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Em tempos idos, a palavra indústria era usada para significar a produção de bens através da transformação de matéria-prima – o que antes era feito à mão (por exemplo: camisolas) passou a ser feito através de máquinas. Uma boa parte dos — à falta de melhor termo — objetos que compõem a paisagem contemporânea, de comboios a máquinas fotográficas, foram desenvolvidos durante a Revolução Industrial, que incrementou a produtividade das empresas ao ponto de se dar uma migração massiva de seres humanos do campo para a cidade, à procura de emprego.
De modo a que os operários pudessem operar as máquinas sem, digamos, perderem um dedo ou uma mão, a escolaridade tornou-se obrigatória (para que todos conseguissem ler as instruções de uso das máquinas); com o tempo criaram-se sindicatos, contratos com salários mínimos, dias de descanso e férias. E os subúrbios.
Os subúrbios nascem da mencionada migração de trabalhadores para as cidades acrescida da concomitante subida do preço da habitação nas cidades – que obrigou (ontem como hoje) uma parte da população a deslocar-se para fora da cidade, à procura de casas mais baratas. Os subúrbios funcionavam como dormitório das classes menos abonadas, mas em alguns casos tornaram-se ruínas, fantasmas de uma riqueza perdida.
É o caso de Aberdeen, Washington, uma pequena terra americana cuja população, hoje, não vai além de 16 mil habitantes. Até à década de 30 do século passado, Aberdeen estava rodeada de serrações que empregavam milhares de pessoas – mas, depois da Grande Depressão, a grande maioria delas fechou e Aberdeen foi definhando até se tornar o poiso de quem não teve para onde fugir. Aberdeen, Washington, é também a terra-natal de Kurt Cobain, músico norte-americano e fundador dos Nirvana, banda que liderou até à sua última fuga, aos 27 anos.
Quando Cobain morreu talvez ainda não existisse o termo “indústrias criativas”, que hoje está tão em voga e que inclui, entre outras, a indústria discográfica – uma indústria que, ironicamente, não se dedica à transformação de matéria-prima mas sim, não raro, à regurgitação do mesmo objeto vezes sem conta, ao mesmo tempo que oferece zero apoio a quem cria os produtos que a indústria vende.
E é assim que damos por nós, trinta anos após a edição de Nevermind, a falar de novo dos Nirvana, não se sabe bem para quem (eventualmente a geração que viu nascer os Nirvana, com mais uns novos fãs pelo caminho) ou porquê. Que diferença há entre comemorar os 30 ou os 25 anos de Nevermind? Chegaremos um dia a comemorar os 50 anos? Quando é que isto acaba? Essa resposta é simples: quando o preço de produzir novos CDs (ou seja lá qual for a moeda de troca musical da época) e novo material gráfico for menor que o lucro previsto com uma reedição. E, sim, há uma reedição com, possivelmente, novo material dos Nirvana. Hey, há salários para pagar e empregos para manter e isto é melhor que mandar para rua pais e mães de família.
Uma fórmula impossível de ser imitada ou repetida?
Passados 30 anos, é difícil encontrar um ângulo novo para falar de quem só viveu 27. A imagem de génio atormentado, de Cristo dos anos 90, cristalizou-se, seja ou não verdadeira. É aceitável falar em tormento, notório na voz de Cobain, mas também na sua biografia pejada de heroína, uma droga que serve, fundamentalmente, aqueles que carregam dor emocional e que querem desaparecer.
Nenhum de nós sabe exatamente a origem dessa dor: já perdi a conta ao número de vezes em que li artigos sob o efeito profundo que o divórcio dos pais teve sobre o pequeno Cobain, aos nove anos; dei por mim, às três da manhã, a ler interpretações psicológicas sobre o sentimento de não-pertença que assolava Kurt na casa do pai, após este ter voltado a casar e ter novo filho com a companheira (que já tinha dois de um anterior casamento). Há coisas melhores para fazer às três da manhã.
Cobain oscilou entre viver com o pai e com a mãe, cujo novo companheiro era violento, ao ponto de a polícia ser chamada várias vezes a intervir (a mãe nunca apresentou queixa). Balançando entre duas casas onde não se sentia bem vindo, Cobain começou a desafiar a autoridade, ao ponto de um dia a mãe lhe pôr as malas à porta.
[“Smells Like Teen Spirit”, o primeiro single de “Nevermind”:]
É difícil evitar pensar que ambos os lares seriam disfuncionais: nos anos 80 os divórcios, nas terras pequenas, ainda eram manchas no tecido emocional das famílias e não era incomum que os pais, ao refazerem a vida com novo(a)s companheiro(a)s, prestassem mais atenção a estes que aos filhos da anterior relação.
Encontrar uma causa depois do efeito é uma forma de ajustar o nosso desconhecimento ao final que conhecemos: sabemos que Cobain era um génio atormentado, sabemos que a sua infância terá sido infeliz, culminando num suicídio particularmente violento, e criamos a nossa matemática pessoal explicativa do fenómeno: 1 rapaz sensível + 1 divórcio dos pais na infância = 1 génio atormentado.
Esta explicação para o fenómeno Cobain será, porventura, tão válida quanto outra qualquer, mas parece esquecer que houve (literalmente, e quando digo “literalmente” não o digo como a miudagem do século XXI, que usa “literalmente” em vez de “figurativamente”, como forma de enfatizar o que quer dizer) dezenas e dezenas de milhões de garotos de terras pequenas cujos pais se divorciaram e que acabaram vítimas de bullying na escola e só uma percentagem deles se enamorou da heroína e ainda mais ínfima é a fatia daqueles que desenvolveram traços de genialidade numa qualquer disciplina.
As fórmulas são mais eficazes quando submersas num arco explicativo e numa miríade de detalhes que de algum modo corroborem a tese: temos um rapaz que vem de uma família disfuncional, que se torna introspetivo quando os pais se divorciam e que começa a rebelar-se quando os pais voltam a casar. E a isto adicionamos pormenores, como a revolta na adolescência contra as figuras de autoridade (pais, professores, treinadores), que é sempre meio passo para se acabar no punk, o que ainda se torna mais fácil quando um dos nossos colegas de escola é Roger “Buzz” Osborne, futuro cantor e guitarrista dos Melvins, que mostrou a Cobain o punk e o hardcore, numa altura em que o rapaz já tinha uma guitarra e se dedicava a aprender sozinho canções dos Queen ou dos Cars.
Eis como funciona a psicologização a posteriori: pode parecer estranho que antes de conhecer Osborne os gostos musicais de Cobain fossem mainstream e que depois tenha rapidamente aderido ao punk e ao hardcore como um credo, mas para um miúdo a necessitar urgentemente de pertencer a alguma coisa, e que só tinha um amigo na escola, a palavra desse amigo pode rapidamente tornar-se religião.
Se estas interpretações são verdadeiras ou apenas formas que temos de dar um laçarote ao embrulho desarrumado que é a biografia de Cobain, pouco importa: a dado momento, posto fora de casa pela mãe e depois de viver na rua (o que alguns amigos dizem ser uma versão mitómana da realidade, promovida pelo próprio Cobain), o futuro líder dos Nirvana começou a fazer canções, ele que até então se dedicava sobretudo ao desenho (um traço que manteve pela vida fora, desenhando, inclusive, a capa de In Utero, o último disco da banda, editado pouco antes do seu suicídio).
Em 1991, hoje, seja quando for: um verdadeiro artesão das canções
Cobain passou algumas das suas canções a Krist Novoselic, seu colega de escola, que demorou um par de anos a ouvi-las, mas quando ouviu acedeu a criar uma banda com o baixinho esquisito. Não houve uma banda, houve várias, bem como uma mudança para Seattle (a indústria discográfica mais próxima de Aberdeen e uma terra com um circuito punk underground muito vivo), além de uma profusão de bateristas atirados fora da banda – quando os já chamados Nirvana gravaram Bleach, o disco de estreia, para a Sub Pop, ainda Dave Grohl (que hoje lidera os Foo Fighters) não fazia parte da equação. Grohl entrou durante a escrita de Nevermind.
[“In Bloom”:]
Bleach ainda não era Nevermind, que por sua vez ainda não era In Utero (que é, possivelmente, o melhor disco punk alguma vez escrito), mas já denotava três características que seriam fundamentais nos Nirvana: a capacidade de escrever riffs infecciosos (“Floyd the Barber”, “School”), de criar melodias admiráveis (“About a Girl”) e de levar a voz a extremos punitivos (“Negative Creep”).
O poder da voz de Cobain não pode ser diminuído: como Billie Holiday, Édith Piaf, Johnny Cash ou Nick Cave, Cobain tinha uma daquelas vozes cavas capazes de saltar notas com uma capacidade incrível e de ser tão intensa que o ouvinte incauto não pode deixar de acreditar que é verdade o que quer que seja que o marmanjo que canta está a cantar.
Nas milhentas histórias escritas sobre os Nirvana, nunca falha a menção à capacidade de Cobain escrever boas melodias, embora quase nunca se mencione o facto de tanto os riffs como as melodias serem muito mais sofisticados do que se pensa: as canções dos Nirvana estão pejadas de mudanças tonais, cromatismos, saltos melódicos inesperados, dissonâncias provocadas por afinações pouco convencionais (embora quase sempre Cobain usasse drop C ou drop D), etc.
Tudo isto, que já existia em embrião em Bleach, surge com admiráveis graus de depuração e sofisticação em Nevermind. É neste exato instante que as histórias sobre os Nirvana se entretêm a explicar qual o segredo do êxito do segundo e seminal disco – como com todos os fenómenos para os quais não há explicação científica, as teorias são tantas quantos os proponentes a teóricos: para uns, Nevermind não é melhor que uma série de outros discos de punk-pop (anteriores e da época); para outros, Cobain pilhou o pára-arranca dos Pixies; há quem realce a produção (que, apesar de ainda pesada, é muito mais suave que a de Bleach e fica a milhas da sujidade demencial de In Utero).
Os pontos acima mencionados terão todos o seu quinhão de verdade: Nevermind não era, em termos de fórmula, particularmente inovador, as suas mudanças rítmicas demonstram uma evolução face a Bleach e tornam as canções ainda mais explosivas do que se tivessem apenas um tempo, a produção de facto torna Nevermind mais acessível às massas que Bleach; não será despiciendo lembrar que a escrita de Cobain deu um imenso salto qualitativo – cada verso, cada ponte, cada refrão, cada melodia, cada harmonia, cada riff, tudo está desenhado com a minúcia de quem já domina com mestria o seu métier, o que é impressionante numa banda que ainda vai no segundo disco.
Diz-nos a história da literatura sobre os Nirvana que neste ponto da narrativa o recurso mais recorrente é encetar uma maratona de descrição das canções, polvilhada de adjetivos superlativos – e não é que Nevermind não mereça, mas estou em crer que já toda a gente ouviu estas canções e quem não as ouviu e chegou aqui ou já tem vontade de as ir conhecer ou então já desistiu do texto.
Os milhões, a ambiguidade e a humanidade de uma anti-rockstar
Em vez de avançar recuemos: houve dezenas de milhões de miúdos com pais a divorciar-se e a sofrerem bullying na escola e nem todos deram em génios ou envolveram-se na heroína; do mesmo modo, houve uma data de grandes discos nos anos 90 e nenhum comporta o mesmo grau de magnetismo que Nevermind (nem OK Computer, dos Radiohead, nem mesmo In Utero, dos próprios Nirvana, o que é injusto porque In Utero deve ser o melhor disco de guitarras de sempre). A questão que permanece insolúvel é: o que é que os Nirvana e Nevermind têm que se mantêm culturalmente relevante 30 anos depois?
[“Come as You Are”:]
O suicídio de Cobain contribuirá para o mito do Cristo dos anos 90 – entre os anos 60 e 70 morreram uma data de estrelas rock (também aos 27 anos), mas os mass media ainda usavam fraldas. No vocabulário do rock, ainda não entravam expressões como “saúde mental”. Talvez a morte de Cobain tenha sido a primeira com uma dimensão verdadeiramente global – os pais assustavam-se com Cobain e o seu suicídio assustou-os ainda mais, até porque naquela altura a heroína estava por todo o lado. A morte de Cobain foi a face visível, aterradora, desse flagelo que levou tantos dos nossos.
Mas nunca estaríamos a ter esta conversa se Nevermind não tivesse explodido na dimensão que explodiu: até hoje, Nevermind vendeu 30 milhões de exemplares, quando a Geffen, a editora major para a qual os Nirvana se haviam mudado após deixarem a indie Sub Pop, não esperava vendas superiores a 250 mil exemplares – o mesmo que Goo, dos Sonic Youth, alcançara.
Existem até hoje duas linhas de pensamento acerca da decisão dos Nirvana de deixarem a Sub Pop e assinarem por uma major (polindo, pelo caminho, o som em Nevermind): alguns consideram que Cobain sempre sonhou com o estrelato, outros acreditam que o facto de os Sonic Youth (que eram amigos da banda) terem assinado pela Geffen e conseguirem manter o controlo artístico convenceu Cobain de que a sua música poderia chegar a mais pessoas sem perder qualidade.
Discussões binárias são interessantes no papel, mas raramente a vida se traduz de forma tão simples: é possível que uma parte de Cobain sonhasse com dinheiro, reconhecimento, mais fãs, e é possível que ele tenha de facto sentido culpa, que ele tenha sentido que havia traído a causa punk (opor-se ao capitalismo, ao sistema, ao que quer que seja torne as pessoas em autómatos).
[“Lithium”:]
Essa ambiguidade está em cada passo que Cobain deu desde que assinou pela Geffen: a capa de Nevermind – um bebé nu inclinado para uma nota de um dólar – é uma crítica óbvia ao capitalismo (como se na América se sonhasse com riqueza a partir do nascimento), mas não deixa de ser uma capa de um disco editado por uma major – e uma major capitalista que concedeu aos Nirvana muito mais exposição (fosse em rádio ou em televisão) que alguma vez o trio havia tido (e um orçamento para a gravação de Nevermind cem vezes maior que os 600 e tais dólares que Bleach custara).
A ambiguidade chegou ao ponto de os Nirvana serem capa da Rolling Stone enquanto um Cobain notoriamente incomodado com o estrelato afirmar que a Rolling Stone era uma revista abaixo de cão. É absurdo pensar agora como tudo aconteceu tão depressa: do lançamento de Nevermind até ao suicídio de Cobain nem três anos chegaram a pensar – mais, Nevermind foi lançado a 24 de setembro de 1991, mas só em janeiro de 1992 é que ao chegou ao topo das tabelas de vendas, o que significa que Cobain aguentou o super-estrelato durante exatos dois anos e três meses.
Não é difícil defender que Nevermind nunca teria alcançado o êxito que teve sem uma Geffen por trás; mas, ainda assim, isso não explica porque é que tanta gente estava disposta a ouvir o que, na essência, eram canções de mal-estar, falta de amor próprio, relatos de violação e relações disfuncionais narrados por um homem que subia ao palco envergando vestidos e que dizia publicamente, a cada passo, que todo o circo ao seu redor (todo o circo do rock’n’roll) era idiota.
Aliás, nesses três anos Cobain não foi apenas uma super-estrela, sugada até ao limite pelas digressões punitivas que a indústria lhe marcava e pelos media – foi a mais estranha anti-estrela de que há memória: Cobain dizia quanto mal havia das bandas grunge (ao ponto de afirmar que os Pearl Jam eram uma banda de hard-rock que mudou o som para ter êxito), gozava publicamente com os Guns N’ Roses, aparecia vestido de mulher, não se calava com os direitos das mulheres, dos negros e dos gays, afirmava ser provavelmente bissexual, uma definição estranha mas corajosa, mais ainda numa época profundamente machista (e talvez nunca tenha havido um artista tão profundamente anti-machista como Cobain). E o tempo todo continuava alegremente a dizer que tudo aquilo – todo o circo, todo o interesse à sua volta – era simplesmente parvo; numa das mais admiráveis demonstrações de generosidade que um artista alguma vez teve, passou os últimos anos de vida a falar de todas as bandas que gostava e que eram desconhecidas. À conta de Cobain, a minha geração descobriu uma porrada de música.
Não é fácil precisar o exato momento em que a indústria musical mainstream começou a desconfiar que havia dinheiro a fazer com bandas de rock alternativas, mas 1990 parece ser um bom começo: é neste ano que os Sonic Youth editam Goo pela Geffen, o seu primeiro disco a ser lançado por uma major. As college radios tinham então muito poder e o que as college radios passavam era, essencialmente, música de rapaz branco zangado: rock dissonante feito por miudagem vinda de famílias disfuncionais.
Talvez a explosão dos Nirvana tenha sido uma reação à pop sintética e cocada dos anos 80 – uma data de miúdos, eles próprios com relações não muito felizes com a autoridade parental, fartos dos habituais êxitos a martelo que passavam na rádio, expostos a música visceral e que parecia falar do que lhes interessava (más relações, falta de amor próprio, bullying, sentir que não se pertence a lugar nenhum), se tenham revisto nos Nirvana e em Nevermind em particular como nunca se haviam revisto em nada.
Esta era uma geração que vira impérios ruir, que crescera com a ameaça da sida, que não conseguia ir a uma casa de banho sem dar com um junkie a chutar, isto quando não tinha junkies na própria família; Nevermind era, em certo sentido, uma súmula agreste do adolescente que crescera neste quadro mental.
[“Polly” ao vivo em Seattle em 1991:]
Também não é despiciendo considerar que a geração de 91 talvez fosse a primeira geração de adolescentes a ter mesadas que lhes permitiam comprar discos; as editoras estavam cada vez mais interessadas em criar para adolescentes e, anos mais tarde, quando as Britneys deste mundo explodiram, tornou-se bem claro que o público alvo das majors mudara de rapazes de 16 anos zangados para raparigas de 12 anos com o coração quebrado pela primeira vez. Essa demografia ainda se mantém até hoje.
Diagnóstico correto: continuamos estúpidos e contagiosos
E mesmo assim nada disto nos diz exatamente porque raio é que uma geração escolheu Nevermind como disco de eleição e ainda o ouve 30 anos depois, arrastando mais umas vítimas pelo caminho. É verdade que o ar cultural da época tinha uma maior percentagem de rock que a que encontramos nas tabelas de venda hoje e que se olharmos para a tabela dos discos mais vendidos de 1991 deparamos com Metallica e Guns N’ Roses (que são rock macho, ao contrário dos Nirvana); mas nas mesmas tabelas também encontramos Michael Bolton, Vanilla Ice, o countryman Garth Brooks e Michael Jackson. Torna-se difícil sustentar que a geração de 1991 fosse constituída exclusivamente por intelectuais existencialistas ou que 1991 tenha sido um ano especial na música.
A dura verdade é que Nevermind foi só mais um de dezenas de discos a vender mais do que um milhão de cópias em 1991; o tempo, sim, transformou-o num ícone geracional, em parte por causa da iconografia relacionada com o Cobain (o Cristo na nossa geração), mas também porque quem decide o que é relevante (jornalistas, críticos) não costuma propriamente passar as noites a ouvir Michael Bolton.
Dois anos depois os Nirvana lançaram In Utero, um disco violento ao ponto de incluir uma canção chamada “Rape Me”, em que Cobain pede para ser violado – mas não há nada gratuito na canção (até porque Cobain, avant la lettre, já escrevera sobre violação de uma rapariga, em “Polly”): era como a manifestação do desejo de ser destruído e In Utero, um dos maiores tratados de abjeção alguma vez escritos, soava e continua a soar como uma longa e tortuosa nota de suicídio.
[“Something in the Way” ao vivo no MTV Unplugged de 1994:]
No período que medeou os dois discos, Cobain casou com Courtney Love (com quem manteve uma relação conflituosa, como é notório pelo verso “married / buried”, em “All Apologies”), foi pai e caiu ainda mais na heroína – as sobredoses sucederam-se, houve uma primeira tentativa de suicídio em 94 e depois uma chumbeira.
A vingança dos miúdos que crescem a sentir-se abandonados e humilhados é, muitas vezes, tornarem-se tão bons e tão reconhecidos no que fazem que ganham vantagem sobre todos os outros – o que é o equivalente a combater a dor com mitomania. O que Kurt Cobain descobriu, da pior forma possível, é que não há quantidade de dinheiro, fama, talento, poder, drogas que retire a dor. Isso só é possível após muito tempo e uma enorme capacidade de perdoar (a nós mesmos, aos outros).
Entretanto passaram 30 anos e a pop ainda não encontrou figura mais crística que Kurt Cobain. Quanto a nós, o diganóstico feito em Nevermind permanece correto: continuamos estúpidos e contagiosos.