Morreu Gonçalo Ribeiro Telles. A notícia foi confirmada ao Observador, esta quarta-feira, por fonte próxima da família. O arquiteto tinha 98 anos e morreu em sua casa, em Lisboa.
Na verdade, continuará vivo na memória portuguesa como um dos mais firmes defensores da nossa terra como habitat e paisagem. O seu nome tornou-se ao longo de décadas, sem quebra, uma espécie de sinónimo instantâneo de preocupações ecológicas e de ordenamento do território persistentes e tão precursoras que foram capazes de formar entre nós um módico de consciência ambiental, a que o enquadramento europeísta induziu, como pôde, alguns hábitos de monitorização e reciclagem.
“Mestre paisagista” — expressão incomum tantas vezes utilizada a seu respeito —, Ribeiro Telles deixou desde cedo obra feita na grande arte do jardim, de que tinha “um dom especial” na expressão de Viana Barreto, com um elevado número de trabalhos para residências de amigos e de clientes mais conhecidos — Sophia Mello Breyner e Francisco Sousa Tavares, Lisboa, 1962; Robert Gulbenkian, Casa Ararat, Praia do Rei (Almada), 1963; Jaime Azancot, Malveira da Serra, 1964; Jorge de Mello, Ribafria, 1966; João Abel Manta, Caparica, e António Melo Campallimaud, Guia, ambos em 1967; Fernando Távora, Porto, e Marquesa de Tancos, Cascais, ambos de 1968; António Bustorff Silva, 1970; Mário Soares, Nafarros, e Rui Machete, São Martinho do Porto, ambos de 1989 — e até de residentes estrangeiros, como Conrad Andersen 1956, Carl Wicander 1962, Mrs Mattison 1963, Jean Sautier 1964, André Lefévre 1968, Mrs Coopers 1970…
Numa época muito dinâmica de oferta turística do Algarve, ocupou-se do ordenamento paisagístico de aldeamentos de veraneio e hotéis de alto padrão, além duma estância termal: Prainha-Alvor 1962, Balaia e Vau 1967 e Monfortinho 1971. Três projectos muito inovadores do habitar moderno, o Bairro das Estacas, em Lisboa, a Nova Oeiras, com Sampaio Fontes (ambos de 1953), e o Alto da Barra, em Oeiras (já de 1970), tiveram ajardinamentos e enquadramento paisagístico seus, aliás como já sucedera no Monte Abraão (Queluz) em 1959, com Fontes, e sucederá em 1973 na Aroeira (Almada), com Duarte Sottomayor. Durante o industrialismo marcelista, essa área de trabalho seria estendida — e bem — a instalações fabris (sede da CUF 1960, Standard Eléctrica e Citroën 1967, A Tabaqueira 1968, Hoeschst e Kodak 1969, Timex 1970, entre outras).
Mas Ribeiro Telles dedicou-se ainda a quintas no eixo Sintra-Cascais-Estoril e a herdades agrícolas do sul, de Coruche a Beja, até mesmo à Estação Agrónomica Nacional (Oeiras, 1966), em sequência da próxima Quinta de Recreio dos Marqueses de Pombal, cuja reintegração histórico-artística lhe fora encomendada em 1965 pela Fundação Calouste Gulbenkian — três anos antes do projecto do jardim da sede (1968-69), habitualmente considerada a sua obra-prima mas um trabalho realizado em colaboração com António Viana Barreto (1924-2012), lhe valeu o Prémio Valmor de 1975, e após 2000 seriam renovados por ele. Em 1971, assinou um projecto para os jardins do Hotel Palace, no Vidago. Teresa Andresen, uma das suas principais discípulas, escreveu há vinte anos que, “a partir de 1960, Ribeiro Telles é solicitado para novas paisagens, nomeadamente em resposta aos planos de desenvolvimento do país relativamente à indústria e ao turismo. […] Alguns destes clientes dos jardins particulares tornaram-se os clientes das paisagens da indústria e do turismo”.
Formado em Engenharia Agrónoma pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa em 1950, com uma nota mediana, melhorou-a em dois pontos na licenciatura em Arquitectura Paisagista, um curso livre, ministrado por Francisco Caldeira Cabral, seu manifesto mentor, de que seria segundo-assistente de 1957 a 1963. Este período coincide grosso modo com a sua admissão no Gabinete de Estudos de Urbanização da Câmara Municipal de Lisboa e a publicação dos seus primeiros artigos, como “O Homem perante a Paisagem” na revista Cidade Nova (1956), “A importância actual da vegetação na cidade” (Agros, 1957), “Lisboa assassinada. Em luta por uma cidade mais bela e humana” (Távola Redonda, 1963), “A Cidade e a Natureza Viva” (O Tempo e o Modo, 1966) e, sobretudo, do tratado A Árvore em Portugal (1960), obra de referência em colaboração com Caldeira Cabral, relançada pela Assírio & Alvim em 2001, reimpressa em 2005 e há muito esgotada.
Mas coincide também com o dealbar da sua acção política, substanciada em primeiro lugar com a sua adesão ao Centro Nacional de Cultura, de Fernando Amado, Sophia, Sousa Tavares, Henrique Barrilaro Ruas e outros monárquicos, que com ele fundariam o Movimento dos Monárquicos Independentes em 1957, de vocação eleitoral. Em Março de 1959, esteve envolvido na malograda Revolta da Sé. Papéis da PIDE hoje conservados na Torre do Tombo dão conta de duas ou três buscas à casa do arquitecto e a um interrogatório na Rua António Maria Cardoso, também motivados pela corajosa entrega — foi acompanhado pelo pintor José Escada — na residência oficial de Oliveira Salazar de uma carta de protesto pela quebra de liberdades cívicas e tortura pela polícia política, cuja impressão Ribeiro Telles terá ajudado a pagar.
Em 1961, o antigo dirigente da Juventude Agrária Católica que fizera “oposição social ao regime” por defrontar-se com “a miséria imerecida do nosso mundo rural” levou a melhor sobre engenheiros de estradas que queriam remover a Capela de São Jerónimo, em Belém. Anos volvidos, ficaria célebre a sua intervenção firme e lúcida aquando das catastróficas cheias de 1967, na região de Lisboa. Em 1973, foi impedido de comparecer ao Congresso da Oposição Democrática realizado em Aveiro. A sua comunicação, que alguém leu por ele, versava tão-só “O problema dos espaços verdes urbanos”, sobre o qual falara, meses antes, na Ordem dos Engenheiros do Porto. Ou seja, o futuro não dependia exclusivamente da ordem política: o país precisava de ser pensado a longo termo. Quem folheie as respectivas Actas não encontrará coisa igual.
A oposição monárquica a Salazar-Caetano, ainda que enfraquecida por tendências, egos e reagrupamentos, tem sido bastantes vezes obliterada por conveniência alheia, mas dela ressurgiu o elenco que constituiria o Partido Popular Monárquico, de que Gonçalo Ribeiro Telles seria a principal figura pública, mas não seguramente a mais ideológica. Ainda que um partido monárquico politicamente etiquetado constitua um anacronismo, pois essa opção de regime não é exclusiva duma facção parlamentar, qualquer que seja, o PPM corporarizou então — e não haveria talvez melhor maneira de o conseguir — uma justíssima presença na sociedade que acabaria por ter um papel relevante na formação da Aliança Democrática (1978-83) e na defesa do ambiente e do municipalismo, desde os primeiros governos provisórios. Foram anos duros e bastante exigentes, até na discussão da reforma agrária que realmente importaria ter feito e na regionalização que alguns queriam, aos quais ele dedicou páginas de A Capital e O Dia e o grosso do seu livro Para Além da Revolução, de 1982 (umas e outros hoje antologiados em Por que Sou Monárquico, editado pela Real Associação de Lisboa, 2017, 230 pp.; e tem Textos Escolhidos, Argumentum, 2016, 198 pp.).
Mas o que sobressaiu — e ficou — foi a legislação, entre outras, da Reserva Agrícola Nacional e da Reserva Ecológica Nacional, os Planos Regionais de Ordenamento do Território e os Planos Directores Municipais, todos de 1983 e pilares fundamentais duma política portuguesa de ambiente que, é certo, conheceria depois altos e baixos, atropelamentos e contorcionismos ao ritmo das ambições de lóbis, políticos corruptos ou manhosos e autarcas ineptos. Sem dúvida, um combate permanente pela Paisagem Global e pela Estrutura Ecológica Urbana, e contra os demandos de práticas fatais ou nocivas para a boa fertilidade dos solos agrícolas e a destruição da vida nas aldeias, contra o império do cimento e o avanço do eucalipto, como «infestante» que inquina a biodiversidade e a qualidade da floresta. Mas também muito lhe deve o curso de Arquitectura Paisagista da Universidade de Évora, que formou a partir de 1981 uma nova geração de profissionais e professores, em que se destacam Aurora Carapinha, Margarida Cancela d’Abreu, Teresa Andersen, Maria João Botelho ou Manuela Raposo Magalhães. Teresa Andersen ganharia o I Prémio (2019) Gonçalo Ribeiro Telles para o Ambiente e a Paisagem, instituído pela Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas, fundada em 1976, o Instituto Superior de Agronomia, a Causa Real e a Ordem dos Engenheiros.
Foi em 1981 que Ribeiro Telles assinou o verbete “Arquitectura Paisagista” para a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Em 1993, escreveu — e ninguém o teria feito melhor que ele — o prefácio a Fundamentos da Arquitectura Paisagista de Francisco Caldeira Cabral. Em 2007, faria o mesmo para Princípios de Arquitectura Paisagista e de Ordenamento do Território de António Manuel de Paiva Saraiva. Entre um livro e outro, entre um tempo e outro, Ribeiro Telles balança como um generoso pêndulo intergeracional. Jubilado na Universidade de Évora em 1992, seria doutor honoris causa pela mesma academia em Novembro de 1994, e a sua laudatio intitulou-se “Um novo conceito de paisagem gradual: tradição, confrontos e futuro”.
Mas aos 72 anos a vida pode bem recomeçar, e Gonçalo Ribeiro Telles vai concentrar-se de novo nos problemas da capital, dirigindo de 1998 a 2002 o gabinete técnico que concebeu o chamado “Plano Verde de Lisboa”, como contributo para a revisão do PDM, que incluiu o corredor verde de Monsanto (ainda há pouco por concluir) e o parque periférico (abandonado). Fez a graça do enquadramento paisagístico da Liga de Protecção da Natureza, em Benfica, mas sobretudo conhecemos e desfrutamos do jardim Amália Rodrigues, no Alto do Parque Eduardo VII, e do jardim do Cabeço das Rolas, no Parque das Nações.
Em Abril de 2013 foi surpreendido com a atribuição do Sir Geoffrey Jellicoe Award, a mais alta distinção internacional para arquitectura paisagista. Três anos depois, João Mário Grilo realizou o documentário “A Vossa Terra: Paisagens de Gonçalo Ribeiro Telles”, que se juntou a “Em Nome da Terra” de Rita Saldanha e Miguel Ferraz (2008-9). No verão de 2020 uma exposição dos seus trabalhos foi instalada na igreja dos Carpinteiros, na Rua de São José, em Lisboa, a poucos passos da casa de 1814 em que desde sempre viveu — e aos prodigiosos 98 anos morreu.