Beyoncé e Drake precisam de pouco para provocar convulsões na internet, basta existirem, fazerem um tweet, ou publicarem uma foto. Só o facto de terem algo novo para mostrar gera ondas de choque mas, desta vez, o assunto não é tanto a música nova, mas sim o tipo de música e a coincidência e ambos terem optado por fazer house — no caso de Beyoncé, claramente inspirada nos anos 90.
Honestly, Nevermind…, novo álbum de Drake, e “Break My Soul”, novo single de Beyoncé, estão a levar a internet à loucura. Entre fãs de Drake que se sentem defraudados porque o seu herói se desviou do caminho, jornalistas e opinadores que dissertam sobre múltiplas implicações do fenómeno e clamam o regresso da house ou a sua devolução às origens negras (como se a house estivesse moribunda e as suas raízes apagadas) e ainda produtores e DJs de house confundidos com todo o alarido, o fluxo de opinião continua imparável. O álbum de Drake e o single de Beyoncé são oficialmente acontecimentos que, para alguns, anunciam uma mudança de paradigma. Isso poderá até ser verdade para cada um dos artistas, e espera-se que a nível global possam contribuir para uma desejada mudança (nomeadamente o declínio do circo ditatorial da EDM), mas não há aqui nenhuma revolução.
[“Break My Soul”, de Beyoncé:]
No novo Honestly, Nevermind… dedicado a Virgil Abloh, diretor criativo da Louis Vuitton e DJ, falecido o ano passado, Drake esforça-se por fazer algo diferente e rodeia-se de produtores de house como o sul africano Black Coffee (que ganhou o Grammy de melhor álbum de música de dança) e o americano Gordo (ex-Carnage). As únicas duas canções em sintonia com a sua personalidade habitual, ou seja, as mais fiéis ao trap e ao hip hop, são remetidas para o final do disco, e o resto do tempo é passado a namorar a pista de dança com produção house elegante, poderíamos até dizer, bem comportada, inegavelmente sofisticada e, acima de tudo, inesperada.
Sabemos que é Drake porque ouvimos a voz, mas, até a cantar ele tenta sair da zona de conforto (mesmo que não descole totalmente do mumble rap arrastado e centrado no próprio umbigo). Percebe-se porque razão os fãs de trap estão baralhados, mas há que elogiar o espírito aventureiro de Drake, que já tinha feito algumas aproximações à pista samplando, por exemplo, Moodymann (em “Passionfruit”), um dos maiores heróis house dos últimos 25 anos, ainda que o seu brilho e influência se façam sentir, sobretudo, nos circuitos mais alternativos.
Já Beyoncé tem apenas um single, “Break My Soul”, onde credita os produtores de “Show Me Love” de Robin S, gigantesco hit de pista de 1990, altura em que as acrobacias vocais de divas soul enchiam os clubes de sorrisos (quem não se lembra de “The Only Way Is Up” de Yazz, “People Hold On” dos Coldcut com Lisa Stansfield, ou “Gipsy Woman” de Crystal Waters?). Aparentemente, não se trata exatamente de um sample, mas, como é usada a mesma e inconfundível bassline (do sintetizador Korg M1), os produtores originais de “Show Me Love”, Allen George e Fred McFarlane, foram creditados.
Esse elemento tão reconhecível coloca-a imediatamente nos anos 90, é verdade, mas vendo bem, Beyoncé está no seu território natural, sempre foi uma diva e as suas músicas já tinham chegado à pista de dança antes. Mas agora, com este tipo de produção, faz ainda mais sentido. “Break My Soul” pode muito bem vir a ser um ponto de viragem para Beyoncé, as perspetivas são interessantes, mas ver cantoras pop/soul a abraçar a música de dança não é novidade. Janet Jackson e Madonna, além de muitas outras, fizeram-no nos anos 90, o que aliás continua a servir de inspiração hoje em dia a nomes como Jessie Ware ou Dua Lipa, por exemplo, que, de formas diferentes, têm sabido manter o foco na pista.
Mas afinal o que é isso da música house e porque se fala num regresso? House é um género de música de dança que emergiu da cena disco, em clubes de Chicago, no início dos anos 80. Ron Hardy, Frankie Knuckles ou Jesse Saunders são alguns dos nomes fundadores da cena. Chama-se house porque era o tipo de som que se ouvia num club chamado Warehouse, onde Frankie Knuckles começou a misturar os discos que tocava, para as pessoas que dançavam não esmorecerem entre uma música e outra. Daí a fazer sua própria música para satisfazer o desejo de movimento na pista, foi um pequeno passo.
Usando equipamentos baratos e caídos em desuso como sintetizadores e caixas de ritmos, nomeadamente as Rolands 303, 808 e 909, os DJs passaram a produtores e criaram uma nova linguagem para a pista de dança, assente em padrões rítmicos definidos (o famoso 4 por 4) e linhas de baixo bem marcadas, entre outras características. Em meados da década de 80, já havia discos com o rótulo house nas prateleiras das discotecas e de Chicago, a música rapidamente alastrou para outras cidades dos Estados Unidos e depois também para a Europa, onde influenciou a cena de Madchester, a revolução acid house e todo o movimento rave, isto ainda nos anos 80.
[“Honestly, Nevermind”, o novo álbum de Drake:]
Nos anos 90, a house serviu de subtexto à tomada de poder da música de dança, e à implantação da club culture, expandindo-se em múltiplas direcções, de Nova Iorque a Londres, Tóquio, Paris ou Lisboa, no mainstream como no underground, na música de gente como Corona, Faithless, Daft Punk, ou Underground Sound Of Lisbon, entre muitos, muitos outros.
E Portugal levantou-se: a revolução da dança eletrónica nos anos 90
Enquanto género, a house é prolífica e democrática, tem uma família de subgéneros quase infindável, que inclui acid house, micro e deep house, garage, electro, latin, tech ou progressive house… até houve um género específico, na transição dos anos 80 para os anos 90, que misturou hip hop e house e arrasou nas pistas — o hip house, que teve alguns dos seus momentos altos nos belgas Technotronic e nos americanos Jungle Brothers (“Pump Up The Jam” dos primeiros e “I’ll House You”, dos segundos, continuam infalíveis mais de 30 anos depois da sua edição). A capacidade de servir vários propósitos, tem permitido que a house se expanda em várias direções, umas mais interessantes do que outras, algumas exploratórias e surpreendentes, outras puramente calculistas, sem outro objectivo que não encher vazios na pista.
Neste século, a vitalidade e influência da house continuam inegáveis, mas, porque a EDM encadeou pelo menos metade do mundo com o barulho das luzes, os mais ofuscados podem pensar que estava desaparecida do radar e que Beyoncé e Drake vieram resgatá-la dos confins da memória. Mas basta pensar nos Disclosure, em Jessie Ware ou até em Four Tet e Roisin Murphy, todos britânicos, por sinal, para termos a certeza que a house continuou a ser território habitado, mesmo enquanto David Guetta e amigos hipnotizavam as atenções do público com explosões de luz e som. Se nos focarmos na produção mais underground, é ainda mais óbvio que a house nunca desapareceu, continuou a servir de combustivel às pistas de dança, tratada de forma exemplar por gente como Moodymann ou Omar S, para citar apenas dois americanos, negros, e com toque de Midas.
Por muito que Drake e Beyoncé tenham feito discos house (ainda que diferentes), falar num regresso é só possível para quem tem estado distraído. E se é indiscutivel que a house, como toda a música de dança, deve muito às comunidades de negros e latinos, muitos deles gay, que alimentaram a cena na origem, ver nos novos lançamentos de Drake e Beyoncé uma devolução às origens negras do movimento pode até ser bem intencionado, mas é um pouco exagerado e também injusto. Para os músicos e produtores que sempre fizeram house, muitos deles negros, deve ser o tipo de coisa que soa mais a reescrita da história pelo mainstream, ignorando o papel underground, do que a qualquer reclamar das origens.
Mas, tirando todas essas camadas de argumentação e as inevitáveis questões de escala e exposição, há óbvios motivos de satisfação: ambos os discos estão bem, Drake soa fresco, Beyoncé poderosa e, idealmente, ambos terão um efeito de contaminação que permitirá finalmente encerrar o tenebroso capítulo da hegemonia EDM, que dura há mais de uma década e quase remeteu a um silêncio insignificante tudo o que não fosse fogo de artifício, crescendo fácil e catarses programadas. Cruzo os dedos para que isso aconteça, ao mesmo tempo que temo por alguns dos possíveis efeitos de repetição das fórmulas agora usadas por Beyoncé e Drake. Quantos trappers vão tentar fazer house depois de ouvir Drake e como vamos lidar com isso, eis a minha principal questão.