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Esta quinta-feira à noite, num lapso de poucas horas (ou até mesmo em simultâneo), existiram três coisas que ficaram na retina quando se olha para este beco em que se transformou o Sporting, que muitos pensam ter saída mas que poucos conseguem explicar qual será. Em conferência no Altice Arena, Jaime Marta Soares, líder demissionário da Mesa da Assembleia Geral, já falava numa cenário de destituição, futuras eleições e total liberdade para o atual número 1 se recandidatar. Na semana passada, da forma como foi apresentado, era algo impossível. Na Sporting TV, Bruno de Carvalho, presidente dos leões que se encontra suspenso por decisão da Comissão de Fiscalização, admitiu diluir todos os órgãos entretanto criados e deixar cair todos os processos/providências cautelares. Na semana passada, qualquer uma destas medidas era algo impossível. Na TVI24, Artur Torres Pereira, que comanda a Comissão de Gestão, utilizou expressões como ditador, tirano e populista para descrever o seu antigo superior no Conselho Diretivo. Na semana passada, com esta violência verbal, era algo impossível.
Podíamos ainda acrescentar o nome de Sousa Cintra, antigo líder verde e branco entre 1989 e 1995, que é uma espécie de número 2 da Comissão de Gestão e que acusou Bruno de Carvalho de querer fazer do Sporting o seu clube. E haveria mais casos, mas a ideia está percebida: quem considerava o presidente leonino um visionário, uma lufada de ar fresco, um estratega fascinante e uma garantia de futuro é, em resumo, quem o vê agora como um pesadelo no presente que nem com o que fez passado se pode defender do que tem acontecido nas últimas semanas. E isto numa guerra que começou por ser apenas um choque entre órgãos sociais mas que se transformou numa batalha sem precedentes na história e que meteu pelo meio providências cautelares, processos disciplinares, muitos pareceres e alguns tribunais. Hoje, com a sabedoria da distância no tempo, é possível detetar alguns sinais de instabilidade interna antes da polémica gerada após o jogo em Madrid. Ainda assim, era impossível imaginar que dois meses e meio depois haveria um cenário como aquele que se encontro montado.
No Altice Arena, os sócios do Sporting irão colocar “sim” ou “não” (ou abster-se) num boletim que fala em “Revogação com justa causa do Conselho Diretivo”. Na verdade, o que vão escolher é o cenário 1 ou 2, como se fosse aquela balança que a justiça tem na mão quando se quer que seja cega: pesam mais os quatro anos de construção ou os quatro meses de destruição? E é sobre esta pergunta que se devem tirar quatro grandes reflexões em relação ao que se está a passar, num filme que, como quem está por dentro de todo o processo tem consciência, chega a este ponto por uma razão: Bruno de Carvalho foi sendo esticando a corda até ao limite a ganhar, mas não teve a destreza para perceber quando é que os fios começaram a soltar-se até partir.
E para dissipar dúvidas e contextualizar acontecimentos, a explicação para os quatro meses de destruição tomados no título deste texto: é verdade que foi o post após a derrota em Madrid, no início de abril, que funcionou como primeira gota de uma bola de neve que foi ganhando proporções gigantes até ao tamanho inimaginável que atingiu agora, mas foi na Assembleia Geral marcada pelo Conselho Diretivo, a meio de fevereiro, que tudo começou a mudar sem que ninguém percebesse. Recordando uma frase que repetiu algumas vezes em 2013, ao longo do primeiro ano de mandato, “o Bruno de Carvalho adepto é o pior inimigo do Bruno de Carvalho presidente”. O atual líder tem a convicção que os presidentes adeptos são o futuro, como o próprio se caracterizou em termos públicos, mas esse foi também o principal pecado para chegar onde está no presente.
O problema do estilo ou uma mera questão de perceção
Cinco anos são muito tempo. No futebol, tornam-se uma eternidade. Mas foi há cinco anos que Bruno de Carvalho, num estilo ainda mais belicista do que hoje apontam, conseguiu negociar a reestruturação financeira que nessa altura foi vital para encontrar a margem suficiente para o clube não se afundar num Processo Especial de Revitalização (PER) que parecia inevitável. Chegou a haver ameaças à banca (Millennium BCP e BES), foi traçado um cenário onde ou ajudavam o clube a encontrar as condições mínimas de solvabilidade ou caía tudo com estilhaços para a sua imagem, e a verdade é que o acordo avançou mesmo. Nessa altura, o líder leonino foi tomado como herói; hoje, se fizesse o mesmo, era tudo menos isso. A ideia geral da perceção que se tem das coisas mudou ao ponto de Artur Torres Pereira, antigo vice que ia sabendo nas reuniões da Direção de todos esses passos, andar a pedir aos bancos para que nem sequer falem com Bruno de Carvalho.
Aqui entronca uma das ideias que mostra bem a mossa que os últimos quatro meses fizeram na imagem de Bruno de Carvalho. Uns achavam que o estilo era compreensível tendo em conta os objetivos, outros nunca gostaram apesar de admitirem que os objetivos iam sendo alcançados. Agora, não há objetivos que justifiquem o estilo belicista, truculento, de constante guerra com demasiados alvos ao mesmo tempo sem exército sequer para metade dessas batalhas. Mais um exemplo, agora no campo mais desportivo: quando assumiu a presidência, o Sporting abriu guerra com o FC Porto e chegou mesmo a cortar relações, sendo que, a partir daí e até este ano, os dragões deixaram de ganhar no futebol; agora, o líder do clube é criticado pelas constantes alusões ao outro rival Benfica, que foi vencendo títulos atrás de títulos e que se tem colocado à sombra deste momento dos leões para ir reagrupando tropas após uma temporada onde sofreu “ataques” de todos os lados.
Entre estas duas realidades, os pontos altos de quatro anos em que o Sporting foi construindo (aumento exponencial do número de sócios, aumento da competitividade do futebol, nascimento do Pavilhão João Rocha, domínio crescente nas modalidades e estabilização financeira) foram diluídos entre os pontos mais baixos de um Sporting em completa destruição, algo que colocou em causa a parte económica, aplicou um duro revés a nível de futebol profissional e reencaminhou o clube para o caminho onde o objetivo passa mais por estabilizar os danos do que dar continuidade ao que tinha sido feito.
O joker que foi lançado demasiado cedo e a ilusão de 90% inexistentes
Há vários críticas que podem ser feitas a Bruno de Carvalho, mas há uma, aquela que até hoje nunca ninguém foi capaz de provar a não ser com questões teóricas e de ligações indiretas, que mudou tudo o resto: a forma como teria contribuído através desse discurso aceso e com algumas farpas aos jogadores da equipa profissional de futebol para o ataque de 50 elementos de cara tapada na Academia, com agressões a jogadores, equipa técnica e staff. São raras, raríssimas as intervenções do ainda presidente leonino em que não toque no assunto para se tentar dissociar, mas essa é uma marca que se mantém, seja ela mais ou menos justa, em mais um exemplo de como muitas vezes a perceção é capaz de esmagar a realidade.
Depois de ter sido reeleito numa eleição sem história até ao dia mas a fazer história no dia (maior participação de sempre num ato eleitoral), Bruno de Carvalho, que em termos de Direção trocou apenas Artur Torres Pereira (Vítor Ferreira já tinha saído) mesmo estando muitas vezes a queixar-se da falta de apoio interno que tinha, ficou na mão com uma carta de trunfo de quase 90% para ser jogada no momento ideal ao longo do mandato de quatro anos. Menos de um ano depois, na sequência de um episódio menor numa Assembleia Geral em que iriam ser votadas alterações estatutárias e um novo Regulamento Disciplinar, não aguentou esse seu estilo impetuoso e lançou o joker nessa altura, fazendo depender o seu futuro da aprovação com 75% ou mais das medidas que tinha apresentado. Ganhou, de forma esmagadora, com 90%. Mas foi aí que começou a perder.
Se recuarmos a 2011, por exemplo, era fácil perceber de onde tinha chegado a maior fatia do triunfo de Godinho Lopes: os sócios que tinham até sete/oito votos eram maioritariamente a favor de Bruno de Carvalho, os sócios que tinham mais do que sete/oito votos inclinaram-se para o vencedor do sufrágio. Ou seja, era a antiguidade que decidia. Sete anos depois, a realidade mudou e existe uma franja de associados, entre os 30 e muitos e os 40 e muitos anos, que assumiu esse peso em termos eleitorais. Uma geração que, em traços gerais, se mostrou sempre avessa em termos genéricos a uma era que começou com Santana Lopes e José Roquette e se foi prolongando até José Eduardo Bettencourt, com alguns líderes mais aceites do que outros, caso de Soares Franco. Uma geração que, ainda assim, não queria passar do oito para o 80, preferindo o equilíbrio numa lufada de ar fresco que era preconizada com o atual líder. Uma geração que se sentiu entre a espada e a parede em fevereiro.
A maioria dos associados presentes no Pavilhão João Rocha nesse dia de fevereiro era 100% apoiante de Bruno de Carvalho e o que quer que aparecesse era votado a favor, mas também havia muitos sócios que deram aí uma espécie de última oportunidade ao presidente leonino, sentindo-se “chantageados” mesmo que de forma inconsciente por terem de votar a favor de pontos com os quais não concordavam a nível de alterações estatutárias sob pena que o líder saísse e o clube voltasse à estaca zero. Aquilo que aí foi interpretado como um cartão verde em termos de conteúdo trazia por trás um cartão amarelo em termos de forma como tinham sido feitas as coisas. E a vaia após a derrota em Madrid, na receção em Alvalade ao P. Ferreira, mostrou aquilo que para alguns era óbvio: falar dos 90% como referência era acreditar numa sondagem que iludia e muito.
Bruno de Carvalho e a versão estratega que falhou na altura proibida
Quando terminou a primeira temporada completa no comando do Sporting, a equipa de Leonardo Jardim, fazendo mais com menos, terminou num honroso segundo lugar o Campeonato, garantiu o regresso à fase de grupos da Liga dos Campeões e teve o mérito de lançar nomes na ribalta como o miúdo William Carvalho ou o regressado Adrien Silva. Depois, com Marco Silva (e má relações entre presidente e treinador à parte), houve um ligeiro acréscimo no investimento e Nani funcionou como símbolo dessa evolução, sendo cedido por empréstimo do Manchester United. A seguir, chegou Jorge Jesus e todo o investimento começou a ser outro. Ao falhar a Champions da próxima época, é inevitável que aconteça uma de duas coisas na SAD verde e branca: ou há vendas de jogadores ou a folha salarial terá de baixar. Mas a verdade é que, no meio deste trajeto, houve sempre a convicção de que esta estratégia de crescimento sustentado iria cruzar com o momento em que os rivais reduziriam custos.
Muitos dos méritos que hoje parecem andar esquecidos mas que existiram nos primeiros quatro anos de Bruno de Carvalho na liderança do Sporting estiveram relacionados com a capacidade de projetar o futuro e trabalhar o presente balizado nesses mesmos pressupostos. Esse foi o mérito do presidente leonino. Esse pode ter sido o maior demérito do presidente leonino. E tudo porque, a certa altura, começou a jogar tudo na base do “tudo ou nada”, com a teoria do “eu ou o caos”, achando que teria um exército suficientemente grande a seu lado sem perceber que os soldados que já tinham saído ou que a ele nunca se juntaram teriam as suas armas. Depois, foram caindo as “bombas atómicas”: o comunicado de resposta dos jogadores ao post após a derrota em Madrid; a operação Cashball; o ataque na Academia. Aquilo que considerava ser o caminho ideal para atingir o regime presidencialista na sua máxima essência que gostava de atingir acabou por virar-se contra si próprio.
Poucos ou nenhuns têm conhecimento de um pormenor, ou de uma conversa, que podia ter feito toda a diferença no futuro do Sporting: no mês passado, entre a primeira e a segunda reunião dos órgãos sociais após a derrota na final da Taça de Portugal com o Desp. Aves, elementos do Conselho Diretivo falaram com Jaime Marta Soares a propósito de um possível calendário eleitoral, abrindo portas a um possível sufrágio em setembro que não prejudicasse a preparação da época de futebol e o acordo que estava delineado (ou apenas por assinar) para recuperar as VMOC para o clube num negócio com tanto de importante como de vantajoso para todas as partes, incluindo o fundo estrangeiro que apoiaria a operação. Começou a ver-se uma luz que se apagou logo no início da segunda reunião, em que Bruno de Carvalho apareceu de forma brusca a recusar qualquer hipótese de se demitir ou de marcar eleições, algo que surpreendeu até os presentes que sabiam da conversa exploratória.
O presidente leonino sentia que ainda tinha a faca e o queijo na mão: tinha sido legitimamente eleito pelos sócios pouco mais de um ano antes, tinha os meios do clube do seu lado e arriscou ir para o braço-de-ferro com todos aqueles que lhe faziam frente. até ver, perdeu em toda a linha: nove jogadores rescindiram contrato, Jorge Jesus partiu para o Al-Hilal e, pior, os tribunais passaram a faca e o queijo para a mão de Jaime Marta Soares. A corda foi esticada ao máximo, era claro que poderia partir, mas a mesma figura que se destacara antes pela capacidade de antecipação acreditou que não se chegaria a esse cenário. Hoje, quando os votos da Assembleia Geral acabarem de ser contados, poderá deixar de ser presidente do Sporting. E num contexto onde acabou por desrespeitar as promessas que tinha feito, como a de não mais voltar ao Facebook. No último mês, o líder verde e branco diz ter aparecido em 17 mil notícias da Cision, mas quantas delas não foi o próprio que promoveu?
No final, não haverá vencedores. E poucos perceberam isso
Durante a semana, circulou pelas sempre ativas redes sociais e grupos do Sporting, onde se percebe que a quase unanimidade do líder verde e branco se transformou numa divisão cada vez mais equitativa, uma espécie de cartaz que defendia que, entre outros pontos, se a destituição avançasse iria dar força à rescisão dos jogadores, voltariam as vendas ao desbarato, o apogeu das modalidades iria acabar e até que o próprio Pavilhão passaria para a SAD por exigência da Holdimo. E este foi apenas um entre muitos, que serve aqui apenas de exemplo para a ideia geral: se houver destituição, voltará o caos. Em paralelo, serve também para desenhar os dois cenários possíveis que irão sair do escrutínio desta Assembleia Geral.
Cenário 1: a não destituição do Conselho Diretivo. Na antecâmara da reunião magna, Bruno de Carvalho, que não marcará esta tarde presença no Altice Arena, fez saber que “exige” que a Mesa demissionária da Assembleia Geral, a Comissão de Gestão e a Comissão de Fiscalização se afastem caso não seja destituído (algo que não deverá acontecer). E passa a ter um trunfo: a opinião dos associados. No entanto, entre a preocupação de se defender e atacar no momento, no presente, foi hipotecando muito do que lhe poderia valer no futuro. Em termos práticos, tem um plantel de futebol que olha para si com desconfiança, aumentou o risco de mais uma temporada de insucesso e perdeu uma grande base de apoio. Se ganhar, também já perdeu. Até porque ficará sempre no ar o fantasma de quando uma situação do género ou pelo menos parecida poderá voltar a acontecer.
Cenário 2: a destituição do Conselho Diretivo. Várias fontes que fomos contactando ao longo destes últimos dez dias garantiram que o cenário de expulsão de sócio de Bruno de Carvalho está em cima da mesa, mesmo sabendo que os fundamentos para tal podem ser reprovados pelos tribunais cíveis. Por isso, quer Jaime Marta Soares, líder demissionário da Mesa, quer Artur Torres Pereira, uma opção de recurso para liderar a Comissão de Gestão após uma série de recusas, jogam também muito este sábado. Mesmo que a destituição avance, é uma vitória que traz uma derrota: em vez de secundarizarem o “fantasma” Bruno de Carvalho, irão dar uma outra força que mina o terreno de qualquer sucessor à mínima pedra que encontrem no caminho.
Ao contrário do que se possa pensar, a Assembleia Geral deste sábado não será um fim mas sim mais um desenvolvimento de uma crise institucional sem precedentes no clube e que conseguiu, em quatro meses, partir ao meio um clube que tinha vindo a juntar os cacos do reinado falhado de Godinho Lopes em Alvalade. Agora, está pior. Em 2013, havia duas opções com outras tantas caras: uns queriam cortar com o passado de forma extrema (Bruno de Carvalho), outros queriam mudar o passado de forma conservadora (José Couceiro); agora, existem duas opções com uma única cara: uns que são a favor e contra Bruno de Carvalho. Foi essa centralização de poder, essa criação do culto a um regime cada vez mais presidencialistas para acabar com os grupos e fações no clube, que permitiu ao atual líder obter os seus méritos. Mas esse foi também o seu demérito. E é por isso que os associados verde e brancos vão sufragar não uma Direção mas o peso entre quatro anos de construção e quatro meses de destruição (num dia que, apara prosseguir a cadência, terá bem mais do que quatro horas).