcas de renome mundial estão aqui, o que é bom, mas considero que falta o made in Portugal, essa assinatura. Ajudaria muito o setor. Os italianos têm esse carimbo, mas também eles estão a sofrer as consequências desta tempestade quase perfeita.

Que tempestade é esta?
A Rússia, que com o problema da Crimeia alterou o comércio todo a nível europeu, o protecionismo dos EUA e da China, que também está a começar a sentir a crise, o Brexit, empresas direcionadas para aquele mercado estão a passar por imensas dificuldades, os problemas sociais em França, e na Alemanha, onde as lojas multimarca estão a fechar a catadupa. As lojas monomarca acabam por dominar todo o comércio, depois o online está a ser um choque brutal, ainda estamos num período de indefinição e de afirmação. Sabemos que temos de reestruturar as nossas empresas para esse tipo de consumo. Tudo isto acaba por ser um bolo que afeta toda uma indústria, não só a nós mas a nível europeu e até mundial.

"A solução passa por arranjar uma forma das escolas, onde existe a indústria do calçado, criarem disciplinas vocacionadas para este setor. Acho que é de pequenino que se torce o pepino e acaba por ser muito vantajoso para um miúdo saber que tem uma indústria na sua cidade, onde pode ter um futuro, do que não ter qualquer conhecimento que isso existe e aí a probabilidade de ir para outra área é muito grande".

Acha que é um cenário reversível a médio prazo?
Falo por experiência própria, quando passamos por uma crise as coisas nunca são iguais, nunca voltam a ser iguais, e acabam por ficar sempre muito mais difíceis. Prevejo um ano 2019 bastante difícil, acredito na força e na resiliência dos nossos industriais, e na vontade que o nosso país tem para nunca desistir. Temos uma grande vantagem que é sermos muito desenrascados, conseguimos às vezes de um problema construir coisas boas e acho que o português é exímio na arte de dar a volta por cima.

A falta de mão de obra continua a ser um problema?
Para mim é um dos principais problemas, principalmente nesta zona, talvez em Felgueiras e em Guimarães já não tenham essa dificuldade, porque toda a indústria daquelas cidades é vocacionada para o calçado, o que acaba por ser mais fácil. Em Oliveira de Azeméis foi-se perdendo esse histórico de bem fazer um sapato do princípio ao fim e dos mestres que existiam antigamente. Temos quatro áreas numa empresa de calçado, o corte, a costura, a montagem e o acabamento. A carência é transversal a todas elas, mas especialmente na montagem. É difícil arranjar pessoas com verdadeira capacidade e gosto para trabalhar neste setor.

A falta de formação ou os salários baixos explicam esta carência?
Não é falta de formação, o salário pode ter influência, embora cada vez mais no nosso setor estejamos a pagar acima da média nacional, que ronda os 700€. Tivemos algumas reuniões com o governo e eles estão recetivos a mudarem as taxas de pagamento das horas extraordinários, assim como os prémios de produtividade.

Considera que o atual Governo tem ajudado o setor?
Sim, nós temos tido uma boa parceria com o Governo. Claro que não podemos concordar com tudo, nomeadamente os impostos que sabemos que têm de existir, mas achamos que estão a ser demasiados para uma altura difícil como esta. Isso faz com que o investimento não seja o adequado para uma economia crescer. Penso que é isso que falta, investimento em novas soluções, em novas tecnologias. Uma das coisas que estamos a tentar na Apiccaps é que a indústria seja mais vocacionada para o futuro, ou seja, usarmos a tecnologia e as plataformas digitais que estão ao nosso alcance a nosso favor. Já muitas empresas estão a fazê-lo, mas ainda há muito para fazer. O futuro vai ser o comércio online, temos de estar preparados para esse choque que não vai ser fácil.

Além da aposta tecnológica, que outras soluções estão previstas?
Para mim, a solução passa por arranjar uma forma das escolas, onde existe a indústria do calçado, criarem disciplinas vocacionadas para este setor. Acho que é de pequenino que se torce o pepino e acaba por ser muito vantajoso para um miúdo saber que tem uma indústria na sua cidade, onde pode ter um futuro, do que não ter qualquer conhecimento que isso existe e aí a probabilidade de ir para outra área é muito grande. Em França, por exemplo, eles têm alguma indústria de marroquinaria e preparam os miúdos nas escolas a especializarem-se nessas áreas. Acho que devemos seguir estes bons exemplos e aplicá-los na prática. Outra coisa que não ajudou, e que também sou contra, é a política das reformas antecipadas. Tenho cinco ou seis funcionários bons que se vão reformar este ano mais cedo por causa desta nova medida, o que ainda veio complicar mais as coisas. Não há ninguém para os substituir, ou se há são jovens não têm sequer estrutura mental para aguentarem este tipo de trabalho. Não é que seja um trabalho difícil, é exigente. Além disso, os jovens ainda têm a ideia de que as empresas são como antigamente, tudo muito escuro, muito século XX. Houve uma mudança radical nestas primeiras e segundas gerações de industriais, eles aplicam uma visão totalmente diferentes nas suas empresas. São pessoas que têm mundo, conhecimento do que se passa lá fora e tentam transportar isso para cá. Tenho tido visitado empresas absolutamente fantásticas e inovadoras no nosso setor.

Quantos trabalhadores colaboram na sua fábrica?
Cerca de 60. A última que saiu foi a Armada e estava cá, na costura, há quase 50 anos. Agora o que trabalha cá há mais tempo é mesmo o meu pai.

Na sua fábrica trabalham cerca de 60 funcionários, maioritariamente mulheres. (Octavio Passos/Observador)

Octavio Passos/Observador

O que representa esta nomeação para ser presidente da Confederação Europeia da Indústria do Calçado (CEC)?
Esta confederação representa muitas empresas a nível europeu e há estratégias que devem ser pensadas a esse nível. Não queria falar muito sobre isto porque ainda há um presidente em funções, o italiano Cleto Sacripanto, que é uma pessoa que admiro imenso e que está a fazer um trabalho excelente. O que posso dizer é que tenciono dar continuidade a esse trabalho, principalmente na política de uma indústria mais vocacionada para a sustentabilidade. Vou tentar que as minhas prioridades sejam defender a Europa no sentido de haver mais igualdade nas transações e criar um registo em cada sapato com o nome do local onde ele é feito.

Toma posse em maio, o que vai mudar na sua vida?
Quase nada, estamos a falar de reuniões esporádicas em Bruxelas, em Itália ou até mesmo aqui.

2019 parece não ser o ano ideal para iniciar esta nova etapa…
Tenho algum medo, confesso, as coisas não estão fáceis. Tanto os espanhóis, os italianos como os portugueses tiveram uma quebra no crescimento, embora mediante as circunstâncias e as dificuldades considero que 2018 tenha sido um ano positivo. 2019 é uma incógnita, tudo dependerá do Brexit, é ele que irá decidir se as coisas correm bem ou não. Para mim o ideal era eles continuarem na União Europeia, conseguirem fazer um novo referendo e mudarem a sua posição para um registo mais humilde, mediante os factos que estão à vista.

Está preparado para mais 20 anos?
Espero que sim. A idade já começa a pesar, principalmente na parte criativa. Lembro-me que a minha avó me dizia que a partir dos 45 a parte criativa não ia ser tão boa, eu tenho 48 e confirmo essa teoria. Gosto de trabalhar com gente nova e com novas ideias, que me consiga dar um refresco e isso, de certa forma, dá-me algum ânimo e entusiasmo para o futuro, tento colocar-me na posição deles e ir buscar energia onde às vezes ela não existe. Com o passar do tempo as coisas acalmam, hoje sinto que tenho muito mais tranquilidade na minha forma de estar e de ser, já não sou tão impulsivo e acabo por pensar duas vezes antes de avançar, antes ia de olhos fechados.

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