Numa manhã de outubro, na zona de Ribamar, em Peniche, António C. ia ao volante do seu carro quando foi mandado parar numa operação stop. O militar da GNR, devidamente fardado, pediu-lhe os documentos e António, um pescador da região, disse prontamente que não tinha consigo a carta de condução. Perante a falha do condutor, que teria de ser punida com uma multa, e já sabendo que ele era pescador de profissão, o guarda teve uma reação fora do comum: pediu-lhe “uns peixinhos” para perdoar a situação. E o que parecia ser uma operação stop como qualquer outra, era afinal um dos muitos episódios de um crime alegadamente cometido por um grupo de militares da GNR que estão a ser julgados por corrupção no Tribunal de Loures. A sentença é lida nesta segunda-feira.
António C. seguiu caminho com o número de telefone do GNR no bolso e no dia seguinte ligou para lhe dizer que “o peixe já estava amanhado”. Posto isso, o pescador e o guarda combinaram encontrar-se na rotunda da Marteleira, próximo da Lourinhã, e foi aí que uma caixa repleta de peixes acabou por ir parar ao porta bagagens do automóvel do GNR. António C. acabou também por ser acusado pelo Ministério Público, neste caso, por corrupção ativa.
Os crimes ocorreram a partir de 2012 e ao longo de quase um ano. Para além de abordarem os condutores nas fiscalizações de trânsito, continuavam a pressioná-los depois disso com telefonemas até que lhes fosse entregue o dinheiro que queriam. E, em alguns casos, para além de ficaram com o dinheiro passaram, ainda assim, as multas de trânsito.
Quando se encontravam em patrulha, no carro caracterizado da GNR e sempre fardados, abordavam aqueles que incorriam em infrações rodoviárias e a conversa era quase sempre a mesma: lembravam os condutores do valor alto das multas e aliciavam-nos a resolver a questão de outra maneira.
Numa outra situação, a mesma patrulha viu Pedro A. a conduzir numa estrada de terra batida, enquanto falava ao telemóvel. Mandaram-no parar, pediram os documentos e quiseram que fizesse o teste do balão. Apesar de não ter acusado qualquer nível de álcool, o militar da GNR não o deixou ir logo embora, lembrando-o que o tinha visto a falar ao telemóvel dentro do carro. Pedro assentiu e após alguma conversa o guarda disse-lhe que daquela vez deixaria passar a infração, mas que numa próxima as coisas podiam complicar-se. Posto isto, pediu-lhe o número de telemóvel. E quando Pedro julgava que a situação tinha ficado esquecida, recebeu um telefonema do guarda. A conversa ter-se-á desenrolado à volta da multa que ele não lhe tinha passado. Pedro não propôs nada ao GNR, mas dias depois voltou a receber nova chamada do militar. Foi aí que convidou a patrulha para um churrasco na expectativa de ver a multa perdoada.
Segundo o Ministério Público, os três militares, dois cabos e um guarda, costumavam realizar sempre juntos as patrulhas na Brigada de Trânsito e terão delineado o plano entre si. Mas no decorrer do julgamento apenas um dos militares assumiu que apenas uma vez recebeu dinheiro de um condutor para fechar os olhos a uma multa. O GNR justificou-se, dizendo que estaria a passar um momento conturbado na sua vida e que necessitava do dinheiro porque a mulher estava desempregada negando, no entanto, que tenha cometido os outros crimes enunciados na acusação. Os outros dois cabos da GNR nunca quiseram prestar declarações no decorrer das sessões em tribunal.
GNR diz que colega estava mal disposto e que podiam conversar depois
Aires S. foi outra das vítimas. Num final de tarde, abordaram-no quando saía da A8, em direção à Lourinhã. Pediram-lhe os documentos e sujeitaram-no ao teste de álcool. “É sempre a mesma coisa, acusou”, terá dito o guarda, para estupefação de Aires que, segundo os elementos recolhidos pelo Ministério Público, garantiu que não tinha ingerido qualquer bebida alcoólica nesse dia. O guarda da GNR insistiu e disse ao condutor que, ainda assim, seria autuado uma vez que não tinha parado num sinal STOP, “tudo infrações muito graves”.
Quando o condutor tentou ripostar, o guarda ter-lhe-á dito que “o colega estava mal disposto”, mas que poderiam encontrar-se mais tarde para conversar. E assim foi. Nesse mesmo dia, Aires S. voltou a encontrar-se com o GNR e chegou mesmo a entregar-lhe 100 euros. Antes de se despedirem ainda ouviu a recomendação de que o assunto “não era para sair dali”.
Já na Enxára, a 19 de maio de 2013, João G. foi mandado parar numa operação stop, alegadamente, de rotina. Face à falta da inspeção periódica do veículo, o guarda da GNR lembrou o condutor que as coimas poderiam chegar aos mil euros, mas que se ele quisesse seguir o seu caminho poderia entregar-lhes 200 euros e o assunto ficava resolvido. João G. só tinha 100 euros consigo, mas prontamente os entregou, com a garantia de que no dia seguinte se voltaria a encontrar com o GNR para lhe dar o resto do dinheiro. O guarda da GNR nunca deixava ir embora um condutor sem que este lhe desse o número de telemóvel e este caso não foi exceção. Logo no dia seguinte o militar telefonou a João G. para que este lhe pagasse a quantia em falta. Como o condutor não concordou com novo encontro, o GNR acabou mesmo por emitir a multa.
Um mês depois nova situação que, contudo, não veio a dar frutos para os militares. Adelino M. teve uma avaria no seu carro quando seguia na auto-estrada rumo a Loures. Enquanto esperava o reboque, viu o carro patrulha da GNR estacionar perto de si. Os guardas perguntaram o que se passava, e imediatamente pediram-lhe os documentos. Por fim, disseram-lhe que teriam de o multar, uma vez que não estava a utilizar o colete refletor, nem tinha colocado na estrada o triângulo de sinalização. Lembraram a Adelino que o valor das multas poderia ascender aos 400 euros e ainda que poderia vir a ficar sem carta. Face ao seu desespero, o guarda da GNR terá então dito que a situação se poderia “resolver por outra via”. Esta via significava o pagamento de 200 euros.
Como Adelino não tinha esse dinheiro consigo, combinou um encontro com os militares para o dia seguinte. À hora marcada estava Adelino no local combinado, uma bomba de gasolina da A8. Esperou cerca de meia hora e uma vez que os guardas não apareceram foi para casa. Mas não demorou muito até receber um telefonema para agendar um novo encontro, mas aí Adelino não facilitou. O militar da GNR ligou-lhe mais nove vezes durante vários dias, mas o condutor recusou-se a encontrar-se de novo com ele e a pagar o suborno. Dias depois, apareceu-lhe em casa a notificação para pagar a multa.
Condutor recusa-se a pagar suborno
Na tarde de 19 de julho de 2013, o condutor Eduardo F. surpreendeu os militares ao recusar-se a entregar-lhes qualquer quantia. Tinha sido mandado parar numa operação de fiscalização de trânsito e não se fazia acompanhar do comprovativo de inspeção periódica. Os GNR lembraram que o valor da multa seria de 250 euros, mas mostraram-se disponíveis para receber apenas metade se Eduardo pagasse no momento. Ele não aceitou. Ainda assim, foi intimado a deixar o seu contato telefónico e nos dias seguintes chegou mesmo receber um telefonema do guarda a perguntar se já tinha mudado de ideias. Eduardo não hesitou e respondeu-lhe que “se quisessem, passassem a multa”.
A prática dos crimes terminou quando os militares foram apanhados em flagrante pelos inspetores da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária. Depois de terem intercetado um condutor de uma empresa alegando que este transportava uma carga que excedia o limite da caixa do automóvel e cuja multa rondaria os 600 euros, recomendaram que ele falasse com o seu patrão. O guarda e o responsável da empresa mantiveram uma conversa telefónica de breves minutos e combinaram um encontro para resolver a questão.
Mas esse momento acabou por acontecer quase um mês após a fiscalização, e numa altura em que as autoridades já estavam a investigar os três militares, após diversas denúncias e escutas telefónicas.
Foi no preciso instante em que o o militar da GNR recebia os 200 euros por parte do responsável da empresa que tinha sido multada, que os inspetores da PJ agiram, apanhando-os em flagrante.
Os militares da GNR acabaram por ser suspensos de funções, mas o prazo desta medida judicial chegou ao fim em outubro e eles voltaram a apresentar-se ao serviço. Não estão, porém, e ao que foi possível apurar, a cumprir funções operacionais. Incorrem no crime de corrupção passiva, com pena que vai de um a oito anos de prisão e a pena acessória de proibição do exercício de funções. O guarda da GNR responde ainda pelo crime de prevaricação, o qual poderá ditar-lhe uma pena de multa. Três civis, condutores que pactuaram com os crimes, estão também sentados no banco dos réus, acusados de crimes de corrupção ativa, na forma consumada.