Há 226 anos que a construção do Palácio da Ajuda, em Lisboa, estava por acabar. Não haverá exemplos muito mais demorados de obras que se arrastam sem aparente fim à vista. Agora, mais de dois séculos depois do lançamento da primeira pedra, a ala poente está finalmente concluída — e tem um museu novo para mostrar.
O novo equipamento museológico de Lisboa e do país já tem nome, Museu do Tesouro Real, e teve uma pré-inauguração esta segunda-feira, com uma visita guiada à comunicação social que antecede a abertura ao público esta quinta-feira (a inauguração oficial acontece um dia antes, quarta, 1 de junho).
Albergando um conjunto de mais de 700 peças, será o primeiro museu português a expor de forma permanente, continuada e aglutinada as joias da Coroa e as peças da ourivesaria real portuguesa. Ali estão artefactos que resistiram aos séculos, a guerras civis, a revoluções, a fugas para o Brasil, a mudanças de regime, às necessidades resultantes da “dívida da Fazenda Portuguesa”. Por outras palavras: parte do passado português e da riqueza e história da Monarquia nacional têm agora uma casa.
Quanto custou o novo museu e quem o financia?
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Custou 31 milhões de euros, este projeto de finalização da ala poente do Palácio Nacional da Ajuda, de requalificação do espaço público na Calçada da Ajuda e de criação deste novo museu. A maior parte do dinheiro, 18 milhões, veio das taxas turísticas de Lisboa (mais concretamente, do Fundo de Desenvolvimento Turístico de Lisboa). O restante veio da Associação Turismo de Lisboa (9 milhões) e do ministério da Cultura e DGPC (4,8 milhões de euros).
Vitrines à prova de bala e expectativa de 275 mil visitantes por ano
As peças estão numa caixa-forte que se apresenta como inviolável, ou quase. Com 10 metros de altura e de largura e 40 metros de comprimento, ocupando três pisos (ou, para sermos mais precisos, dois pisos principais, 3 e 4, e um piso “intermédio”, o “3G”) é ali que estão expostas as relíquias, em vitrines de “alta segurança”. Por alta segurança, leia-se: vitrines à prova de bala, com controlo de humidade e iluminação específica consoante as peças e materiais expostos. Existem ainda equipamentos de segurança e videovigilância para prevenir roubos, um detetor de metais à entrada e uma porta giratória com reconhecimento corporal.
A segurança é uma das principais preocupações, não estivessem ainda na memória as joias da coroa portuguesa roubadas no museu de Haia, nos Países Baixos, em 2002, onde estavam temporariamente por empréstimo do Palácio da Ajuda.
Era exatamente esse o ponto sublinhado pelo diretor geral da DGPC (Direção Geral do Património Cultural) e arquiteto responsável pelo projeto, João Carlos dos Santos, antes mesmo do início da visita e da entrada na caixa-forte do museu: “Um dos maiores desafios do projeto foi tentar encontrar uma solução que desse resposta a esta exigência de segurança. Toda a conceção girou em torno desta questão. A opção que se tomou, seguindo outros exemplos da Europa e do mundo, foi construir uma caixa-forte onde temos então uma exposição permanente do Tesouro Real português”.
À chegada, faziam-se previsões sobre o impacto esperado do museu: conta-se que possa vir a receber perto de 275 mil visitantes por ano, entre portugueses (cerca de 40%) e estrangeiros (seis em cada dez). Para se ter uma ideia, a expectativa mais do que duplica o número de visitantes (120 mil) do Palácio Nacional da Ajuda em 2021, ainda que esse fosse um ano marcado pela pandemia da Covid-19 e por uma contração do turismo.
A primeira coisa que se avista à entrada do museu é uma porta, que logo se clarifica não ser “decorativa”. Existem duas, uma à entrada do museu e outra à saída, ambas blindadas. Cada uma pesa cinco toneladas e ambas fecham no final do dia, quando o museu encerra. Quando se encontram abertas, podem ser passadas por não mais do que 100 a 120 visitantes em simultâneo, por “uma questão de segurança mas também de comodidade da própria visita — há muitas peças para ver e muitas com uma origem e uma história que queremos que as pessoas percebam”, explica-nos o diretor do Palácio Nacional da Ajuda, José Alberto Ribeiro.
Logo no início do primeiro corredor expositivo, é apresentada aos visitantes uma síntese do que é o “Tesouro Real” agora exposto em permanência no novo museu do Palácio Nacional da Ajuda. Não se diz, logo ali, que ao longo da visita será possível ver joias, insígnias e condecorações, moedas e peças de ourivesaria civil e religiosa da monarquia portuguesa — todas peças minuciosas, históricas e de valor incalculável, símbolos de poder e objetos pessoais de luxo antiquíssimos. Mas promete-se que será possível ver “insígnias régias desde tempos medievais, a imemorial magnificência conferida pelas pedras preciosas, os códigos de Gosto e a mestria artística de obras singulares”.
A exposição permanente do museu divide-se em 11 núcleos. O primeiro intitula-se Ouro e diamantes do Brasil e, ao percorrê-lo, somos recordados da história do Rei D. João VI, “senhor dos diamantes” e pai de D. Pedro, e da sua relação com o Brasil. Isto porque no seu reinado chegaram a Portugal significativos carregamentos de ouro e diamantes extraídos do Brasil, que lhe permitiram viver luxuosamente e que vieram a ter um impacto significativo na redefinição da joalheria real.
Enquanto percorríamos o primeiro núcleo expositivo, ouvíamos o diretor do Palácio Nacional da Ajuda, José Alberto Ribeiro, explicar que D. João VI, ao “receber determinadas condecorações”, passava-as a “pedraria” e avançar também que “nesta caixa-forte estão 22 mil pedras, sendo que 18 mil são diamantes”.
O segundo núcleo chama-se Moedas e Medalhas da Coroa, que “faziam parte desta ideia Real de ir amoedando moedas raras”, juntando “à nobreza da prata e sobretudo do ouro” quer “o nome” quer “símbolos e as imagens dos reis e dos seus feitos”.
É quando o percorremos que ficamos a saber que uma das peças ali presentes, uma caixa “com as armas de Portugal e Itália”, chegou a Portugal com Maria Pia de Saboia, princesa italiana e filha do Rei Vitor Emanuel II de Itália, que se tornou Rainha Consorte de Portugal e Algarves em 1862 após casamento com o monarca D. Luís. Inicialmente a caixa “vinha cheia de moedas de ouro” mas estas tiveram de ser “derretidas para a Fazenda Pública”, devido à carência económica do país.
Segue-se um núcleo expositivo de Joias do Tesouro Real, outro referente às Ordens Honoríficas, um quinto núcleo intitulado Insígnias Régias: Objetos Rituais da Monarquia e por aí fora, passando-se por exemplo por um núcleo particularmente rico de peças de Ofertas Diplomáticas.
As peças mais valiosas: da caixa de tabaco ao Tosão de Ouro e à laça de esmeraldas
Enquanto vamos percorrendo a exposição, avançando núcleo a núcleo, o diretor do Palácio Nacional da Ajuda vai destacando algumas peças. Mais tarde dirá, em declarações aos jornalistas, que entre as peças mais valiosas do museu estão o Tosão de Ouro Grande de D. João VI, “que tem aliás uma vitrina só dedicada a ela”, e a laça de esmeraldas — que se pensa ser a segunda maior pepita de ouro do mundo — que pertenceu à Rainha de Espanha Maria Bárbara de Bragança, que foi infanta portuguesa.
Antes disso, porém, José Alberto Ribeiro vai destacando outras relíquias. Tanto aponta para um “espectacular relógio de bolso” e para um “relógio em forma de coral” como para a “Ordem da Jarreteira”, um desenho com as Armas de cavaleiro da Ordem de D. João VI, insígnia por ocasião de uma grande cerimónia no Paço da Ajuda, em 1823, em que o rei foi investido como cavaleiro da Ordem pela mão do embaixador Edward Thornton em nome do rei britânico George IV.
Toda a secção de joias reais, por exemplo, leva mais tempo a percorrer, para que seja possível admirar peças de Castellani, famoso joalheiro italiano. E há outras obras surpreendentes, como espadas e ceptros e uma caixa de tabaco encomendada por D. José ao ourives do Rei de França, no séc. XVIII, e que a amante de Luís XV não queria deixar sair de Paris — segundo o diretor do Palácio Nacional da Ajuda, é mesmo “a peça mais rica e ornamentada deste joalheiro do rei Luís XV”.
No núcleo “Ofertas Diplomáticas”, por exemplo, pode ser vista uma grande oferta do Papa Pio VI ao Príncipe Real D. António Pio — era hábito o Papa fazer oferendas a primogénitos de Reis católicos, sendo esta uma capa pesadíssima, bordada em ouro e em seda. E ainda se avistam no museu “a coroa Real”, 22 salvas de prata douradas e um “pano-ritual carmesim com estrelas bordadas, que servia para cobrir o trono antes de cerimónias de aclamação e régias e que era retirado quando o rei ia ocupar o trono”.
Um dos outros destaques está no décimo núcleo do museu, intitulado Baixela Germain. Trata-se de um conjunto assim designado por ter sido encomendado ao ourives François-Thomas Germain, apresentando uma série de “cobertas”.
De forma simples, poderia explicar-se este conjunto de peças como um conjunto de mesas postas à maneira francesa, para servir refeições. Em cada uma das “cobertas” vê-se uma série de obras de ourivesaria dispostas sobre a mesa, de forma “planificada e simétrica” — peças minuciosas e trabalhadas ao detalhe, como se percebe, por exemplo, pelas mostardeiras ou por um invulgarmente detalhado cesto de pão.
Existiam quatro cobertas, utilizadas em banquetes. E cada uma dispunha-se para servir diferentes iguarias: a primeira servia para se dispor os “cozidos”, depois os “assados”, a seguir os “entremezes” e por fim o “doce”. Só a última, usada na fase das sobremesas, não está exibida no Museu do Tesouro Real.
O transporte em 40 carros de bois e um terramoto que tudo mudou
Confessando-se “orgulhoso enquanto português por finalmente toda a gente poder ver as peças que estiveram fechadas durante décadas e décadas, e que são um exemplo do que de melhor se fez a nível das artes decorativas portuguesas e europeias do século XVI e até ao século XX”, o diretor do Palácio Nacional da Ajuda lembrava no final da visita que o tesouro real português teve “uma vida atribulada”, em declarações aos jornalistas.
Essa “vida atribulada” deve-se a vários percalços. O principal deles foi o terramoto de 1755, que obrigou a Monarquia portuguesa a “repor novamente o tesouro da Casa Real”, já que “grande parte perde-se no Paço da Ribeira”, prossegue José Alberto Ribeiro. Não é por acaso, aliás, que “um ano depois do terramoto, o Rei D. José está a encomendar a Baixela Germain ao melhor ourives de Paris”.
Houve, além disso, “vicissitudes” posteriores: o diretor do Palácio lembra a ida da Família Real para o Brasil aquando da primeira invasão francesa, em 1807 (“vão uma série de peças e algumas ficarão lá — só tapeçarias foram para o Brasil 200”) ou a venda de joias em 1912 motivada por problemas económicos prementes da Casa Real, e levada a cabo pela Rainha Maria Pia, que as empenhara como garantias para empréstimos bancários.
Outros momentos marcantes na história deste tesouro real: quando “D. Pedro manda caixas com peças de prata para o Banco de Inglaterra” e o episódio caricato em que, “depois da Guerra Civil, D. Miguel vai com todos os apoiantes com 40 carros de bois até ao Forte de Elvas, guardar o tesouro existente”.
Há, em suma, “uma série de saídas e entradas de peças que procurámos juntar neste museu e explicar”, conta José Alberto Ribeiro. E com “revoluções no século XX”, era expectável que o destino do Tesouro Real então existente ficasse ainda mais em perigo. “Mas o desconhecimento de muito do que era este tesouro acabou por salvá-lo”, arrisca o diretor do Palácio.
Essa salvação resultou numa coleção de centenas de relíquias, que já pode ser vista — e o receio de voltar a perigar estes artefactos históricos é tanto que o diretor do Palácio da Ajuda nem quer ouvir falar em empréstimos ou saída de obras para exposições temporárias em museus de outros países: “Não temos política de empréstimos. Enquanto eu aqui estiver…”.
Nota – Artigo atualizado às 9h31