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"Comecei a escrever muito pequena e isso ajudou-me a ter essa companhia, a sentir que existem pessoas que não têm receio de ter profundidade e não têm receio de escrever sobre isso", diz-nos Rita Vian
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"Comecei a escrever muito pequena e isso ajudou-me a ter essa companhia, a sentir que existem pessoas que não têm receio de ter profundidade e não têm receio de escrever sobre isso", diz-nos Rita Vian

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Comecei a escrever muito pequena e isso ajudou-me a ter essa companhia, a sentir que existem pessoas que não têm receio de ter profundidade e não têm receio de escrever sobre isso", diz-nos Rita Vian

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Na voz um travo fadista, no ritmo a batida eletrónica: é no futuro que Rita Vian canta a melancolia portuguesa

Podia ser uma equação: ritmo eletrónico + travo tradicional na voz = Rita Vian. O primeiro EP, com produção de Branko, revela um caminho novo para a canção portuguesa. Entrevistámo-la em Lisboa.

Quando era pequena, Rita Vian já imaginava caminhos inusitados para o fado e para a canção tradicional portuguesa sem o saber. Em sua casa, enquanto crescia, cantavam-se fados com duas particularidades: por um lado, nem sinais de guitarra portuguesa ou dos instrumentos que tradicionalmente musicam este género; por outro, havia quem — como ela — não soubesse sequer que o que estava a cantar era fado. “Muitas das músicas que se cantavam em minha casa eram fados e eu não sabia porque não as ouvia em mais lado nenhum, por exemplo na rádio”, diz-nos Rita Vian.

Não é portanto de agora que a cantora e compositora, hoje com 29 anos, aborda livremente os ritmos da tradição musical e popular portuguesa — mesmo que seja só a partir de agora que parte do país a conheça, dado que acaba de editar sem aviso prévio um EP (ou mini-álbum) de cinco canções, intitulado Caos’a e com produção de Branko, mestre do ritmo dançante que o país ficou a conhecer no grupo Buraka Som Sistema e que se continua a reinventar a solo.

Nos cinco temas do disco, a primeira coleção de canções de Rita Vian como artista a solo, ouvimo-la cantar com trejeitos tradicionais e fadistas acompanhada por batidas eletrónicas com travo dançante. Mas nas origens familiares e nas experiências em criança encontra-se uma das raízes da ideia de que as palavras, por mais solenes, cuidadas ou tradicionais que sejam, podem ser cantadas com um acompanhamento melódico, harmónico ou rítmico, inesperado, pouco usual.

Sentada numa esplanada de um quiosque na Doca da Marinha, em Lisboa, ao lado do Tejo, perto do Campo das Cebolas e a meio caminho entre Terreiro do Paço e o Terminal de Cruzeiros, Rita Vian recua às memórias de infância a cantar a capella composições do histórico Raul Ferrão para dizer: “O fado para mim acabou por nunca ter obrigatoriedade de som por trás”. Talvez seja só uma outra forma de dizer que cresceu a cantar fados sem respeitinho e reverência ao acompanhamento musical e às melodias tradicionais.

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Os primeiros sinais já tinham chegado, com as primeiras canções — um tema em particular, “Purga” — a chegarem às rádios nacionais e a desconcertarem pelo ritmo português e afadistado, um pouco arrastado mas mais rápido do que o habitual (e a piscar o olho, aqui e ali, ao canto gitano), com que Rita Vian pincelava batidas eletrónicas. Agora, tudo se reforça e fica a certeza: isto já não é fado reinventado, é a velha tradição portuguesa e a antiga melancolia lusitana a namorarem os sons de uma Lisboa noturna, multicultural, futurista até pelo tom suavemente épico de alguns destes ritmos.

Se ainda existirem dúvidas de que se pode casar a melancolia e a saudade que se ouvem na alma e na canção portuguesa com os ambientes rítmicos da eletrónica lusófona, oiça-se “HPA” ou “Plana”, oiçam-se os jogos serpeantes e ondulantes da voz de Rita Vian em “Trago”, tudo passos em frente rumo a uma nova ideia de canção nacional.

A capa do EP de Rita Vian, “Caos’a”

Habitualmente enquadrada pela crítica num “movimento” global de conjugação de batidas eletrónicas com tradições, velhos ritmos e modos de cantar regionais — uma espécie de pop moderna e dançante, mas com travo local —, Rita Vian descontrói tudo isto em duas ou três frases. Diz, por exemplo, o que lhe interessa na música que se propõe a cantar: “Se a batida for algo que me soa a novo, a fresco e em que consiga pôr uma voz que sei que não vai seguir nenhum estilo, sei que vou conseguir identificar-me ali, sei que não fui buscar algo a um sítio isolado”. E mostra, já no fim da entrevista, que não está interessada em fronteiras e não tem pruridos em misturar géneros supostamente inconciliáveis: “Se estou a ir para casa e a ouvir um funk, um fado… se conseguir ter tudo isso no mesmo sítio [na mesma canção]…”.

Já sobre se esta canção é uma nova estirpe de fado, o melhor é jogar à defesa: “Acho que quem faz parte do fado, quem é fadista e quem está dentro desse universo di-lo-á melhor. Acho que levo na voz um trejeito fadista, um trejeito português. Não lhe vou dar o nome de fado porque… apesar de cantar muitos fados a capella não lhe vou chamar novo fado. Acho que nada fica estanque e há sempre descobertas que nascem e que mais tarde acabarão por ter um nome. Agora chamam-lhe novo fado, se calhar daqui a cinco anos podemos chegar a uma conclusão mais clara sobre qual é a mancha que surge desta junção de universos que acontece em cidades grandes, em espaços onde tudo se funde e onde as coisas deixam de ter uma função, porque todas fazem parte umas das outras e não vivem umas sem as outras”.

“Rita, canta mais um”

Quando começou a perceber que gostava de cantar, primeiro, e que talvez tivesse jeito para cantar, depois?
Sempre cantei, desde que era miúda. A minha família canta toda, toca toda instrumentos. Toda a gente toca e canta de ouvido. A minha avó era pianista e por acaso acho que aprendeu a tocar piano com professores, mas não era profissão. Acabou por me ensinar a tocar piano, também aprendi as músicas dela por ir ouvindo em miúda e depois por começar a tocar. Mas sempre cantei, sempre fez parte do meu dia-a-dia e do meu universo, apesar de no início ter muita vergonha.

Não queria cantar em público?
Lembro-me de ser miúda, toda a gente cantar e eu ter muita vergonha. Toda a gente cantava em festas de família, aniversários, Natal, eu era a única pessoa que se escondia atrás das pernas do meu pai porque não queria. Também ninguém me estava a obrigar a nada, mas não queria cantar. Acho que essa timidez acabou por me fazer bem, guardei muitas coisas que queria dizer e exprimir. Ao longo dos anos fui cantando sempre. Muitas das músicas que se cantavam em minha casa eram fados e eu não sabia porque não as ouvia em mais lado nenhum, por exemplo na rádio. Eram partituras que a minha avó tinha. Fui à procura delas há uns anos no Youtube, mas só agora muito recentemente e a propósito deste EP é que fui ler as partituras — pedi a um tio meu que estava em Tomar, na casa dos meus avós.

Que composições eram?
Eram músicas do Raul Ferrão, um compositor que escrevia muitos fados [por exemplo, “Lisboa Não Sejas Francesa”], escrevia partituras e a minha avó usava-as para piano. O fado para mim acabou por nunca ter obrigatoriedade de som por trás. Como cantávamos estas músicas a capella juntos, com muitas vozes e muitas harmonias, só fiz a relação entre aquilo e fado muito mais tarde. E levei essas composições que cantava para o meu grupo de amigos, que ao longo da minha adolescência eram todos rappers. Ninguém estava ligado a fado nem a música tradicional portuguesa.

Cantar com amigos: "No final da noite alguém me pedia para cantar — fosse no Bairro Alto, fosse num fim-de-semana que íamos todos passar fora, fosse em férias de secundário, fosse até nos Santos Populares de madrugada. Existiam sempre momentos em que fechava os olhos ou virava-me de costas, para não ficar muito constrangida, e cantava três ou quatro fados."

Cantava perto dos amigos? Em que contextos?
No final da noite alguém me pedia para cantar — fosse no Bairro Alto, fosse num fim-de-semana que íamos todos passar fora, fosse em férias de secundário, fosse até nos Santos Populares de madrugada, ali na zona da Mouraria. Existiam sempre momentos em que fechava os olhos ou virava-me de costas e cantava três ou quatro fados. Nenhum deles sabia nenhum, pediam-me só para cantar um bocado, às vezes pediam-me para ficar muito tempo de olhos fechados para não ver que tinha chegado muita gente. As pessoas iam chegando e iam-se sentando para ouvir. Para eu não ficar muito constrangida com isso, diziam: ‘Rita, não te vires, canta mais um’. Ficava a cantar três, quatro, cinco fados — sempre a capella. Era a forma de expressão que trazia de casa. Para mim era normal, para eles era novidade. Não tinha som por trás. Só fui cantar a uma casa de fados uma vez.

É interessante dizer isso porque fala-se da mistura entre tradicional e moderno nas suas canções. Provavelmente o tradicional estará mais na forma de cantar, no uso da voz e no fraseado — e o moderno estará mais na batida.
Sim.

É curioso que a sua relação com o fado e com a música mais tradicional já tenha começado pela voz, pelo canto, sem música a acompanhar. Esses trejeitos mantêm-se no canto, agora junta-lhes batidas eletrónicas e modernas.
Acho que são coisas que trago. A minha mãe perguntava-me muito: “Rita, que música é esta?” Músicas até modernas. Sempre que ela as cantava, dificilmente… a minha mãe canta muito bem, é afinada, mas dificilmente saberia que música estava a cantar porque ela cantava-a automaticamente de maneira muito portuguesa e muito simples, simplificava muito as músicas. Trago muito isso comigo, inconscientemente, não só dela como de toda a gente que cantava lá em casa — do meu pai também.

[o single “Trago”:]

O seu pai também cantava?
Sim, mas acho que nem se apercebia que cantava. Cantava mais na onda de Beatles e coisa assim. O meu pai é mais ligado a esse lado, gostava de grandes “hinos” e grandes canções, com melodias muito fortes. Foi ele que me levou pela primeira vez a um festival, levou-me ao Rock in Rio quando eu tinha talvez 14 anos. Acho que foi a primeira edição do Rock in Rio [Lisboa]. Levou-me num dia em que eu estava triste por alguma razão. Nem sabia propriamente onde ia. Pôs-me no centro do Parque da Bela Vista e disse-me: “aqui é que tens de ouvir os concertos, é aqui que se ouve bem”. Ele ligava muito ao som. Dizia-me assim: aquelas pessoas que estão a ouvir este concerto, na verdade não o estão o ouvir porque para isso têm de estar aqui. Houve sempre um cuidado com o som, uma atenção a melodias fortes, mas sempre acharam que os filhos — somos três, tenho dois irmãos —, não iam ligar nada a isso. Acabou por ficar no nosso subconsciente, essa atenção à música.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Apesar da ligação à música, os seus pais tinham profissões paralelas?
Sim. A minha mãe é professora de português, por exemplo. São músicos em corpos de professores e engenheiros. O meu pai é engenheiro, não tem nada a ver com músico mas chegava a casa e tocava a “Michelle” dos Beatles sentado com uma guitarra. Sabia aquilo não sei como, aprendeu sozinho. Isso passou para os filhos: eu toco piano, os meus irmãos tocam guitarra. A minha mãe só cantava em português, sempre, exceto algumas canções mais antigas em francês. A canção francesa tem algumas melodias tradicionais parecidas com as nossas. Mas quando estamos juntos, em conjunto só cantamos canções em português.

Tenho esta curiosidade: a escrita de canções tem um lado mais diretamente musical, que passa pela batida e pelo canto, e um lado mais literário e lírico, que passa pela letra. Interessou-se primeiro pela música ou pelas palavras?
Terá acontecido a par e passo. Mas acabei por ouvir muito hip-hop a crescer. O que sempre me interessou muito no hip-hop foi conseguir estar a ouvir uma canção que tem texto suficiente para acompanhar a quantidade de coisas em que estou a pensar. Sempre tive curiosidade em perceber como poderia simplificar os meus textos. A “Purga”, por exemplo, tem muito texto.

[“Purga”:]

Era suposto ter ficado bem maior, não era?
Era para ter o dobro do tempo. E mesmo assim… quando estou contente com uma canção vai assim, quem gostar gostou, quem achar que tinha muito texto, respeito. Era o que tinha para dizer. Também acho que existe necessidade de se aprender a fazer chegar a mensagem, a simplificar-se. É esse equilíbrio que procuro para os textos. Demorei a chegar a uma fórmula: como ponho a quantidade de coisas que penso e que quero escrever e transmitir numa mensagem [canção] que chegue e não fique perdida em milhares de informações?

"Sou empregada de mesa há uns anos e muitas ideias soltas que apanho em conversas quando estou a levantar uma mesa são ideias que levo. Às vezes estou à procura de uma ideia dentro da minha cabeça, não a encontro mas quando estou a levantar dois copos e oiço alguém dizer 'já ninguém pensa em nada', consigo aproveitar aquilo"

Chegou a acontecer escrever sem ser letras de canções ? E é uma coisa que costuma fazer?
Sim, estou sempre a escrever, sempre escrevi. Quando não tenho oportunidade de escrever gravo em texto o que estou a pensar para não me esquecer de uma ideia. Sou empregada de mesa há uns anos e muitas ideias soltas que apanho em conversas quando estou a levantar uma mesa são ideias que levo e que consigo descontextualizar para coisas que me ajudam imenso. Às vezes estou à procura de uma ideia dentro da minha cabeça, não a encontro mas quando estou a levantar dois copos e oiço alguém dizer ‘já ninguém pensa em nada’, consigo aproveitar aquilo de repente e roubar um pormenor.

Este EP tem uma componente muito circunstancial, sobre a minha realidade do dia-a-dia, sobre estar a trabalhar. A “Purga” também foi escrita a trabalhar, no trajeto que faço até casa — do Cais do Sodré, onde trabalho, a Marvila, onde moro — e tem muito este registo de tentar roubar coisas que todos conversamos no café, todos pensamos a chegar a casa, todos pensamos quando estamos sozinhos e gostamos de alguém e temos saudades. É um bocado isso.

Lembra-se de algum exemplo neste EP de canções que tenham excertos de alguma dessas conversas ouvidas enquanto trabalha?
Há uma música que não está neste EP que tinha uma frase dessas, que era a “já ninguém pensa em nada”, mas ficou de fora. Há muitas ideias relacionadas, há frases na “Purga” que falam sobre estar a trabalhar, sobre passar o pano numa mesa e estar a pensar em coisas que tenho de escrever e pôr no papel, conjugando isso com o meu trabalho e com o que me leva a pagar as minhas contas.

Na “HPA”, que é um dos temas do disco, está um pensamento que tenho muitas vezes sobre a quantidade de coisas que fiz até hoje, a quantidade de profissões que já tive. O meu objetivo em termos profissionais foi sempre encontrar um sítio onde me sentisse o mais livre possível. Livre de tudo, de estar a pensar que não devia estar num sítio, por poder ter a cabeça livre e ter um trabalho só físico, por sentir que não estou a cumprir nenhum objetivo social relativo a estar em algum tipo de profissão.

[ouça o EP “CAOS’A” na íntegra através do Spotify:]

Livre também do peso de trabalhar em algo que sentisse que não poderia de modo algum abdicar?
De algo que não pudesse deixar, que tivesse de cumprir para seguir uma carreira que nunca quis ter. Teria de ser um trabalho simples e bem acompanhado. Escolho sempre trabalhos em que me veja rodeado de pessoas de quem gosto, em que esteja perto de pessoas tão livres como eu. Trabalhar num bar também me deu muito essa liberdade nos últimos anos — a de sentir que estamos ali todos à procura de qualquer coisa mas estamos juntos e estamos presentes, não estamos a pensar que queremos ir para casa. Está-se ali num contexto em que no final do dia estás a beber uma cerveja, se calhar vamos para casa uns dos outros e ficamos todos a conversar mais um bocado. Há muita liberdade de espírito nisso, dá-me muita liberdade e inspiração para escrever.

A “HPA” é uma dessas ideias: acho que já tive tantas versões alternativas da minha existência que às vezes questionava-me sobre onde estaria se alguma tivesse continuado. Acho que toda a gente tem esse pensamento, seja profissionalmente seja sobre relações que tivemos com pessoas — e se tivéssemos continuidade numa relação, num trabalho, e se não tivéssemos dado aquele salto que nos assusta sempre? Será que essas versões existem verdadeiramente ou não? Somos mesmo esta pessoa que escolhe o caminho?

“Gosto de escrever coisas que seja complicadas e que resolvam sentimentos”

O que é que acha que a fez gostar de fado, ter alguma ligação ao fado?
Ouvi sempre fado e não sabia. As músicas que ouvi em casa da minha avó eram fados e não sabia, só começando a ouvir a Amália e já depois disso é que me apercebi. Gostei sempre de fado, foi sempre aquilo que me preencheu a tempo inteiro na vontade de cantar, no que escrevia. Mesmo em miúda acho que tive um lado muito profundo e mais solitário, até é uma coisa estranha para as pessoas quando és mais miúdo mas isso [a música e a profundidade do fado] fazia-me sentir acompanhada. Acho que não há problema nenhum em teres profundidades e teres estes pensamentos todos que queres passar para um papel. Comecei a escrever muito pequena e isso ajudou-me a ter essa companhia, a sentir que existem pessoas que não têm receio de ter profundidade e não têm receio de escrever sobre isso.

Esse traço de personalidade pode tê-la levado a interessar-se mais pelas artes, por aquilo que fugisse ao quotidiano?
Sim. Até com filmes acontecia — vejo filmes sempre à procura de uma mensagem. Ficava muito desacreditada com muito cinema que se vê normalmente porque gosto sempre de procurar tudo o que tenha uma mensagem. E uma mensagem que tenha várias leituras, universal o suficiente para qualquer pessoa poder ter uma leitura diferente daquilo com repercussões para a sua própria vida. Ainda não percebi como é vista a maneira como escrevo, mas tenho a ambição de que as coisas não fiquem numa linha ao cimo da água e venham mais a fundo, que, tendo visibilidade suficiente para as pessoas chegarem lá, tenham essa profundidade. Gosto de escrever coisas que seja complicadas e que resolvam sentimentos, mais do que os evidenciam. O que sinto que acontece muito em músicas que ouço é as emoções estarem espelhadas — acontece-me ver os meus sentimentos espelhados nas canções. Aqui tento resolvê-los um bocadinho mais, ando à procura de soluções nas frases e nas conclusões das músicas em vez de deixar os sentimentos e os problemas no ar.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Falávamos antes do seu percurso. Quando começa a fazer parte da banda Beautify Junkyards e porque quis fazer parte?
Conheci o João Pedro Moreira, que faz parte dos Beautify Junkards, em 2010 ou 2011. Acabámos por nos cruzar muito em Lisboa. Ele levou-me a um casting para a banda. Apesar de na altura ter algumas hipóteses de me juntar a outras pessoas, os Beautify tinham um lado tradicional português e um estilo que não era bem definido. Iam buscar samples, iam buscar beats também, o que me deixava curiosa porque estive muito tempo a procurar uma linguagem. Com o tempo fui fazendo as minhas melodias mas todo o projeto já tinha uma direção muito definida, tinha objetivos claros e muitas das influências daquela música vinham de estilos que não ouvia.

Fui divergindo um pouco e isso até é algo bom, o facto de divergires de algo é um bom sinal, significa que estás à procura e que deves prosseguir. Acabei por sair por causa disso. Acabei por nunca ter um input muito grande, era um projeto que já existia por si, estava lá mas não fazia parte de corpo e alma. Levo muitas aprendizagens e grandes amigos, mas não era eu que lá estava, era a minha aprendizagem, o meu percurso, tudo isso — que também é muito importante.

Quando deixou de fazer parte da banda, exatamente?
Entre o fim de 2017 e 2018. Depois ainda dei um concerto em 2019, que estava marcado há um ano.

Quando saiu, foi já porque tinha a ideia de começar um trajeto de canções a solo?
Sim. Ainda não tinha escrito canções mas há momentos em que percebes que tiraste tudo o que havia para tirar de um lugar. Apercebi-me disso. Quando dás esse tipo de salto e te vês solto, há coisas que acontecem naturalmente. Começaram a surgir músicas, surgiram logo a “Sereia” e “Diágonas”, que demorei depois um ano a terminar cada uma porque trabalhei-as muito em cada pormenor. Também demorei a encontrar pessoas.

Até foi nesta rua, numa destas janelas… houve um dia que estava muito desacreditada de por onde iria, com quem iria trabalhar e quem quereria fazer comigo esta junção de clássico e eletrónico. Estava aqui numa janela com o Miguel, o Mike El Nite, numa festa de anos e ele é que me disse que o Benji Prince, que tinha misturado a “Carmen”, gostava de falar comigo e era uma pessoa a quem poderia telefonar. No dia a seguir estava no café onde trabalhava, em Marvila, e mandei uma mensagem ao Benji.

Foi a partir desse tema, o “Carmen”, que algumas pessoas passaram a perguntar-se quem era a Rita Vian.
A “Carmencita” era um dos fados que cantava a capella. O Mike El Nite é um dos meus melhores amigos e esse era um dos fados que cantava no nosso grupo de amigos no final da noite. Uma vez, aí em 2016, estávamos na Praça da Figueira e ele disse-me: vou fazer um som com um sample da “Carmencita”, podias era fazer ali umas vozes, eternizávamos isto de cantares tanto esse fado. Tem um grande significado: foi a primeira vez que levei uma coisa que fazia mesmo parte de mim e daquilo que sempre fiz com os meus amigos, que vem de dentro, da minha história, e transpus isso para uma música — ainda por cima feita com o meu melhor amigo.

"Estou a trabalhar, passo o dia inteiro a ouvir funk com um amigo meu, de repente dou por mim e estou a cantar um funk brasileiro enquanto trabalho e já estou a dar um trejeito meu àquilo. Nunca fui uma pessoa que só ouvia música de um só registo. Se a batida for algo que me soa a novo, a fresco e em que consiga pôr uma voz que sei que não vai seguir nenhum estilo, sei que vou conseguir identificar-me ali. Se for um universo muito estanque não me sinto inspirada a cantar."

Falava há pouco da ideia de juntar uma estética tradicional com música eletrónica. Quando começou a pensar nisso? Muito antes de começar a revelar as primeiras canções ou pouco antes disso?
Nunca foi exatamente consciente. Acho que fui sempre muito relaxada no sentido em que acredito muito que quando as coisas são verdadeiras acabam por acontecer inevitavelmente — o caminho leva-te lá quer queiras quer não, haverá alguém que o vê em ti. Acredito nisso. E essas coisas foram acontecendo: essa música com o Miguel [Mike El Nite] que só mais tarde é que percebi a importância que teve para mim, o aparecimento do Branko… acordei de manhã um dia e tinha uma mensagem do Branko, daí chegarmos agora a este EP. Também é um bocado perigoso dizer isto porque tudo aconteceu acompanhado de muito trabalho e esforço. Fui ter com o Benji Price, com o Franklin Beats, um lado de mim foi muita ativo e procurou isso [esta estética], mas há coisas que aconteceram por acaso, inconscientemente. As coisas aparecem e vai-se respondendo ao que nos parece fazer sentido. Depois acabam acabam por chegar às pessoas quanto mais verdadeiras e mais sentidas forem, parece-me.

Nem tudo é pensado, portanto? Não definiu a dada altura, muito firmemente: ‘agora sou a Rita Vian, que identidade como artista é que vou ter, o que pode ser a minha música de modo a acrescentar algo novo, agora vou aqui misturar o tradicional com o moderno’?
Não. Vou dar um exemplo: há uns anos tinha uma brincadeira com um amigo que passava por procurar todas as versões possíveis do mundo em kizomba, ouvir qualquer música descontruída em kizomba. Ou este outro exemplo: estou a trabalhar, passo o dia inteiro a ouvir funk com um amigo meu, de repente dou por mim e estou a cantar um funk brasileiro enquanto trabalho e já estou a dar um trejeito meu àquilo. Depois de anos a fazer isso naturalmente… Quando o Branko está a tocar ou quando o Franklin Beats me manda uma batida, começo a cantar uma letra por cima. É o que faço diariamente, oiço qualquer género de música…

… E dá-lhe o seu travo?
E já estou a cantar por cima, porque gosto de cantar. E quando estou a cantar oiço a minha interpretação e não ligo muito ao que está por trás. Percebo a ligação entre o tradicional e o moderno, é aliás óbvia, mas ao mesmo tempo é o que inconscientemente fiz sempre. Nunca fui uma pessoa que só ouvia música ‘daquele’ registo e não saía ‘daquele’ registo ou estilo. Estando em Lisboa, toda a minha vida foi composta de influência e de margens e de junções. Às tantas a multiculturalidade é que é ‘a’ cultura, tudo o que és é tudo o que fazes. Já recebi “beats” em que digo “isto é muito puxado para mim” ou “isto leva-me para um universo muito específico e concreto”.

Retrai-se quando sente que a batida a transporta para um universo mais óbvio, já explorado?
Sim, se for um universo muito estanque não me sinto inspirada a cantar. Se a batida for algo que me soa a novo, a fresco e em que consiga pôr uma voz que sei que não vai seguir nenhum estilo, sei que vou conseguir identificar-me ali, sei que não fui buscar algo a um sítio isolado. Aí, identifico-me.

"Acho que levo na voz um trejeito fadista, um trejeito português. Não lhe vou chamar novo fado. Acho que nada fica estanque e há sempre descobertas que nascem e que mais tarde acabarão por ter um nome. Agora chamam-lhe novo fado, se calhar daqui a cinco anos podemos chegar a uma conclusão mais clara sobre qual é a mancha que surge desta junção de universos que acontece em cidades grandes, em espaços onde tudo se funde."

Sendo uma pessoa que cantou fado antes mesmo de saber que o era, conhecendo e gostando de fado, parece-lhe fazer sentido falarmos de “fado” ou “novo fado” aplicado a esta nova música, de base eletrónica?
Acho que quem faz parte do fado, quem é fadista e quem está dentro desse universo di-lo-á melhor. Acho que levo na voz um trejeito fadista, um trejeito português. Não lhe vou dar o nome de fado porque… apesar de cantar muitos fados a capella não lhe vou chamar novo fado. Acho que nada fica estanque e há sempre descobertas que nascem e que mais tarde acabarão por ter um nome. Agora chamam-lhe novo fado, se calhar daqui a cinco anos podemos chegar a uma conclusão mais clara sobre qual é a mancha que surge desta junção de universos que acontece em cidades grandes, em espaços onde tudo se funde e onde as coisas deixam de ter uma função, porque todas fazem parte umas das outras e não vivem umas sem as outras. Consigo ouvir muitas músicas de um género muito específico se estou num estado de espírito muito alegre ou muito triste. Mas se conseguir encontrar um universo em que as vou juntando…

… Aí cria-se uma coisa nova?
Acho que se cria uma coisa nova mas a que não podemos dar logo um nome — ou este nome. Não me conseguindo ver inteiramente de fora, acho que existe uma mancha. Há uns anos o Conan Osiris tinha um disco no Soundcloud, ainda não dava concertos. O Mike El Nite foi sempre um descobridor de tesouros. Em festas que fazíamos fora de Lisboa, o Miguel uma vez mostrou o Soundcloud do Conan Osiris e ficámos todos grandes fãs de tudo aquilo, porque eram coisas novas e traziam-nos a vontade que toda a gente tem de juntar tudo o que se está a ouvir numa só noite. Juntava-se ali o português — estás a ouvir alguém cantar em português — com um beat de kizomba por trás, misturavam-se coisas que nem se consegue perceber bem o que são mas sente-se que há uma multiculturalidade.

Na altura, esse momento foi super libertador para mim por causa da voz dele [Conan Osiris] e da maneira como estava a cantar. Foi um dos primeiros sinais que esse universo existe, não está na minha cabeça. Não sei propriamente o que é isto, sei que existe e está a crescer cada vez mais e que existem pessoas a caminhar nessa direção, que trazem essas influências. Fico muito contente ao ver que se identificam umas com as outras. Não acho é que haja uma bandeira, acho que há uma evolução natural. Respiro de alívio quando oiço a “Jazigo” do Pedro Mafama, a “Amália” do Conan Osiris, todas essas canções que são o que quero ouvir. Se estou a ir para casa e a ouvir um funk, um fado… se conseguir ter tudo isso no mesmo sítio [na mesma canção], para além de ser um processo natural, é necessário — porque é inevitável que alguém que se queira expressar e que oiça música e tenha capacidade de transpor um sentimento, que trabalhe com as suas emoções e consiga expô-las, se expresse na plenitude.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

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