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AFP/Getty Images

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Mathias Énard: "Nem sempre percebemos que todos somos globalizados"

Mathias Énard veio a Portugal participar no Festival Internacional de Cultura e apresentar o livro que lhe deu o Goncourt. Diz-nos que escreveu "Bússola" para "ver o Oriente além das chamas".

Foi antes do 11 de setembro que Mathias Énard viveu uma década a Oriente, em países como a Síria, o Líbano e o Egipto. Desde então o mundo mudou e locais a que chamou casa, mesmo que temporariamente, estão agora em ruínas. Mudou também o seu percurso: se antes era um académico especialista em literatura oriental a viver no Oriente, agora é um escritor francês a viver em Barcelona – onde tem um restaurante sírio-libanês, o Karakala. Com Zona, editado em 2008, foi eleito pela crítica como uma das vozes francófonas contemporâneas mais relevantes. Com Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes (2010) recebeu o Goncourt des Lycéens. E, no ano passado, com Bússola, o seu sexto romance, chegou a consagração: o autor venceu o Goncourt, o mais prestigiado prémio literário francês. É esse título que chega agora a Portugal.

Bússola é protagonizado por Franz Ritter, um musicólogo meio hipocondríaco que aguarda os resultados de uns exames médicos. Acredita que esses resultados lhe vão ditar uma sentença de morte. É numa longa noite de insónia que as recordações da sua vida no Oriente vão surgir, toldadas por uma nuvem de ópio e sempre habitadas por Sarah, o seu grande amor. E é assim que numa noite em Viena se recordam séculos de história e se fundem o “Eu e o Outro”, descobrindo esse mesmo “Outro em nós”, o Oriente em Flaubert e Balzac, em Mozart e em Beethoven, em tanto daquilo em que assenta a cultural ocidental, em que assentamos nós, sem as chamas que hoje se veem.

Mathias Énard veio a Portugal para participar no Festival Internacional de Cultura, num debate com o título “A literatura pode mudar o mundo?”. Em entrevista ao Observador, o francês não dá respostas definitivas, mas assegura: “A política e a economia não são tudo”.

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“Bússola”, de Mathias Énard (Dom Quixote)

Esta é uma Bússola desnorteada?
Não indica o Norte mas o Oriente. Orientar-se, afinal, não é encontrar o Norte mas encontrar o Oriente. O livro funciona um pouco assim, colocando a agulha a apontar para o Este em vez de para o Norte.

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A Bússola dos media aponta também para Oriente. Foi por isso que quis escrever agora sobre o Oriente?
Ao escrever Bússola quis ver além das chamas, da violência contemporânea. Quis mostrar que as relações são muito mais fundas do que se pode acreditar, que não se pode pôr, de um lado, um Outro violento e longínquo e, do outro lado, uma Europa democrática, plural e perfeita. Não é assim. As nossas relações são muito mais complexas que isto, vêm de trás e, até nos períodos de maior dominação da Europa sobre os territórios que estão a Leste do Mediterrâneo, a Europa utilizou, para modelar a sua arte e a sua cultura, milhões de influências vindas daí.

No livro recorda, aliás, essas mesmas influências, mostrando como, ao longo dos séculos, a arte europeia foi influenciada pela oriental. No entanto hoje parecemos estar fechados a essas influências. Está tudo esquecido?
Não, não acredito que esteja esquecido. Está cada vez mais presente. Hoje traduz-se muito mais do que antes e há interesse por tudo o que vem e trata desses países, basta ver o êxito de Bússola. É um mundo contraditório. Vamos construindo muros muito altos quando, na realidade, tudo é muito mais permeável. Vivemos num mundo muito mais globalizado, em todos os sentidos. Também culturalmente. Mas nem sempre somos capazes de o ver.

Mas não terá essa globalização tornado os países cada vez mais fechados sobre si mesmos, exacerbando, em reação, as suas identidades e frisando cada vez mais o fosso entre o Eu e o Outro?
Onde está hoje a alteridade? Está nesta construção de um outro fanático, violento, muçulmano. Aí radica hoje a alteridade. Mas isso é apenas uma parte da realidade. Daí a ideia de escrever Bússola, que dá uma outra visão, mostra outra realidade, vê além da violência. Neste mundo em que vivemos hoje tudo acontece muito depressa. A informação é um tweet de 140 caracteres, uma imagem no Facebook, um vídeo no Youtube, notícias muito curtas e muito breves, em cadeia constante. Temos que ver além desta imediatez. E perceber, também numa dimensão vertical, de onde vimos.

A arte é importante para isso?
Acredito que sim. É uma das bases. É muito importante em tudo. Comunica noutros planos, junta as pessoas de uma outra forma, comunica com o mundo de maneira diferente.

Em Bússola o mundo é olhado através da arte. Mas hoje o ponte do vista é a política e a economia. Precisamos de mudar o olhar, a perspetiva, a lente?
Sim. A política e a economia não são tudo. Aliás, o que acontece é que vemos certas coisas em Economia que não aplicamos à nossa vida quotidiana. Por exemplo, não nos surpreende que a nossa máquina de lavar seja de uma marca alemã, fabricada na China com peças que vêm de Inglaterra. Para nós isso é normal. Mas, na nossa vida cultural, nem sempre percebemos que todos somos globalizados. Precisamos de ter um ponto de vista mais cosmopolita.

"Quis mostrar que as relações [com o Oriente] são muito mais fundas do que se pode acreditar, que não se pode pôr, de um lado, um Outro violento e longínquo e, do outro lado, uma Europa democrática, plural e perfeita." 

Que nos é, supostamente, cada vez mais acessível: é mais fácil viajar, informarmo-nos do que se passa do lado de lá do mundo, temos vizinhos de todos os continentes. Mas parecemos estar cada vez mais fechados, centrados nos tais Eu e Outro.
É uma das contradições do nosso mundo. Estamos cada vez mais próximos mas não sabemos ver o que está à nossa frente. Vivemos num mundo em que nos chega tanta informação que nos custa organizá-la, perceber onde estamos.

França acaba de proibir o burkini. Vemos hoje com medo um traje que, há uns anos, olharíamos como exótico.
É uma loucura. Há uns anos seria ao contrário, seria visto como algo curioso…

O livro é protagonizado por Franz Ritter, um musicólogo orientalista. Porque o colocou a viver em Viena?
Viena permite-me muitas coisas, é um ponto de partida para a viagem que se faz no livro. É a porta do Oriente, no sentido em que era a fronteira com o Império Otomano, com os Turcos, com a alteridade turca, tendo sido também a capital dos Balcãs, onde está a maior parte do Islão europeu. E é também a capital da música, ou uma das capitais da música na Europa. Como o livro trata de música, Viena pareceu-me o local perfeito para começar esta viagem.

Teria sido fácil fazer da personagem principal escritor mas criou um musicólogo. Porquê?
Interessava-me muito o lado musical do Orientalismo, algo muito pouco conhecido. Todos temos presente o Orientalismo na pintura e na literatura. Mas na música o Orientalismo está um pouco esquecido. Interessa-me mudar isso. E um musicólogo é uma personagem mais idónea.

Qual é a sua relação com a música?
Sou um amador. Sou um apaixonado pela música, mas não sou um profissional.

Pode não ser um musicólogo mas é um orientalista. Partilha isso com Ritter.
Sou um herdeiro da grande geração de orientalistas, porque agora não há verdadeiros orientalistas. Estudei árabe e persa, em Paris, no Instituto de Línguas e Civilizações Orientais, a grande escola de orientalistas que já remonta ao séc. XVIII, onde foram formados muitíssimos estudiosos desses terrenos.

Viajou bastante pelo Oriente…
Sim, vivi lá algum tempo. No Irão, na Síria, no Líbano, no Egipto… No total vivi lá cerca de 10 anos.

Onde gostou mais de viver? Onde esteve mais tempo?
Na Síria, em Damasco e numa pequena vila no Sul. Estive aí cerca de três ou quatro anos. O povo sírio tem um grande sentido da diversidade, do outro, do seu grande passado. E também da sua posição no mundo árabe. E tem uma gastronomia estupenda.

Como é ver esses países agora?
É muito triste. Sobretudo a Síria. O que se está a passar é uma catástrofe. Podia-se ter evitado. Os nossos políticos deram-se conta de que a Síria não está tão longe como se pensava. Havia a ideia de que o que se passa em Damasco, fica em Damasco. Mas agora já se percebeu que as consequências internacionais são muito sérias. Penso que se vai tentar encontrar uma solução muito em breve. Mas, desgraçadamente, será, como sempre, muito tarde. Demasiado tarde.

"O que se está a passar [na Síria] é uma catástrofe. Podia ter-se evitado. Os nossos políticos deram-se conta de que a Síria não está tão longe como se pensava. Vai tentar encontrar-se uma solução muito em breve. Mas, desgraçadamente, será, como sempre, muito tarde. Demasiado tarde."

O que lhe despertou o primeiro interesse pelo Oriente?
Não sei bem o que me interessou primeiro. Mas sei por que me apaixonei depois: pela grande diversidade desses países e regiões. Têm muitas línguas, muitas culturas no mesmo sítio, muitas relações diferentes com a história. Nisso há uma grande parecença com a Europa. Muda-se de língua a cada 50 quilómetros, há muitas religiões, várias variantes do Islão, do Cristianismo. Várias etnias, pessoas que falam curdo, arménio, tudo em locais muito próximos. Isso fascinou-me. Tal como a literatura e a música, que foram encontros realmente frutuosos.

É possível escrever sem esses encontros?
Para mim não. Mas penso que há quem possa escrever falando apenas de si mesmo, muito fechado. Mas essa não é a minha escrita.

Qual é?
Depois de uns quantos livros penso que é precisamente a indagação desse encontro, o que há entre nós nestes territórios mistos. É isso que me interessa.

Tanto Bússola como Zona são uma longa divagação. Aqui o ponto de partida é uma longa noite de insónia, em Zona uma longa viagem de comboio. Interessam-lhe esses momentos em que o cérebro divaga?
Claro. É uma coisa muito literária que funciona por associações, pensa-se numa coisa que vai logo dar a outra. É um terreno muito fértil para a escrita.

Esta é também a história de um homem que se confronta com a morte, está aterrado pela perspetiva de morrer.
Talvez seja um pouco hipocondríaco. A morte é aquilo que temos mais presente mas o que menos podemos ver. Viver é um pouco fugir dessa sentença.

É também uma história de amor. Porquê?
Tal como a morte, também o amor está muito presente nas nossas vidas. Sendo, também ele, afinal, uma incógnita. Que tipo de construção é? Algo consciente? Inconsciente? Tem que ver com a mística ou apenas com a química do cérebro e do corpo? É um mistério. Além disso, o amor é muito importante para a história da literatura, a arte tem muito que ver com o amor, desde a Odisseia e a Ilíada, que têm em si histórias de amor.

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