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Desde criança que Onun sente um fascínio pelas artes. “Havia miúdos que eram mais do futebol, outros gostavam de brincar com carros, eu já gostava de cenas que envolviam tinta, de desenhar e pintar"
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Desde criança que Onun sente um fascínio pelas artes. “Havia miúdos que eram mais do futebol, outros gostavam de brincar com carros, eu já gostava de cenas que envolviam tinta, de desenhar e pintar"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Desde criança que Onun sente um fascínio pelas artes. “Havia miúdos que eram mais do futebol, outros gostavam de brincar com carros, eu já gostava de cenas que envolviam tinta, de desenhar e pintar"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Onun Trigueiros: “Não era suposto estar numa galeria ou num museu. Mas estou”

O artista visual da Linha de Sintra apresenta a segunda exposição em nome próprio, “Anti-Herói”, patente na Crack Kids até 4 de dezembro. Em entrevista, Onun, membro do coletivo Unidigrazz, revela-se.

Não é street art, é arte street. Aos 27 anos, o artista Nuno “Onun” Trigueiros apresenta a sua segunda exposição a solo. Anti-Herói está patente na galeria Crack Kids, em Lisboa, até 4 de dezembro. Ao todo, são 80 peças que refletem a cultura urbana das periferias da capital. A esmagadora maioria está a ser apresentada ao público pela primeira vez.

Nas ilustrações criadas por Onun Trigueiros, destacam-se os “rapepas” — designação comum nalguns subúrbios de Lisboa para descrever rapazes que correspondem a certos estereótipos locais. Os cabelos alinhados, os piercings, os cortes nas sobrancelhas, os fatos de treino, as bolsas de cintura ou a tiracolo, os ténis, os caps, os colares, os desenhos no cabelo — tudo isso representa uma vivência de uma cultura urbana global, muito influenciada pelo imaginário do hip hop, que fervilha nas margens da capital portuguesa.

“Estou muito familiarizado com esse tipo de vestimentas ou adereços, mas depois trago um lado imaginário: o capacete de soldado, a capa de cavaleiro, a espada… É uma simbologia que pode ser levada para vários sítios. Mas o que é que significa a representação de um homem com uma capa? É um lugar de poder. E a exposição é sobre isso: meter pessoas do meu quotidiano num lugar de herói”, explica Onun Trigueiros, criado em Mem Martins, o último subúrbio da Linha de Sintra antes da vila, a freguesia mais populosa do país e, outrora, da Europa.

“Estas pessoas não costumam ser vistas como heróis. Muitas vezes vêm de contextos marginalizados, de famílias disfuncionais. Com o crescimento da extrema-direita, é muito fácil julgar e cair na marginalização e criminalização. Eu, como conheço o outro lado, tento explicá-lo. É o oposto do discurso de ódio da extrema-direita. Para eles, são pessoas que cometem crimes, ou que não fazem nada; para as pessoas comuns até podem ser indiferentes; mas para mim são pessoas que fazem a diferença, que lutam todos os dias, que tentam constituir família, que tentam trabalhar apesar das dificuldades. Consigo reconhecer neles traços de personalidade de guerreiros e soldados, pessoas que apesar de tudo conseguiram triunfar na vida.”

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Quando estudava História da Arte, questionava-se sobre a pintura clássica, na qual abundavam retratos de soldados, nobres, reis ou deuses. “Mas porque é que só estas figuras é que são representadas?"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Quando estudava História da Arte, questionava-se sobre a pintura clássica, na qual abundavam retratos de soldados, nobres, reis ou deuses. “Mas porque é que só estas figuras é que são representadas? Obviamente, havia pintores instalados na corte ou nos palácios que eram contratados para fazer aqueles retratos. Mas também havia quem pintasse pessoas comuns, quem pegasse em camponeses ou pastores e os retratasse com elementos divinos, da mesma forma que faziam com os reis e rainhas. É o mesmo que estou a fazer em 2024, só que de outra forma e com outras ferramentas.”

Utilizando diferentes lápis, canetas e processos de colagem, Onun Trigueiros recorre a técnicas variadas para criar estas pequenas ilustrações, que evocam selos ou até mesmo cartas de tarot. Muitas das obras nascem de fotografias, tiradas pelo próprio ou por amigos no dia a dia. O artista acrescenta e retira elementos à realidade — e, acima de tudo, distorce as feições da pessoa representada. Por um lado, sente que é demasiado íntimo retratar um amigo seu ou uma pessoa real numa peça. Por outro, deseja que toda uma imensa comunidade se sinta representada pelo seu trabalho. “Tal como um escritor muitas vezes não escreve diretamente sobre uma pessoa, escreve sobre a mistura de várias.” Mais do que o indivíduo, interessa retratar uma vivência e uma cultura generalizada, que vai desde a sua Linha de Sintra à Margem Sul, dos subúrbios do Porto às periferias de Paris ou Nova Iorque, apesar de cada uma ter as suas respetivas nuances.

Foi no ano passado que começou a explorar este formato, após fazer com o seu coletivo artístico, os Unidigrazz, a exposição Distante na Underdogs Gallery, também em Lisboa. Foi no mesmo espaço que, em 2022, tinha apresentado a sua primeira mostra individual, Renascimento Street. A esmagadora maioria das peças expostas na Crack Kids foi criada este ano — e, depois, foi feita uma instalação site-specific, ampliando uma das ilustrações para um formato grande que está colocado numa das paredes centrais da galeria, que também é loja de materiais de graffiti e cafetaria.

Da António Arroio aos Unidigrazz, um coletivo que tem quebrado muros e barreiras

Desde criança que sente um fascínio pelas artes. “Havia miúdos que eram mais do futebol, outros gostavam de brincar com carros, eu já gostava de cenas que envolviam tinta, de desenhar e pintar. A minha mãe também sempre desenhou e pintou como hobbie”, explica.

Quando entrou no ensino secundário, escolheu o curso de Artes. Mas rapidamente sentiu que “precisava de mais, de uma escola com mais condições e mais especializada no ensino artístico”. Saiu da periferia e tornou-se aluno da Escola Artística António Arroio, no centro de Lisboa, para onde foi com um amigo, o também artista Sepher.

"Havia rap que retratava isso, o graffiti é muito a cultura de pessoas marginalizadas e dos subúrbios se manifestarem artisticamente; mas não havia muito mais. Sentimos que não era algo tão abordado no mundo das artes plásticas e visuais. Pensámos: se calhar temos aqui algo que pode ser explorado ao contar histórias que não são tão contadas.”

Embora estivesse mais inclinado para Design, Onun Trigueiros acabou por entrar no curso de Serigrafia e Gravura. “Já sonhava ser artista, mas não tinha noções. Ali percebi que era possível, que existiam coisas. Aprendi a desenvolver projetos artísticos, a construir uma narrativa. Tive professores incríveis. E depois aprendi muito na prática, ao fazer.”

Quando terminou a escola, um “desgosto amoroso” levou-o a fechar-se novamente em Mem Martins durante cerca de um ano. “Estava mais fechado na minha zona, não ia muito a Lisboa, estava numa bolha a viver em comunidade. Não estava a trabalhar, não fazia mesmo nada. Acordava e ia para o café ter com os rapazes. Mas continuei sempre a desenhar, a explorar a fotografia e a direção de vídeo e, no fundo, estava a inspirar-me.”

Foi nessa fase que as sementes que dariam origem ao coletivo Unidigrazz começaram a brotar. Vários amigos ligados às artes e unidos por uma mesma cultura periférica foram convergindo. Era o caso de Marco Boto, mas também de Diogo “Gazella” Carvalho, de Rappepa Bedju Tempu ou de Tristany. Faziam vídeo, fotografia, graffiti, artes plásticas e visuais e, no caso de Tristany, música. Foi na viragem de 2017 para 2018 que o grupo se formou.

“O Marco foi das pessoas que mais nos inspiraram, deu-nos muita força para criarmos este coletivo, e era a pessoa que iria fazer os videoclips do Tristany, porque o Diogo estava em França. Só que ele teve a infelicidade de, ao fazer um graffiti, cair de uma altura grande e falecer. Então perdemos o Marco, tinha 18 ou 19 anos. Na altura ainda ficámos todos mais unidos.”

Onun Trigueiros e Diogo “Gazella” Carvalho começaram a trabalhar na direção artística do álbum de estreia de Tristany, o aclamado Meia Riba Kalxa (2020). Terá sido, no fundo, uma das primeiras peças com o cunho Unidigrazz. Na altura, Trigueiros estava a trabalhar na fábrica de azulejos da Viúva Lamego, também no concelho de Sintra, mas deixou o emprego para se dedicar a tempo inteiro ao projeto com os amigos.

Há todo um sentido de validação nas entrelinhas do trabalho que o coletivo Unidigrazz faz, sobretudo nas representações das obras de "Anti-Herói"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

“Trabalhei em tudo o que foi direção de arte e cenários, tudo o que envolvia a roupa que eles vestiam nos videoclips, e fazia o design.” Sepher acabaria por também se juntar ao coletivo, tal como Rodrigo Faria, o agente que tem trabalhado com estes artistas multidisciplinares. “Unidigrazz” é um nome que representa a “união” dos “digras”. “Digra” é outra palavra como “rapepa”, neste caso uma designação mais associada a uma vida marginal. “Até há pessoal da nossa zona que brinca connosco: ‘então, vocês são digras?’ Mas não estou a falar de mim nem de nós, isto é uma cena maior do que nós. Digras são todos os que se dão connosco e mesmo os que não se dão. Sei lá, na Margem Sul ou em Loures também há digras.”

“Estou no mesmo nível, olhos nos olhos, com as outras pessoas”

O álbum de Tristany teve impacto no circuito da música, mas os Unidigrazz enquanto coletivo só teriam maior expressão ao longo dos anos seguintes. Acabaram por se tornar dos artistas mais umbilicalmente ligados ao Festival Iminente; expuseram no MAAT ou no festival Kalorama; fizeram projetos de teatro; criaram bandeiras e peças de roupa; deram a mão aos amigos e conterrâneos Instinto 26, a banda de Julinho KSD; entre outras iniciativas que têm vindo a desenvolver. Uma das primeiras conquistas foi quando foram convidados pelo MU.SA — Museu das Artes de Sintra para terem uma sala própria na exposição coletiva Linha Imaginária (2021).

“Na altura foi uma grande vitória. Eu e o Tristany íamos muito àquele museu, quando éramos mais novos, e éramos muito vistos como gente a mais, como se não pertencêssemos àquele espaço. Os seguranças iam atrás de nós, as pessoas da galeria iam atrás de nós ver o que estávamos a fazer, se não estávamos a estragar ou a roubar nada… Então foi muito prazeroso estar lá como artista”, explica Onun Trigueiros. “E foi num museu do nosso concelho.”

Aos poucos, foram desenvolvendo a filosofia por trás de todo o coletivo Unidigrazz. “O Tristany, como sempre fez muito arte de intervenção, e falava de racismo, dos problemas com a polícia… Isso veio muito do álbum dele e eu comecei a pensar mais nisso. Como estava mais na rua, comecei a pensar que, de facto, não havia ninguém a pintar sobre isto. Havia rap que retratava isso, o graffiti é muito a cultura de pessoas marginalizadas e dos subúrbios se manifestarem artisticamente; mas não havia muito mais. Sentimos que não era algo tão abordado no mundo das artes plásticas e visuais. Pensámos: se calhar temos aqui algo que pode ser explorado ao contar histórias que não são tão contadas.”

“É o próximo passo para meter as coisas ao mesmo nível e normalizar a nossa cultura, é trazer as pessoas até à periferia. Estão a ver como está tudo bem? Estão a ver como tivemos aqui rap street, rap crioulo, e não aconteceu nada e está tudo bem? O objetivo é com que o tipo de arte que fazemos se normalize."

Foram entrando no circuito das galerias de arte e no mundo expositivo, rompendo com os conceitos de alta e baixa cultura. “Na altura até dizia algo por brincadeira: nós não fazemos street art, fazemos arte street. Não é pegar num desenho bonito e metê-lo na rua. Isso é fixe para as pessoas que não estão nas ruas, para uma certa elite ver que há coisas na rua. Mas para nós, como já estamos na rua, é o contrário: quero ver coisas que vejo diariamente na rua dentro de uma galeria ou de um museu.”

Há todo um sentido de validação nas entrelinhas do trabalho que o coletivo Unidigrazz faz, sobretudo nas representações das obras de Anti-Herói. “O pessoal fica muito feliz de se ver representado. São pessoas que não pensam nisso no dia a dia, mas muitas delas são um bocado rejeitadas no quotidiano. Tenho amigos que, para conseguirem um emprego, tinham de passar o telemóvel a outra pessoa para fazer a entrevista, porque eles tinham sotaque da Guiné-Bissau ou de Cabo Verde. Quando vem a polícia, ficam logo nervosos, mesmo que não tenham nada. Vão ao supermercado e são perseguidos pelo segurança. Entram num restaurante mais fino e as pessoas param para olhar para eles porque estão vestidos de certa forma. São microagressões que acabam por te fazer duvidar da tua própria existência: o que estou aqui a fazer? O que é que eu sou? O nosso trabalho vem validar um pouco isso. Não é que eu queira ser salvador de ninguém, mas é mostrar que essas pessoas também fazem parte, que também têm um lugar para existirem. Esta exposição é sobre isso: há lugar para toda a gente e toda a gente tem um lugar.”

O próprio Onun Trigueiros diz já ter sentido esse “estigma” na pele. “Já me aconteceu, em Mem Martins, velhinhas afastarem-se, mudarem de passeio e segurarem na mala porque estou a passar… Este trabalho tenta contrariar um bocado isso e mostrar ao máximo de pessoas possível que não é por usar carapuço ou ter uma bolsa que posso estar mais perto de fazer certo tipo de coisas. Não tem nada a ver. Porque todos sabemos que os maiores bandidos vestem fato e gravata. Existe muito um estigma e um estereótipo que é exagerado — e podem nem sentir isso, mas estas pessoas são agredidas de forma intelectual. Tenho amigos, e mesmo eu próprio deixei de ir a certos espaços porque sei que vou ser olhado ou tratado de uma forma que não quero. Isso acaba por nos afastar. Então, quando entro numa galeria ou num museu, é uma vitória para nós e para toda a gente. Não era suposto estar aqui mas estou. E estou no mesmo nível, olhos nos olhos, com as outras pessoas. No início ficava um pouco nervoso e intimidado, mas hoje tento normalizar isso, porque sou assim, falo desta forma, visto-me desta forma e está tudo bem com isso.”

"Quero ver coisas que vejo diariamente na rua dentro de uma galeria ou de um museu”, diz Onun Trigueiros

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

A missão é muito maior do que o próprio Onun Trigueiros ou do que os Unidigrazz. Enquanto coletivo e associação, têm promovido workshops com crianças locais; exposições coletivas com outros artistas dos subúrbios; mas também organizado cada vez mais eventos na freguesia de Algueirão-Mem Martins. Querem “contrariar o sentido normal da linha do comboio”, isto é, fazer com que o movimento também aconteça a partir do centro, tendo a periferia como destino.

“É o próximo passo para meter as coisas ao mesmo nível e normalizar a nossa cultura, é trazer as pessoas até à periferia. Estão a ver como está tudo bem? Estão a ver como tivemos aqui rap street, rap crioulo, e não aconteceu nada e está tudo bem? O objetivo é com que o tipo de arte que fazemos se normalize ao ponto de outros artistas e comunidades conseguirem também entrar em sítios que já entrámos e nos quais queremos entrar. Unidigrazz é um coletivo, mas ao mesmo tempo é um movimento que pode incluir 50 ou 1000 pessoas.”

Depois de Anti-Herói, Onun Trigueiros está focado em lançar um livro — que será, em princípio, mais uma parceria com a Crack Kids — que reúna entre 100 e 115 obras deste formato em que tem vindo a trabalhar. As peças estarão acompanhadas pelas fotografias que as inspiraram. Será uma espécie de catálogo da sua obra que deverá ser editado no início de 2025.

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