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Courtesy of the artist

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Marlon Williams ficou de coração desfeito. Agora, quer partir o nosso

"Make Way for Love" é um álbum perfeito. E é obra de quem transformou a própria vida em arte. Ouvimos o disco de forma crónica e falámos com o músico que o fez com dedicação rara. 2018 já é dele.

Make Way for Love pode muito bem ser o disco do ano. “O disco do ano logo aos primeiros meses?” Sim, claro, e então? Nem é preciso ir muito longe para perceber que isto não é fenómeno assim tão raro. Vejamos: 2017, Kendrick Lamar, DAMN!, 14 de Abril. Ainda é mais ou menos início do ano, ou não? Continuando: Make Way for Love pode ser o disco do ano, pode não ser… e isso importa? O que importa é o que este sacana fez. Explica-se mais ou menos assim:

Hipótese 1. Caro leitor, se está a ler isto e tem o coração desfeito, se não sabe para onde ir, o que fazer, se não tem fome, se anda a fumar demasiado, se dorme mal e acorda pior, então este é o disco para si porque quando o ouvir vai achar que foi você que o fez. E há poucas coisas mais dolorosas e bonitas do que isso, as duas qualidades ao mesmo tempo.

Hipótese 2. Mas se, caro leitor, o seu caso não é este acima citado, se o seu caso é o da felicidade/normalidade/indiferença (riscar o que não interessa), então quando ouvir este disco vai desejar sentir-se mal, vai querer ser miserável, vai querer chorar sem saber porquê, vai sonhar com aquele alguém que lhe dá vontade de odiar porque lhe fez mal mas não consegue porque porque só pensa na próxima oportunidade em que vai estar na horizontal e sem roupa com a dita pessoa. Porque vai querer sentir esta banda sonora como a do seu dia a dia, de tão honesta e — ora bem — feita de tão boas canções que é.

A capa de “Make Way For Love”

Só para esclarecer eventuais dúvidas: estava de coração terrivelmente partido quando escreveu estas canções, certo?
Sim, estava, tal e qual, precisamente isso.

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E porque é que as escreveu? Não tinha vontade de não fazer absolutamente nada em vez de trabalhar?
Normalmente não sou assim, o que costumo fazer quando algo não está bem é fugir, é manter-me à parte, escapar, ficar à parte do mundo. E costumo ser muito bom a fazer isso. Mas o que estava a acontecer era demasiado grande para ignorar e tive que reagir. Não tive opção, não é como se pudesse escolher o que fazer.

E o que é que isso fez por si?
Nem me lembro bem. Foi uma catarse qualquer. Foi isso. Foi como entrar por um túnel escuro e sair do outro lado, onde havia alguma luz. Isto parece um cliché bastante foleiro… além disso, não é como se todos os meus problemas tivessem ficado resolvidos assim que gravei o disco. Era bom, era…

Nada de tretas. Não é preciso ouvir o disco muitas vezes. Não é preciso “dar-lhe tempo”, não é preciso deixar que as canções se revelem, bla bla bla. Tanga, tudo tanga. Marlon pôs as entranhas em cima da mesa. Tudo, deu tudo. Não ficou com nada guardado, não lhe restam segredos, não lhe resta intimidade, não tem por onde escapar. Tudo isto está de tal maneira inscrito em cada verso e em cada melodia que não há tempo para pensar “vou gostar disto ou não?”. Make Way for Love é uma invasão napoleónica, é uma conquista do tempo dos romanos, é um blitzkrieg de melancolia cantada: violenta, impiedosa, sem descanso, um bombardeamento arrasador.

O artista relata o fim da sua relação com a cantora e compositora Aldous Harding através de 11 canções. É tão simples quanto isto. E inclui um tema em dueto com a própria. Tudo isto é demasiado torcido e dorido ou é precisamente o contrário? Foi o que tentámos saber.

[“What’s Chasing You”:]

Porque é convidou Aldous Harding para um dueto? Foi fácil descobrir que estas canções são em boa parte sobre ela…
“Em boa parte” é uma expressão engraçada… antes de ter uma relação com ela já nos entendíamos muito bem criativamente. Portanto, convidá-la chega a ser natural. Pode não parecer natural por causa de tudo o resto.

Pode…
Mas foi ainda mais. Estava numa situação em que precisava dizer-lhe o que estava a viver e a sentir, precisava descarregar isso e ser sincero. Através de uma canção é bem mais simples e acho que conseguimos concretizar um momento muito bonito.

E é por isto que Marlon Williams não é um merdas. Podia ser. Ele é grande, é um tipo de boa estatura, com aquele físico que importa. Tem aquele vozeirão, nem é preciso vê-lo em palco para perceber que toma conta dele só de garganta. Mas o ouvido menos atento pode apenas dizer que ele tem medo de tudo e mais alguma coisa. Que não aguenta o mundo no geral e muito menos o dele em particular. Que não sabe lidar com quase nada a não ser com as canções que faz. Não aguenta um coração partido e refugia-se num estúdio para se desfazer em versos e acordes como se isso o levasse a algum lado.

"Estava demasiado concentrado em tentar desconcentrar-me. Tenho a certeza que por tudo isto, e juntando todas estas variáveis, nunca mais vou conseguir fazer um disco assim. Nunca mais."

Mas não. Nada disto se confirma. Marlon não tem medo de coisa nenhuma, muito menos dele próprio, que costuma ser o pânico mais tramado de ultrapassar. Este gajo é o mais destemido dos miseráveis. É um conquistador que ganhou o que precisava ganhar depois de perder a armadura e arma e o capacete e até o cinto pelo caminho. E com uma classe, uma categoria na construção das canções, na forma como as canta, que só esse dom de artesão merece a nossa atenção. E podia apenas ser uma de duas coisas: um compositor de talento ou um intérprete de boa técnica. Mas não: é tudo isso na mesma pessoa.

E depois dá nisto, este desfile de encantamentos com a escola toda que o formou: o fatalismo de um coro de igreja, vozes trágicas como as de Scott Walker ou a de qualquer crooner sem destino e com demasiado álcool para pensar. O ideal rock’n’roll tal como ensinado por Elvis ou Roy Orbison e com a inevitável tragédia pela frente. O isolamento de uma Nova Zelândia que o formou como garimpeiro de sentimentos através das canções. A folk, a country e o bluegrass, a América como objeto sempre presente no horizonte. E a teatralidade que um palco oferece. “Make Way For Love” podia dar em musical. Corria o risco de escorrer demasiado azeite mas essa é outra conversa.

[“Nobody Get’s What They Want Anymore”:]

O tempo fez alguma coisa sobre estas canções?
Fez, claro. E eu ainda não sei bem o quê, ainda estou a tentar perceber, mas gosto de descobrir o que o tempo faz às canções, e nestas especialmente. E é essa a melhor parte de tocar ao vivo… talvez a única, às vezes. Mas este disco também representou muitas mudanças para mim.

Mudanças criativas? Musicais?
Também. Quis fazer outras coisas. Ou melhor, tive que fazer outras coisas, estas canções, isto que escrevi nunca poderia ter sido acompanhado pela música tal e qual a fazia antes. O piano fez toda a diferença, sou muito limitado a tocar piano mas acho que as coisas começaram daí, eu a tentar exprimir uma série de sensações difíceis de explicar através de um instrumento que não domino. 

Ou seja, a falta de controlo sobre ambas as dimensões deixou-o descobrir algo novo.
Isso. Na altura, enquanto compunha as canções, não me apercebi disso. Estava demasiado concentrado em tentar desconcentrar-me. Tenho a certeza que por tudo isto, e juntando todas estas variáveis, nunca mais vou conseguir fazer um disco assim. Nunca mais.

Marlon começou com os Unfaithful Ways por volta de 2007, fez um duo com Delaney Davidson, editou um primeiro álbum em nome próprio em 2015. Mas só agora se fez artista completo, desta maneira. Vale a pena repetir o que já estava escrito umas alinhas acima: este disco é um desfile. É de tal maneira um desfile que merece ser referenciado canção a canção. Segue assim:

“Come to Me”. Marlon Williams tem uma daquelas vozes que, quando a escutamos, mesmo que à beira da segunda circular, é como se não houvesse movimento. E atenção que nesta canção em particular ele parece um crooner caído em desgraça, deitado na cama a soluçar, a pedir “volta, por favor, volta”. Não há gritos, apenas elegância. E é com isso que ele cala tudo e todos?

“What’s chasing you?”. Elvis, voltaste. Orbison, voltaste. A pandeireta ainda é o melhor instrumento do mundo. Alguém me arranje uma pick up sem direcção assistida, alguém me dê um maço de tabaco e uns trocos para whisky. Alguém me deixe fazer uma banda, alguém me aleije, mas à séria. Quando foi a última vez que um desgraçado teve tanto estilo?

“Beautiful Dress”. Se às duas primeiras canções não ficaram conquistados (proeza muito difícil de concretizar, mas enfim), com esta não vos vai restar nada. Marlon Williams saca o mais bonito intervalo entre acordes maiores e menores que este ano vai ver. É de uma subtileza absurda, tudo em câmara lenta. O elogio da fragilidade nas harmonias, ensinamentos para a vida, é o desatino de um apaixonado, é o tipo que se está a afogar na própria dor mas que o faz sem amarrotar a camisa — botões de punho incluídos. E uma das mais bonitas frases de amor (se quiserem chamem-lhe desespero, tem vezes que é a mesma coisa): “Volta, deixa-me vestir-te como se veste um vestido lindo”.

“Party Boy”. Aqui o que está em questão não é o coração mas é o íntimo de alguém que não aguenta a pose, a imagem, a sacanice de quem tenta ser o que não é. E porque a mudança de andamento tem a ver com a mudança de tema, nada como construir uma melodia obscura em cima de uma caixa de ritmos, para que toda a gente perceba que aqui a conversa é outra. Ah, e dá para dançar.

“Can I Call You”. Se alguém aqui se lembrar daquela parte de The Wall em que Roger Waters canta “is there anybody out there?”, esta é mais ou menos a versão atualizada, mas com muito mais pinta. Um telefonema, basta um telefonema para o manter a respirar e é isso que ele canta, numa produção cheia de vozes secundárias, como se o homem falasse com os próprios fantasmas. Isto é de génio: cantar a paranóia com esta sabedoria e esta tranquilidade.

[“Come to Me”:]

“Love is a Terrible Thing”. Estão a imaginar que tipo de música poderia suportar uma frase destas, que é o verso chave do tema? Ora bem. Marlon conseguiu fazê-la, mas ainda melhor do que vocês pensam.

“I Know a Jeweller”. Há por aqui um pouco do lado country que Williams sempre alimentou. Mas ele não é bem um cowboy, é uma espécie de serial killer do amor, é viciado em crimes românticos, talvez seja essa a maneira de alimentar a criatividade, ele lá sabe.

“I Didn’t Make a Plan”. “Didn’t make a plan to break your heart/ but it was the sweetest thing I’ve ever done”. Make Way for Love está cheio de frases brilhantes, esta é só uma amostra. É uma canção revanchista, é o relato da aproximação a uma vingança, a uma espécie de “e isto, dói? Gostas? Estás a sofrer agora? Então ainda bem”. Mas sem o ser, porque por mais que o protagonista tente, a coisa não é assim tão simples.

“The Fire of Love”. Deem espaço a Marlon para dar uma aula, para que ela possa ensinar a todos quantos o ouvem como é descer até ao abismo que pode existir no íntimo de cada um. É notável como ele faz isso só com uma guitarra e o mínimo de acordes que precisa para desenhar uma espiral de quase-demência como se fosse uma canção de embalar.

“Nobody Gets Want They Want Anymore”. É resignação mas não é bem. Com Marlon Williams nunca nada é de facto o que parece. Uma canção que funciona como um diálogo com Aldous Harding, a cantora que na verdade é a causa de tudo isto, de todas estas canções, de toda esta miséria. Ele ligou-lhe, convidou-a, ela gravou a sua parte à distância e o resultado é um dueto que pode significar aceitação, mas também significa que nunca ninguém vai aceitar nada.

“Make Way for Love”. Depois de tudo isto, depois de ter rastejado na mais suja das lamas, Marlon Williams ainda acredita. O homem está destruído e arruinado, mas ele acredita. E canta “deixem passar o amor” sobre uma melodia em formato doo wop, como dançava aquela felicidade meio plástica da América dos anos 50. Tem tanto de sincero como de irónico, ficamos na dúvida, é uma espécie de cliffhanger, a maneira perfeita de fechar este disco.

"Procurei explorar as nuances de tudo isto, as nuances da dor e do amor. É preciso saber reproduzir estas coisas porque se for tudo demasiado particular as pessoas não querem saber, não vão ouvir, as pessoas querem encontrar alguma coisa familiar nas canções que ouvem."

Feitas as contas, Make Way for Love não é bem um disco. Ou não é só um disco. É o diário de de alguém que entrou na mais profunda das escuridões e de alguma maneira conseguiu encontrar um interruptor e acender a luz. É um reality show mas com transmissão em diferido, é o trabalho de alguém que transformou a própria vida em arte, com factos, emoções, acontecimentos e pessoas concretas.

Estas canções não são demasiado confessionais? Não está a dar demasiado de si a quem não o conhece?
Não sei… isso até pode acontecer mas não é perigoso para mim. Tenho muita facilidade em distanciar-me da minha própria música. Isto parece que não quero saber, não é? Que não estou preocupado com nada disto. Mas não é isso, é o que sou. E deitei fora muita coisa, deitei fora muito material, coisas que não usei. Imagina se tivesse gravado tudo? Se me estás a perguntar isso agora, nem quero imaginar o que me perguntarias se tivesses ouvido tudo o que não entrou no disco. Enfim, mas eu tento ter cuidado.

Que tipo de cuidado?
Tento ter cuidado para não ficar míope e deixar de ver o plano geral das coisas, é preciso ter cuidado para não ficar preso a detalhes e esse tipo de coisas. Foi por isso que procurei explorar as nuances de tudo isto, as nuances da dor e do amor. É preciso saber reproduzir estas coisas porque se for tudo demasiado particular as pessoas não querem saber, não vão ouvir, as pessoas querem encontrar alguma coisa familiar nas canções que ouvem. E eu quero que as pessoas ouçam. Se assim não fosse, este seria apenas um disco em formato “fuck you bitch”, e isso seria uma treta. Além de não ser verdade e de não ter nada a ver com a situação.

E qual é a situação?
Ouve o disco, man, ouve o disco.

[“Make Way for Love”:]

Entre todas canções, Marlon Williams não diz quem tem culpa, mas assume que também é culpado. Pede desculpa e exige um pedido de desculpas. Confessa que tem saudades e espera que alguém do outro lado as sinta também. Sabe de cor as curvas do corpo de quem está ausente e jura que lhe sente as mãos na pele. É uma bate bola constante, é uma confissão que serve também de pedido. E ao construir o disco desta maneira, faz com que o ouvinte, atento, dedicado e desfeito pela história que está a ouvir, se identifique com o miserável em causa e vista a pele de uma das personagens em jogo. Nada concretiza mais a missão de um álbum intimista do que tornar-se parte da intimidade de quem o escuta. Melhor ainda quando esse mesmo álbum não assume qualquer tipo de missão.

E é bonito de ver que ele não está nem aí para eventuais frases como “tu querias era atenção, és um exibicionista, olhem para mim que sou tão importante”. P’lamordedeus, isso seria algo ao nível da escola preparatória, mais coisa menos coisa.

E neste momento, onde está?
Estou em Londres, estou a tratar de coisas de promoção do disco, tenho de fazer estas coisas. Não é que goste muito, mas tem de ser.

Como dar esta curta entrevista por telefone.
Ah, não, está tudo bem.

E quando tiver que andar de palco em palco a cantar tudo isto?
A digressão… pois, não é bem a minha coisa, não é mesmo. Sou um gajo pacato, tranquilo, não gosto de confusão, não gosto de complicações nem de andar por aí a dar concertos, isso pode gerar problemas. Mas é a única maneira que existe de viver disto, é preciso dar concertos e estou cada vez melhor a lidar com isso.

Talvez um dia trabalhe só no estúdio.
Talvez não: acho que isso vai acontecer inevitavelmente. Mas não agora, ainda não.

[Naturalmente que o epíteto de “disco do ano” pode ser um exagero. Mas vai bem com o álbum em causa. E se no final de 2018 a aposta se confirmar, melhor]

 
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