A primeira edição da Bienal Walk&Talk vai acontecer entre 25 de setembro e 30 de novembro de 2025 e sob o mote Gestos de Abundância, anunciou Jesse James, diretor artístico, esta sexta-feira na apresentação à imprensa. O Observador já tinha noticiado em abril que o Walk&Talk, festival de artes dos Açores que decorria anualmente na ilha de São Miguel, iria dar lugar a uma bienal.
De carácter experimental e participativo, o festival que transformou São Miguel num museu ao ar livre, com intervenções artísticas no espaço público e uma programação quase toda acessível e de entrada livre, há muito que denunciava ventos de mudança, começando pela decisão de estender as residências artísticas e programar ao longo do ano. Depois da última edição, em 2022, seguiram-se dois anos de profunda reflexão. “Como é que queremos que isto cresça? Como é que vai ser a continuidade do Walk&Talk nos próximos 10, 20 anos?”, recorda Jesse James, que em 2011 fundou o festival multidisciplinar que redefiniu a cena artística açoriana, acompanhado por eventos como o festival Tremor ou instituições como o Arquipélago.
A resposta chegou: um evento “menos rápido e extrativo”, com “tempo” e interagindo com outras estruturas culturais da região. Há também uma mudança na agenda: os tradicionais dez dias em julho dão lugar a dois meses no outono, numa decisão saudada por Sofia Ribeiro, Secretária Regional da Educação, Cultura e Desporto. A transferência do evento para “uma época baixa do turismo” contribui para “um calendário cultural ao longo de todo ano” na ilha, segundo a representante do Governo dos Açores (coligação PSD/CDS-PP/PPM).
Sob o mote Gestos de Abundância, a bienal norteia-se pela ideia de que o arquipélago não é um território periférico ou de escassez, mas sim um território onde o que existe (e, talvez, até em abundância) merece ser descoberto, sublinhou a organização esta sexta-feira. “Deixa de ser um festival só de festa e boa onda. A bienal é isso, sim, mas também é para ir mais a fundo. Se calhar não tão é flashy, mas interessa-nos isso”, admite James, que não esconde o desejo de “chegar a mais gente”.
“A participação não tem de acontecer só numa ida a uma exposição, pode ser no contexto de uma aula que acontece na universidade. Não é só trazer pessoas à bienal, é também perceber como é que a bienal vai ao encontro delas”, diz o diretor artístico e curador. Um exemplo desse desejo expresso é a parceria com a Universidade dos Açores, instituição onde, em 2024, não existe qualquer curso artístico. O estreitar de laços entre a bienal e a academia acontece através dos centros de investigação associados e “ligados à biologia, à ecologia, à preservação dos oceanos, ao estudo de algas, cogumelos”.
É uma vertente que, por exemplo, o festival não encontrou tempo nem espaço explorar. “Não tínhamos tempo para perceber o que havia [no território]. Um evento como um festival é rápido, tem outro ritmo. Nada contra esse ritmo que se calhar tem de existir noutros projetos, mas para nós deixou de fazer sentido. Aquilo que pode ser o contributo da bienal é criar um lugar de discussão, de centro e de conversa e que não existe na bolha ensimesmada no meio artístico.”
Foi precisamente para sair da bolha que se criaram as Assembleias da Abundância, encontros entre pessoas de diferentes áreas da sociedade (de artistas a agricultores) — e, portanto, abundantes em perspetivas e saberes — para debater temas e sonhar sobre o território de São Miguel. A primeira aconteceu em fevereiro e a segunda no último fim-de-semana.
Sobre a programação propriamente dita, pouco se levantou o véu esta sexta-feira, no pontapé de saída da bienal Walk&Talk, cuja curadoria nesta primeira edição é assinada pelas curadoras Claire Shea (Toronto), Fatima Bintou Rassoul Sy (Dalar) e Liliana Coutinho (Lisboa), que há vários meses que desbravam caminho em São Miguel, procurando conhecer o tecido artístico.
Entre os primeiros nomes a apresentar comissões inéditas para 2025 contam-se artistas como Alice Visentin, ANDLab, Candice Lin, Colectiva MALVA, Ebun Sodipo, Helle Siljeholm, Gala Porras-Kim, Janilda Bartolomeu, Joana Sá, Lucy Bleach, Mae-Ling Lokko, Maria Emanuel Albergaria, Meg Stuart & Forum Dança, Nadia Belerique, Resolve Collective, Uhura Bqueer & Soya the Cow. Alguns deles “já estavam a tentar trabalhar nos Açores”, nota Jesse James. Destacam-se ainda as coproduções com companhias como Hotel Europa e Os Possessos, verdadeiros acontecimentos numa ilha (e num arquipélago) em que não existe uma estrutura profissional de teatro.
Outros artistas serão confirmados nos próximos meses, até porque até ao final de novembro serão lançadas open calls para duas bolsas, revelou a organização esta sexta-feira. Trata-se de uma bolsa de criação e residência artística e outra de programação — esta última apenas para agentes sediados na ilha de São Miguel, uma particulariedade permitirá “alicerçar a relação com o território”, frisa a organização.
A primeira Bienal Walk&Talk terá a duração de dois meses e a programação estender-se-á por vários espaços da cidade de Ponta Delgada e da ilha de São Miguel, nomeadamente a Universidade dos Açores, onde decorreu a apresentação à imprensa, ou o Arquipélago — Centro de Arte Contemporânea, mas também outros museus, galerias, espaços independentes e públicos da ilha.
O festival Walk&Talk, organizado pela associação cultural Anda&Fala, teve a primeira edição em 2011, na cidade de Ponta Delgada. A partir daí, o certame aconteceu anualmente em julho, consolidando-se como festival multidisciplinar com espaço para a experimentação, mas com um crescimento limitado, já que apenas conseguiam obter financiamento do Governo Regional e da Câmara, estando impedidos de concorrer às verbas da DGArtes por uma lei que ditava que associações culturais sediadas nos Açores e na Madeira não se podiam candidatar a apoios nacionais.
Foi em 2017 que a associação Anda&Fala conseguiu assegurar uma reunião com Miguel Honrado, então secretário de estado da Cultura, “no sentido de mudar a lei”, recorda Jesse James. Alegaram que era discriminatório (porque o inverso podia acontecer, isto é, uma estrutura com sede no continente podia concorrer a apoios da direção regional da cultura nos Açores e na Madeira) e o documento foi corrigido no sentido de permitir que as estruturas madeirenses e açorianas pudessem concorrer à DGArtes. “Esse protocolo foi assinado no Walk&Talk”, gaba-se Jesse James. No ano seguinte, em 2018, já se candidataram aos apoios da DGARtes. “Para nós mudou o paradigma totalmente. A partir daí passámos a ter um financiamento sustentado”.
O processo de profissionalização da associação consolidou-se. “A DGartes deu-nos isso. Depois foi crescendo”. Até à última edição, em 2022, e respetiva pausa que chega agora ao fim. Pelo meio, em 2020, a associação cultural fundou a vaga, um espaço que que além de casa da associação se tem pautado por oferecer uma programação cultural de relevo na cena artística açoriana.
O Observador viajou até São Miguel, Açores, a convite do Walk&Talk.