Uma das queixas dos não-iniciados relativamente à ópera é que os enredos tratam de assuntos completamente desligados da vida real e da actualidade. Enquanto o mundo é abalado pelo colapso de grandes instituições financeiras, pela guerra civil na Síria, pelas massas de deserdados que procuram refúgio e uma vida melhor na Europa, a ópera fala de ninfas e pastores, de comédias de enganos em salões aristocráticos, de deuses que descem do Olimpo para fazer e desfazer arranjos amorosos, de ciganas vingativas que lançam maus-olhados, de criaditas sabidas que ludibriam patrões trôpegos que pretendem casar-se com elas.
Se, vista de longe, a tetralogia O anel do Nibelungo (Der Ring des Nibelungen), de Richard Wagner, pode parecer uma versão bombástica e palavrosa de O senhor dos anéis, uma fantasia gótica com gigantes obstinados, anões gananciosos, dragões ferozes, deuses sonsos, heróis destemperados e valquírias ululantes, tal não impediu que fosse alvo de interpretações “socialistas”, a mais famosa das quais veio de George Bernard Shaw.
Uma leitura socialista do Anel
Shaw é mais conhecido como dramaturgo e pensador político de convicções socialistas, mas também exerceu, com apreciável sucesso, funções de crítico musical (assinava os textos para a Pall Mall Gazette com o pseudónimo “Corno di Bassetto”) e o Anel entusiasmou-o a tal ponto que lhe dedicou um livro, The perfect Wagnerite: A commentary on the Niblung’s Ring (escrito em 1883 e publicado em 1898), destinado a tornar a tetralogia acessível e compreensível a todos.
Shaw estava bem consciente de que, para o público não-informado, o Anel não passava de “uma disputa pela posse de um anel entre meia dúzia de personagens de conto de fadas, envolvendo horas de descomposturas e trapaças e uma longa cena passada dentro de uma mina pavorosa, acompanhada por música desagradável e tenebrosa, e sem vestígio de rapazes garbosos ou raparigas atraentes” e pretendia que muitos outros se juntassem aos iniciados, seguindo o drama “de respiração suspensa e vendo nele toda a tragédia da história humana e todo o horror dos dilemas que o mundo de hoje teme enfrentar”.
Os escravos de Alberich “nunca o vêem, tal como os que labutam em ocupações perigosas nunca vêem os accionistas, cujo poder, todavia, é omnipresente, empurrando-os para a destruição”.
Shaw leu o Anel como alegoria marxista e viu Alberich como um “plutocrata empedernido”, para cujo benefício “hordas de criaturas suas semelhantes estão condenadas a labutar em condições miseráveis, nas minas e à superfície […] sob o látego invisível da fome”.
Os escravos de Alberich “nunca o vêem, tal como os que labutam em ocupações perigosas nunca vêem os accionistas, cujo poder, todavia, é omnipresente, empurrando-os para a destruição. […] [A riqueza] foge-lhes das mãos assim que é gerada, e passa para as mãos dos seus amos, tornando estes ainda mais poderosos”. Shaw invectivava os Alberichs deste mundo, “uma raça de anões morais”, que consegue ser vista como “altamente respeitada e decente” e que vai “proliferando e disseminando o mal em todas as direcções”. Além de assimilar os nibelungos ao proletariado e Alberich aos capitalistas, Shaw identificava os gigantes com o campesinato, os deuses com a aristocracia, Siegfried com o “homem novo” destinado a destruir o sistema capitalista e a destruição do Walhalla com o colapso do capitalismo em resultado das suas contradições internas.
Vale a pena determo-nos na sua visão de Siegfried: “É uma personagem absolutamente amoral, um anarquista nato, o ideal de Bakunin, uma prefiguração do super-homem de Nietzsche […] um homem são que adquiriu uma confiança absoluta nos seus impulsos, graças a uma intensa e jovial vitalidade que está acima do medo, da má consciência e da malícia, bem como dos expedientes e das muletas morais da lei e da ordem que lhes são inerentes”.
E é ainda mais esclarecedor ler o trecho em que Shaw compara a Wotan os governantes “forçados a manter como sagradas leis que eles, no íntimo, sabem ser expedientes obsoletos e a fingir a mais profunda veneração por credos e ideais que, em privado, ridicularizam com um cepticismo cínico. Nenhum Siegfried solitário poderá resgatá-los a esta sujeição e hipocrisia; na verdade, o Siegfried isolado vê-se muitas vezes perante o dilema de governar aqueles que não são seus iguais ou arriscar-se a ser destruído por eles. E este dilema persistirá até que a inspiração de Wotan desça sobre os nossos governantes e eles compreendam que a sua missão não é conceber leis e instituições para remediar as fraquezas das massas e garantir a sobrevivência dos inaptos, mas promover a multiplicação de homens cuja determinação e inteligência possam assegurar a produção espontânea do bem-estar social que as nossas leis desajeitadas visam mas não conseguem atingir. A maioria dos homens da moderna Europa não merecem estar vivos: e nenhum progresso sério será obtido até que nos empenhemos, honesta e cientificamente, na tarefa de produzir material humano digno de confiança”. Shaw exulta com a ideia de “um herói perfeitamente ingénuo, derrubando a religião, a lei e a ordem e colocando em seu lugar a acção sem peias da Humanidade que age a seu bel-prazer e produz ordem em vez de caos, porque gosta de fazer aquilo que é necessário para o bem da raça”.
É um excerto que poderia provir de Mein Kampf, confirmando que houve tempos em que as diferenças entre socialistas e nacional-socialistas foram nebulosas.
Wagner: socialista ou nazi?
É sabido que Wagner era o compositor favorito de Hitler e o compositor “oficioso” do III Reich e que o Führer tomou pessoalmente providências para que as temporadas de Bayreuth não fossem perturbadas pelo esforço de guerra. A devoção de Hitler por Wagner seria certamente reforçada pelo anti-semitismo demonstrado publicamente pelo compositor, nomeadamente através do panfleto O Judaísmo na Música (Das Judenthum in der Musik, publicado anonimamente em 1850 e republicado em 1869 em versão ampliada e sob o seu próprio nome), em que atacava os compositores judeus, e em particular Mendelssohn e Meyerbeer (sem cuja ajuda generosa não teria conseguido levar à cena a sua ópera Rienzi), e denunciava o judeu como um elemento estranho e nocivo à cultura alemã.
Mas é preciso recordar que durante a sua estadia em Dresden, onde foi maestro da corte da Saxónia, e em particular nos turbulentos anos de 1848-49 (quando tinha 35-36 anos), Wagner aderiu à causa socialista, caiu sob a influência de Proudhon e Feuerbach, travou amizade com o editor radical August Röckel e com o anarquista Mikhail Bakunin e publicou panfletos e poemas revolucionários, incitando à destruição da ordem instituída, ao derrube da monarquia, à implantação do socialismo e à abolição do dinheiro.
O ardor revolucionário de Wagner em 1848-49 poderá ter sido genuíno, mas consequente não foi seguramente.
Wagner não se ficou pelas palavras: no Levantamento de Dresden, em Maio de 1849, terá dado o seu contributo para fazer frente às tropas prussianas enviadas para esmagar a revolta dos que exigiam que o Rei da Saxónia aceitasse uma constituição democrática – consta que terá fabricado granadas de mão improvisadas (um antepassado dos cocktails Molotov) e feito turnos de vigia no topo da Frauenkirche. Como aconteceu com muitas outras revoltas contra o establishment que eclodiram pela Europa por esta altura, o levantamento foi sufocado, obrigando Wagner a procurar refúgio na Suíça e a viver no exílio durante 12 anos.
O ardor revolucionário de Wagner em 1848-49 poderá ter sido genuíno, mas consequente não foi seguramente. O homem que escrevera “Erguei-vos povos da terra! Erguei-vos, sofredores, oprimidos, pobres!” escreveu também “Não sou feito da mesma massa que as outras pessoas. Necessito de esplendor, beleza e luz e o mundo deve-me aquilo de que necessito. Não posso viver com um mísero ordenado de organista, como o nosso mestre Bach”. Boa parte da sua vida, antes e depois de Dresden, foi consagrada a obter financiamento para os seus projectos megalómanos e para o seu apetite por luxo e ostentação, mas por muito dinheiro que conseguisse angariar, nunca foi suficiente para pagar o seu trem de vida. Wagner viveu sempre acima das suas possibilidades e deixou atrás de si um longo rasto de dívidas – a sua itinerância pela Europa deveu-se sobretudo à necessidade de fugir aos credores. E quanto às massas, apesar das generosas e fraternas proclamações dos tempos de Dresden, Wagner costumava votar-lhes o mais completo desprezo.
Wagner previu a crise do subprime?
A analogia de Bernard Shaw, estabelecida com base no capitalismo industrial da segunda metade do século XIX, pode também ser transposta para o início do século XXI, em tempos de capitalismo financeiro desregulado. O que precipita a crise é Wotan – a classe média? – querer viver acima das suas possibilidades: encomenda aos gigantes Fasolt e Fafner a construção de uma mansão formidável – o Walhalla – sem ter meios para a pagar. Wotan prometera aos gigantes entregar-lhes a sua cunhada Freia, a deusa do amor, mas Wotan sabe bem que sem as maçãs douradas de Freia os deuses definharão e extinguir-se-ão. Wotan tenta regatear e protelar, mas os gigantes, inflexíveis, lembram-lhe o contrato que firmara – a única concessão que fazem é apresentar uma contra-proposta: admitem receber, no lugar de Freia, todo o ouro que o nibelungo Alberich amealhara.
Não confiando no matreiro Wotan, tomam Freia como refém até que o ouro lhes seja entregue. Wotan e Loge, o deus do fogo, descem ao Nibelheim para tentar roubar o ouro de Alberich, o que marca uma longa sucessão de manigâncias e infortúnios que culminará com a ruína do Walhalla e o fim dos deuses. É tentador traçar um paralelo entre este enredo e as moscambilhas montadas pelo sector financeiro norte-americano em torno do crédito à habitação, que acabaram por desembocar na crise do subprime, que por sua vez esteve na origem de uma crise financeira e económica a nível global.
Muitas foram as vozes que, desde 2008, traçaram paralelos entre a crise do subprime e a premissa do enredo do Anel.
Foi o que fez Elfriede Jelinek (Prémio Nobel da Literatura de 2004), uma das vozes mais críticas do capitalismo e da moderna sociedade burguesa e consumista, ao publicar em 2013 rein GOLD, uma paródia anti-establishment que faz um paralelo semelhante: a valquíria Brünnhilde vê o seu pai Wotan como vítima do consumismo e do capitalismo, uma vez que foi aliciado a comprar uma casa que não tinha meios para pagar. Nicolas Stemann tomou o texto de Jelinek, enxertou-o em trechos musicais de O Anel do Nibelungo e criou uma espécie de ópera, que estreou na Staatsoper de Berlim a 9 de Março de 2014.
Se Capital fuck (o título em registo de insolência punk escolhido para a edição portuguesa da peça de teatro Die Kontrakte des Kaufmanns: Eine Wirtschaftskomödie, ou seja O contrato do comerciante: Uma comédia económica, de 2008), recentemente publicada pela Verso da História, serve de indicação, não pode esperar-se mais de rein GOLD do que uma informe e circular logorreia de invectivas anti-capitalistas, um arrazoado que exibe um sarcasmo ostensivo mas é, essencialmente, inconsequente e inócuo. E rein GOLD nem sequer pode reivindicar qualidades premonitórias (um elogio repetidamente feito a Die Kontrakte des Kaufmanns), já que muitas foram as vozes que, desde 2008, traçaram paralelos entre a crise do subprime e a premissa do enredo do Anel.
Como foi forjado o Anel
Foi em Dresden, no Outono de 1848, com a Europa inflamada pelas revoltas e tumultos da Primavera dos Povos, que Wagner esboçou as linhas mestras de O Anel do Nibelungo, que apresentaria como um “festival cénico em três jornadas [A valquíria, Siegfried e O crepúsculo dos deuses] e um prólogo [O ouro do Reno]”. Se a inspiração veio sobretudo das sagas nórdicas e de epopeias medievais germânicas, a filosofia de Ludwig Feuerbach, que Wagner leu apaixonadamente nestes anos de Dresden, também moldou o primeiro esboço do Anel.
Talvez não seja de negligenciar a influência do pensamento do anarquista Bakunin, com quem Wagner estabelecera laços em Dresden, em 1849. Além de partilharem ideais políticos, ambos viam no fogo um agente purificador: Bakunin almejava que Paris fosse pasto das chamas, pondo fim a um regime iníquo e permitindo que das cinzas despontasse uma nova sociedade, e Wagner conta ter tido uma visão em que fazia erguer um teatro de ópera para estrear o Anel, a que atearia fogo na quarta e última noite. O fervilhante caldeirão que era a mente de Wagner também terá acolhido as influências dos discípulos de Hegel e terá bebido das ideias de Marx, através da amizade com o poeta revolucionário Georg Herwegh, que, como Wagner, participou nos levantamentos da Primavera dos Povos e foi obrigado a exilar-se na Suíça.
A escrita dos libretos avançou em ordem cronológica inversa: o primeiro a surgir foi o de A morte de Siegfried (Siegfrieds Tod), que se converteria em O crepúsculo dos deuses (Götterdämmerung), seguindo-se O jovem Siegfried (Der junge Siegfried), que se converteu em Siegfried, A valquíria (Die Walküre) e O ouro do Reno (Das Rheingold), num labor que o ocupou até 1853.
A composição arrancou em 1856, desta vez por ordem cronológica, e estender-se-ia até 1874, com longos interregnos para a composição de Tristão e Isolda (estreada em 1865) e Os mestres cantores de Nuremberga (estreada em 1868). A estreia da tetralogia teve lugar entre 13 e 17 de Agosto de 1876 no Festpielhaus de Bayreuth, construído expressamente para o efeito, segundo as rigorosas especificações de Wagner (embora Luís II da Baviera, o mecenas do desmedido projecto, tivesse imposto, contra a vontade do compositor, a estreia de O ouro do Reno em 1869 e de A valquíria em 1870).
Durante o período que mediou entre 1849 e 1874, a perspectiva de Wagner sofreu uma alteração decisiva: as leituras de Schopenhauer e a dolorosa experiência do fracasso do Levantamento de Dresden e dos anos de exílio levaram a que o pessimismo triunfasse sobre o optimismo revolucionário – Schopenhauer levou a melhor sobre Feuerbach.
Assim, o final de A morte de Siegfried, de 1849, em que, após a morte, Siegfried é conduzido triunfalmente para o Walhalla por Brünnhilde (“o sacrifício do homem livre liberta a humanidade e permite o regresso dos deuses justos”, nas palavras de Piotr Kaminski, em Mille et un opéras), deu lugar ao cataclismo que encerra O crepúsculo dos deuses, com o Walhalla, os deuses e os heróis a serem devorados pelas chamas. No entanto, apesar de os eventos em palco serem indubitavelmente catastróficos, a música desses derradeiros momentos é, paradoxalmente, luminosa e inebriante como poucas.
Se o génio musical de Wagner é evidente em numerosos momentos do Anel, não menos admirável é a sua capacidade para assegurar a coerência de uma partitura com 14 horas de duração e cuja composição se estendeu por 18 anos. Boa parte da solidez do Anel resulta do judicioso uso do leitmotiv (“motivo condutor”, entendendo-se motivo no sentido de tema, padrão), uma breve frase musical que Wagner associa sistematicamente a uma personagem, objecto, lugar ou conceito e que, nas suas sucessivas reaparições, mutações e hibridações (novos leitmotiv podem emergir da fusão ou justaposição de leitmotivs anteriores) gera um complexo entrançado que confere unidade à gigantesca estrutura.
O Anel de Solti (e Culshaw)
A gravação da tetralogia O anel do Nibelungo dirigida por Georg Solti (1912-1997) e gravada pela Decca em 1958-1964 (O ouro do Reno em 1958, Siegfried em 1962, A valquíria em 1963 e O crepúsculo dos deuses em 1964) é considerada a melhor versão do Anel pelo Gramophone Classical Music Guide, ocupa o primeiro lugar na lista de 50 melhores discos clássicos de sempre da BBC Music Magazine e figura regularmente em quase todas as listas de “discos indispensáveis”; a Gramophone classificou-o como “o maior feito da história do disco”. Porém, se Solti merece indubitavelmente elogios, estes devem ser partilhados com uma figura não menos decisiva mas pouco lembrada: o produtor John Culshaw (1924-1980).
Culshaw fora operador de radar durante a II Guerra Mundial e entrara para a Decca em 1946, aos 22 anos, num papel subalterno, e aí subiria até se tornar num dos produtores mais preponderantes da história da editora, até mudar-se para a BBC, como director de programas musicais, em 1967 – ano que também marca a publicação de The Ring resounding, um livro em que Culshaw narra a epopeia da gravação do Anel.
Culshaw era, como Wagner, um visionário, embora, felizmente, de natureza mais benigna e menos egocêntrica – entendia estar investido da missão de democratizar a ópera. Culshaw escreveria mais tarde: “O lado mórbido da ópera é que é um nicho muito dispendioso e exclusivo. Já Richard Wagner abominava esta atitude, e, embora tenha entretanto passado um século, só agora estamos a fazer progressos ínfimos em direcção à mudança. Se, mesmo numa pequena fracção, a existência do Anel [de Solti] em disco contribuiu para esse progresso, creio que todos os que estiveram ligados a esse projecto têm razão para se congratularem”.
O Anel de Solti costuma ser publicitado como a primeira gravação completa do Anel em stereo, mas a Decca já realizara tal feito no Festival de Bayreuth de 1955, ainda que o registo tenha permanecido inédito até 2006, quando foi editado pela Testament, uma editora especializada em gravações históricas. Claro que antes já existiam gravações em mono – mas convirá ter em atenção que, se na edição original o Ring de Solti ocupava 19 discos, antes do advento do LP com micro-sulcos e velocidade de rotação de 33 1/3 rpm, em 1948, seriam necessários 112 discos de 78 rpm para albergar a tetralogia completa e que o ininterrupto fluxo musical de Wagner teria de ser quebrado a cada três ou cinco minutos para virar ou trocar de disco (ouvir O crepúsculo dos deuses obrigaria a 70 interrupções).
Culshaw ficou alarmado com o declínio das capacidades vocais dos cantores à medida que a noite avançava e as numerosas e desgastantes páginas do Anel se sucediam.
Devido às limitações de tempo, o Anel em disco existiu sobretudo sob forma parcelar até ao advento do LP, embora hoje estejam disponíveis em CD e formato digital varias gravações completas dos anos 30 e 40, geralmente publicadas por pequenas editoras especializadas em gravações históricas. E devido às condicionantes e despesas que o registo em estúdio implica, as gravações integrais do Anel que foram surgindo nos anos 50 resultavam de gravações ao vivo.
Quando Culshaw esteve pela primeira vez em Bayreuth, em 1951, ficara alarmado com a enorme quantidade de ruídos extra-musicais que os microfones captavam (e também com o declínio das capacidades vocais dos cantores à medida que a noite avançava e as numerosas e desgastantes páginas do Anel se sucediam), pelo que tentou convencer a Decca a gravar a tetralogia em estúdio.
Realidade “aditivada”
Ao contrário do que pensam alguns audiófilos (se é que tal espécie não se extinguiu completamente na era do iPod, das colunículas de plástico dos desktops e do crocitar anémico dos laptops), o fito de uma boa gravação não é reproduzir o mais fielmente possível a componente sonora de uma performance musical. Na ausência da componente visual, a gravação de estúdio deverá dirigir-se ao que Culshaw chamava o “teatro da mente”, recorrendo a ênfases e efeitos sonoros para explicitar ou sugerir a informação que num espectáculo ao vivo seria veiculada pelas imagens. Culshaw defendia que o disco não poderia alguma vez substituir a experiência de assistir ao vivo a uma récita de ópera devidamente encenada, mas acreditava “que se Wagner pudessse ouvir uma gravação moderna das suas obras mostraria interesse em tirar o máximo partido das facilidades modernas, de forma a construir uma imagem sonora mais vívida”.
E se Wagner, um control freak, se dera ao trabalho de deixar indicações precisas na partitura quanto à intensidade de cada uma das pancadas desferidas na espada que Mime e depois Siegfried estão a tentar forjar, pelo seu lado, Culshaw contava com a formidável equipa técnica da Decca, chefiada por Gordon Parry. A Decca estava então na vanguarda da tecnologia de gravação: ainda durante a época dos 78 rpm desenvolvera a FFRR (Full Frequency Range Recording), que permitia reproduzir frequências no intervalo 80-15.000 Hz e fora adoptada como padrão pela concorrência; por outro lado, a Decca aderira de imediato ao formato LP, o que lhe deu vantagem sobre as companhias que fizeram a transição mais lentamente; por fim, a Decca também fora pioneira na gravação em stereo.
Apesar de as primeiras experiências com som estereofónico datarem da década de 30, a comercialização de discos stereo só se iniciou em 1957. Porém, a Decca já andava a gravar música clássica em stereo desde 1954 – foi a primeira companhia europeia a fazê-lo – e Arthur Haddy, Roy Wallace e Kenneth Wilkinson, três magos da engenharia de som, tinham desenvolvido a “árvore Decca”, um sistema vocacionado para registar grandes orquestras, com um trio central de microfones, mais um à esquerda e outro à direita, complementado por microfones localizados, que permitiam realçar momentaneamente um cantor, um instrumentista ou um naipe. Culshaw estava convicto de que o stereo era o avanço técnico decisivo para colocar a ópera na sala de estar do cidadão comum.
Culshaw e Parry não se pouparam a esforços. Trataram de obter as 18 bigornas de diferentes dimensões e alturas de som, que Wagner desejava para o momento em que Wotan e Loge descem ao Nibelheim, onde os nibelungos escravizados labutam incessantemente para benefício de Alberich. Foram igualmente escrupulosos com os três cornos (um em dó, outro em ré bemol e outro em ré) requeridos para o momento de O crepúsculo dos deuses em que Hagen convoca os seus vassalos. Os cornos eram usualmente substituídos por trombones, mas Culshaw conseguiu encontrar um fabricante de instrumentos de Bayreuth que conhecera os cornos usados nas encenações do Anel no século XIX e encomendou-lhe três réplicas. Tentaram também seguir de muito perto as especificações de Wagner quanto à natureza do som produzido pelo dragão Fafner, que se vai alterando consoante ele está no fundo da gruta, à sua entrada e quando agoniza.
Hoje, habituados como estamos a efeitos sonoros bem mais sofisticados e realistas, alguns dos efeitos criados por Parry poderão soar algo artificiais, mas não comprometem a fruição da obra.
Porém, fizeram batota no empilhar do monte de ouro pelos nibelungos, no IV Quadro de O ouro do Reno, que foi simulado com barras de estanho – o próprio Culshaw admitiria depois que o empilhar do ouro é o efeito sonoro menos convincente do seu Anel. Hoje, habituados como estamos a efeitos sonoros bem mais sofisticados e realistas, alguns dos efeitos criados por Parry poderão soar algo artificiais, mas não comprometem a fruição da obra.
Culshaw planeou metodicamente a gravação e traçou a giz no palco as posições em que os cantores se deveriam posicionar de forma a provocar o efeito sonoro pretendido no “teatro da mente” do ouvinte no conforto do lar. A seu favor tinha a excepcional acústica da Sofiensaal de Viena, uns antigos banhos turcos construídos em 1826, depois convertidos em salão de baile e que se tinham tornado, desde 1950, na sala de gravações de eleição da Decca na Europa continental. O resultado é, ainda hoje, espectacular: o palco sonoro é explorado em largura e profundidade, a sonoridade é espaçosa, viva e transparente e nos paroxismos orquestrais os metais soam com um brilho e pujança demolidores. Poucos seriam capazes de adivinhar que o registo tem mais de meio século – só em O ouro do Reno, a gravação mais antiga, se nota um sopro bem audível.
Um elenco digno do Walhalla
Culshaw decidira que Georg Solti seria o maestro do Anel após ouvi-lo dirigir A valquíria em 1950. Solti estivera à frente da Ópera de Frankfurt e dirigira óperas de Wagner e outros compositores um pouco por todo o mundo, mas não era ainda muito conhecido e nunca gravara uma ópera completa. O anterior produtor da Decca, Victor Olof, achava-o “impertinente e incontrolável”e nunca lhe dera muitas oportunidades, mas Olof transferiu-se subitamente para a rival EMI e Culshaw ficou com o projecto do Anel nas mãos. Solti foi confirmado como maestro, mas ainda teve de vencer as reticências da orquestra, a Filarmónica de Viena, que não encarou de bom grado ser dirigida por um judeu húngaro quase desconhecido. Mas Solti conseguiu extrair dos vienenses um empenho e intensidade invejáveis – não há um momento morto ou rotineiro nas 14 horas deste Anel.
O elenco vocal reunia cantores bem diversos: num extremo, em termos cronológicos, estava a soprano norueguesa Kirsten Flagstad (1895-1962), um dos expoentes wagnerianos dos anos 30, que já se retirara dos palcos, mas foi convencida a cantar a parte de Fricka – fê-lo apenas em O ouro do Reno, pois faleceu em 1962, tendo sido substituída por Christa Ludwig.
O baixo-barítono Hans Hotter (1909-2003), que começara a cantar Wotan nos anos 30 e dominara o papel até aos anos do pós-guerra, ainda não se reformara, mas estava já em fim de carreira, o que não o impediu de fazer um admirável Wotan em A valquíria e em Siegfried (em O ouro do Reno, por Hotter não estar disponível, o papel coubera ao canadiano George London, outro wagneriano encartado).
Na geração intermédia surgiam a soprano sueca Birgit Nilsson (1918-2005), cuja voz de aço inoxidável superou heroicamente as sobre-humanas exigências do papel de Brünhilde – Nilsson estava então em plena forma, sendo vista como a sucessora de Flagstad – e o tenor franco-alemão Wolfgang Windgassen (1914-1974), sobre quem recaiu outro papel excepcionalmente árduo do Anel – o de Siegfried – e que, como Nilsson, foi figura cimeira da ópera wagneriana nas décadas de 50 e 60.
Dietrich Fischer-Dieskau (1925-2012), que cantou Gunther, ainda não adquirira o estatuto semi-divino que alcançaria a partir de meados da década de 60, mas já era respeitado e cantara em Bayreuth entre 1954 e 1961. Os seus contemporâneos James King (1925-2005) e Régine Crespin (1937-2007) cantaram o par Siegmund e Sieglinde. Das muito jovens Lucia Popp (1929-1993) e Gwyneth Jones (n. 1936) ninguém tinha ouvido falar, mas ascenderiam ao primeiro plano da ópera mundial em pouco tempo. Mesmo um papel menor como o pássaro do bosque de Siegfried contou com um nome como Joan Sutherland.
Ópera (também) para os operários
Conta Norman Lebrecht, no impagável Maestros, masterpieces & madness: The secret and shameful death of the classical record industry (2007, Penguin) que na véspera do primeiro dia de gravações de O ouro do Reno Culshaw e Solti estavam num bar em Viena a dar uma derradeira vista de olhos às partituras quando se depararam com Walter Legge, proeminente produtor da EMI. Quando este soube que a dupla se preparava para gravar O ouro do Reno, respondeu: “É uma ideia gira, mas não vai vender mais de 50 exemplares”.
Mas a ambição de Culshaw de tornar o Anel acessível às massas foi plenamente alcançada: O ouro do Reno trepou ao top 10 dos EUA e lá ficou durante várias semanas, ao lado de Elvis Presley e Pat Boone (alguém imagina que uma ópera de John Adams ou Kaija Saariaho possa hoje competir pelos lugares cimeiros do top com Lady Gaga ou Taylor Swift?)
O Anel de Solti vendeu desde o seu lançamento um total acumulado de 18 milhões de exemplares (dados de 2007), o que faz dela a gravação clássica mais vendida de sempre, bem à frente de candidatos bem mais óbvios como os recitais dos Três Tenores, de Pavarotti ou de Andrea Bocceli ou as óperas mais míticas de Maria Callas.
A reedição popular democrática
É claro que, sendo um best seller, o Anel de Solti nunca deixou de estar disponível no mercado e foi assumindo diferentes formas ao longo do tempo – embora nunca se tenha transformado em dragão. O que oferece então esta nova reedição?
Além dos 16 CDs com som remasterizado em 2012, a caixa contém um CD-ROM com os textos cantados e respectivas traduções, e dois CDs com o guia áudio An introduction to Der Ring des Nibelungen, uma análise da tetralogia, em termos de leitmotiv, pelo musicólogo Deryck Cooke (famoso por ter sido autor de uma das mais tocadas e gravadas reconstruções da Sinfonia n.º 10 de Mahler), que foi concebida originalmente como uma palestra para ser radiodifundida pela BBC, em 1968, e que é uma preciosa ajuda na compreensão da labiríntica arquitectura do Anel e recorre a 193 exemplos retirados da gravação original ou gravados expressamente para o efeito.
A reedição de 2015 é, portanto, a que mais se aproxima do sonho democrático de Culshaw de colocar O anel do Nibelungo ao alcance de todos.
A remasterização de 2012 é a terceira da era do CD: a primeira foi realizada em 1984 para a primeira edição em CD, a segunda foi realizada em 1997, para a edição Super Deluxe que assinalou os 50 anos de ligação de Solti à Decca, por James Locke (que fora engenheiro assistente nas gravações de A valquíria). Locke não só tirou partido das novas tecnologias de redução de ruído como gerou uma nova master tape, já que havia trechos da master original que se tinham degradado. Foi a partir de uma cópia digital de 24 bits desta nova master criada em 1997 que foi realizada a remasterização de 2012, já que a degradação das fitas originais se acentuara desde 1997.
A principal novidade desta reedição é o preço: custa 39,99 euros na FNAC.pt e 32,06 libras na Amazon UK, ou seja, menos de metade do preço da edição de 1997 (que não inclui o guia áudio em 2 CDs, mas tem libreto impresso) e uma fracção da edição Super Deluxe lançada em 2012 (e hoje esgotada) e que inclui: 1) um CD com aberturas de Wagner dirigidas por Solti; 2) o DVD “The golden ring: The making of Solti’s recording of Der Ring des Nibelungen“, um documentário realizado em 1964, durante as gravações de O crepúsculo dos deuses; 3) livro com libreto e traduções; 4) o livro de John Culshaw, The Ring resounding; 5) um Blu-ray Audio com toda a tetralogia em versão lossless de 24 bits (embora seja duvidoso que haja muitas pessoas no mundo com aparelhagem e ouvidos para tirar partido da mais elevada resolução deste meio); 6) facsimiles de excertos da partitura usada por Solti nos ensaios e de memorabilia (fotos, anúncios, críticas) ligada à edição original.
A reedição de 2015 é, portanto, a que mais se aproxima do sonho democrático de Culshaw de colocar O anel do Nibelungo ao alcance de todos. Século e meio depois de ter sido composta, a tetralogia mantém na íntegra o seu valor artístico e actualidade (mesmo que não se adira à interpretação de George Bernard Shaw) e a leitura de Solti continua a rivalizar com as melhores versões surgidas no último meio século e toda esta prodigiosa concentração de génio e trabalho aturado custa um preço irrisório. A questão é se, entre o proletariado ou entre as classes possidentes, haverá ainda quem, neste mundo hiper-fragmentado, hiper-acelerado e hiper-disperso, tenha tempo e paciência para consagrar a sua atenção a uma saga cantada numa língua desconhecida que se desenrola durante 14 horas.