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O que raio faço eu aqui? Um diário de Glastonbury

Prometi que se voltasse a um festival seria em grande. Não havia melhor hipótese que o clássico Glastonbury, em Inglaterra, que vai na edição 35. Este é o relato do início do circo.

Antes de começar, um pouco de contexto. Será preciso. Há uns anos, depois de ir a um Primavera Sound em Barcelona, decidi que não meteria os pés noutro festival. Já o sabia mas foi preciso saber outra vez: os festivais não são bem sobre música. Bom, por alguma razão estes eventos têm o nome que têm, mas por vezes a música (ou o seu protagonismo) fica por aí. Esperar que qualquer concerto seja maior do que a expectativa é um erro. Por isso, um tipo tem que se encher de entusiasmo, achar que vai ser mesmo bom para a coisa correr mesmo bem. É um pouco como ir a um baptizado onde não há álcool.

Há um ano perguntaram-me se queria ir a Glastonbury, sem pensar muito disse que sim. Já sabia onde me ia meter e para o entusiasmo crescer comecei a alimentar-me desta ideia: se é para ir a um festival que seja o Vietname dos festivais. Se o é ou não, não sei. Até porque este ano está muito calor (trouxe galochas, contudo). Que seja um festival onde há eventos para se cantar os temas de “Frozen”, o filme (é verdade). Que seja um festival onde possa ver “The Big Lebowski” se me apetecer, fazer karaoke em frente de umas centenas de pessoas se os exageros me forçarem a isso. Que seja um festival onde tenho a possibilidade de ver Craig David, Kiefer Sutherland e Napalm Death. Se vir um destes três fico contente. Ficarei mais se vir Solange, Katy Perry e um pouco de Radiohead. Parece que o concerto destes ingleses vai ter quase três horas. Por muito que tenha gostado de Radiohead no passado, atualmente há coisas mais importantes para fazer durante um concerto de três horas num festival: por exemplo, picar qualquer coisa possivelmente irrelevante que esteja a acontecer ao mesmo tempo. Se ouvir a “Creep” lá ao fundo, não desatarei a correr. Prometo contar o que vi.

Estive uns dias em Londres antes. Quando cheguei no sábado a Hyde Park pelas 14h30 havia gente inconsciente nos relvados num misto de rendição ao calor insuportável e à cerveja. Centenas de pais e crianças brincavam em volta do Diana Memorial Fountain. As filas para gelados eram imensas. Os cocktails no Southbank Centre desapareciam num instante. Domingo estava outra vez um calor insuportável e fui para um lido em Ruislip, na esperança de me meter na água, mas mil famílias russas e polacas chegaram antes de mim. Havia avisos para a malta não ir a banhos, cena estranha num lago com água pelo joelho, mas ao aproximar-me da água percebi que o cheiro não era fixe. E vou ficar por aí, pelo “não era fixe”.

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Foi nesse momento que percebi que deveria encarar Glastonbury como um programa de televisão do Grayson Perry. Uma espécie de experiência antropológica de bolso com algum sentimentalismo sobre como acontecem certas coisas no Reino Unido. Não haverá nenhuma tapeçaria no final de cada dia, mas conto pelo menos ter algum pensamento próximo do iluminado. E peço já desculpa se isso não acontecer ou se algum dia falhar ou se falar pouco sobre música. Afinal, andam por aqui cerca de 175 mil pessoas, há muita selfie para tirar e as baterias de telemóvel e os powerbanks não são eternos sem eletricidade — ficar na zona de imprensa para carregar qualquer coisinha é menos interessante do que estar a aprender uns números de circo. #YOLO. Ou #FOMO. O leitor que decida.

Um calor dos diabos no solstício

Terça-feira ao final da tarde já havia muita gente em Paddington para ir para Glastonbury. Terça à noite já havia uma fila enorme de pessoas para entrar. Através de uma webcam instalada no recinto, era possível ter uma vista panorâmica sobre tudo. Parece uma cidade. Quarta-feira de amanhã, quando as portas abriram, era um caos ordenado. Passado umas horas as filas para entrar eram de três horas. Felizmente ainda não estou lá. Está um calor dos diabos no dia do solstício. As filas ficam para o final do dia, não há razão para stressar. Afinal, alguém já montou a tenda por nós, perto da tenda The Church, em Hawkwell: Deus está a cuidar de mim e dos meus em Glastonbury. Eu, que sou ateu. Todos os santos têm de ajudar e é de aproveitar a espiritualidade local.

Não fui à tropa e nunca senti que algum festival a que tenha ido tenha sido um rito de passagem. Ainda é cedo para saber se é desta que saio da adolescência e que passo por algo mais complicado do que tentar não saber o resultado de um jogo do Benfica antes de o ver em diferido (sou desses).

Glastonbury é um rito de passagem para muitos adolescentes britânicos. As razões são as mesmas que estão associadas a qualquer festival de música e é aqui que entra a questão de escala. Glastonbury é, de facto, uma pequena cidade. A experiência da independência associada a essa ideia de festival de música é muito mais intensa: há mais liberdade, mais para fazer e há imensa coisa que pode correr mal. Há toda uma ideia de sobrevivência – exagerada, mas ela existe – que torna isto mais especial. São centenas de concertos por dia, dezenas de atividades diferentes, milhares e milhares de pessoas num cenário lindíssimo e a constante ameaça de chuva que transforma o recinto em algo próximo de uma trincheira burguesa.

Não fui à tropa e nunca senti que algum festival a que tenha ido tenha sido um rito de passagem. Ainda é cedo para saber se é desta que saio da adolescência e que passo por algo mais complicado do que tentar não saber o resultado de um jogo do Benfica antes de o ver em diferido (sou desses).

A tradição diz que é para chegar na quarta. Dia calmo, com pouco a acontecer e tempo para montar a tenda. Assim se fez, então. 17h30 e chego à Worthy Farm — sem trânsito (o que é impressionante em algo desta dimensão e com grandes números de pessoas a fazer o check in neste mesmo dia). Zero complicação a estacionar, malta a ajudar nas direções para não criar caos. Tenho amigos que adorariam o festival só pela facilidade no estacionamento.

O carro ficou no sector E11 (perdoem o detalhe, é para ter escrito em algum lado caso me esqueça). Agora são duas horas a pé a cozinhar a trinta graus. Muita gente passa com trolleys cheios de cerveja. Cheios. Cerveja morna para o fim de semana todo. Toda a gente se entreajuda nesta caminhada. É bonito de se ver. Num calor insuportável, quem tem uma mão extra carrega algo de alguém até onde pode.

A segurança à entrada não é tão apertada como prometido. O que é bom. De manhã era muito apertada mas após muita gente desmaiar com o calor e as filas crescerem decidiram parar. Ainda bem. Os relatos de quem passou por isso são de terror. Ao entrar no recinto percebe-se a importância de chegar na quarta-feira. Não é uma questão de arranjar lugar e, sim, de entrar no espírito, de gastar um dia a perceber tudo o que há aqui.

O que não há — ou há pouco — são chuveiros. É absurdo tomar banho em Glastonbury. Parece que, para muitos, o cheiro e a sujidade fazem parte desta espécie de retiro. Há gente de todas as idades (as crianças até aos 12 não pagam) e a ideia de que há algo para todos aqui: música, festa, atividades e comida (não há bifanas nem sardinhas, Portugal continua a falhar na promoção do que é bom). Mais uma vez é uma questão de escala: recinto grande, muita gente, muitas opções para comer. E neste último capítulo a maior parte da oferta parece, e é, deliciosa. Não é só para encher a barriga.

Andar pelo festival é essencial para perceber a dimensão do evento. Há dois palcos principais, o Pyramid e o Other Stage, alguns de média dimensão e dezenas espalhados por tendas ou cantos inesperados onde de repente está algo a tocar que chama a atenção.

Nudistas, Hare Krishna e Radiohead

Quarta não há muito para fazer exceto absorver isto tudo. Ir à Silent Disco, apanhar um ou outro DJ de northern soul a tocar ao final da noite e ir até ao topo de uma das colinas para ver o fogo de artifício. É tradição e certamente estavam lá cerca de 50 mil na zona do The Park. É bonito de ver e sentir que algo está a começar. Segundo me dizem neste ano estava mais gente ali do que o habitual.

Se isto é o Vietname dos festivais europeus, o cheiro a napalm pela manhã existe. Fede a casa de banho à volta da zona onde estou acampado. É normal, as casas de banho portáteis são pouco comuns em Glastonbury e o que existe, na maioria dos casos, são “privados” com buracos para uma vala comum ao ar livre. Há outros onde as necessidades se tornarão em composto e uns onde a urina pode ser usada para produzir eletricidade. Certamente encontrarei mais novidades em relação a isso. E ainda nem se passaram 24 horas.

Há algo de fascinante em estar aqui sem isto ainda estar a acontecer a 100%. Sente-se que quem chega antes começa a beber toda a onda do festival. Não há aquela ideia de ser o primeiro a chegar a um jantar de amigos e ficar à espera. 

Tudo se resolve com uma sandes de bacon e salsichas. Podia comer aquilo em todos os pequenos-almoços. Os ingleses fazem bem estas coisas. É como estar em casa (na minha casa). Barriga cheia e tudo pronto para um recorde do Guiness: o maior símbolo da paz humano. O meu primeiro. Infelizmente não estava lá para a feijoada na ponte Vasco da Gama.

Quinta-feira acontece com a mesma calma de quarta. O tempo passa entre andar de um lado para o outro, beber umas cervejas, comer e espreitar os cantos possíveis. Há um centro de ioga para nudistas. Há malta que se casa aqui. Há uma zona de permacultura onde se come muito bem e barato. Ou uma tenda hare krishna onde se come de borla. Os menos mitras doam algum dinheiro.

Há algo de fascinante em estar aqui sem isto ainda estar a acontecer a 100%. Sente-se que quem chega antes começa a beber toda a onda do festival. Não há aquela ideia de ser o primeiro a chegar a um jantar de amigos e ficar à espera. Os otários são os que chegam na sexta e perderam toda a emoção crescente dos primeiros dois dias. Faz-se muito em Glastonbury sem se estar a fazer nada. Começo a perceber isso. E a gostar.

O público é diverso mas não necessariamente internacional. A grande maioria são britânicos, isto é um festival deles e para os gostos deles. É também um festival para gente branca instalada na vida. Muitos vestem-se a rigor para estes dias, fingem-se de hippies cheios de glitter por um fim de semana e na semana seguinte voltam à normalidade dos seus trabalhos com esse espírito posto de lado. Muita gente veste-se a rigor mas passa completamente ao lado da ideia de sustentabilidade do festival. É algo que está presente em todos os cantos do festival. E claro que a mensagem passa para alguns. Nem que seja só nestes dias.

Não vi muito na quinta-feira. A maior parte do que me interessava acontecia à noite em tendas de dança. Era impossível entrar no Beat Hotel às 21h para ver Hunee. Sem existirem atividades nos dois palco principais e na dezena de secundários, a maior parte das pessoas concentra-se onde está algo a acontecer. Por isso nem esperei para tentar entrar no Beat Hotel para Matias Aguayo ou ir ver como estava o DJ Nature no Wow!.

Fui para a área do The Park e entrei novamente na Silent Disco. É um conceito bizarro mas perfeito para a alienação do século XXI: são dados uns headphones à entrada e escolhe-se um de dois DJs que estão a tocar. Alterna-se a gosto ou conforme o desinteresse. A música só toca via headphones e, por isso, quando os tirava havia um silêncio bizarro na pista ou então ouvia uma quantidade de gente a cantar os êxitos desta vida, que poderia estar a passar no meu canal ou no outro. É uma experiência bizarra mas que entretém, nem que seja para perceber como esta gente prefere música que aconteceu há décadas. Até os mais novos.

Sair de lá para a tenda (que fica quase no lado oposto) é como ir do Cais do Sodré para Alcântara a pé. Isto é gigante e há algo de fantástico nisso. É um grande circo onde tudo acontece, com gente vestida de dinossauro, feiticeiro ou o Ryu do Street Fighter. Há de tudo e com o risco de me repetir, isso é bonito. Daqui a pouco há Ata Kak, Angel Olsen, Kris Kristofferson, The xx, Radiohead e Dizzee Rascal. Isto é o que me lembro. Isto é o que tentarei ver.

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