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Pedro Penim, 42 anos, já não é um jovem encenador e teme que essa sugestão mostre que o meio teatral tem estado fechado às novidades. Já foi, quando o Teatro Praga surgiu em 1995, com um grupo diferente daquele que existe agora – esse grupo que continua a procurar sítios que não sejam seguros e a carregar, com responsabilidades partilhadas, o selo de enfant terrible.
Só no final de 2017 já esteve envolvido em três produções – a criação a solo de “Antes”, integrado no festival Temps d’Images; a estreia do espectáculo infantil “Romeu e Julieta”, produzido pelo Teatro Praga; e, a partir deste sábado, 18 de novembro (e até 21), na condução de “Humor Maligno”, o novo espectáculo da Companhia Maior, que trabalha com atores com mais de 60 anos e encenadores/criadores convidados.
A conversa com o Observador, como foi combinada, era para ser sobre tudo isto e também sobre o próprio entrevistado, mas confundiu-se com Teatro Praga, como aconteceu com a sua carreira e a sua identidade – uma evidência que celebra e nunca lamenta, e uma simbiose que continua a ser um espaço de liberdade. Será assim, mesmo que um dia surja a oportunidade de ser programador de um teatro, algo que já se sente preparado para fazer e que faria com gosto – contra o gatekeeping e as apostas seguras, sempre em prol do mecanismo de diferenciação e a generosidade de partilhas.
“Podemos sempre desmantelar, acrescentar alguma coisa”
Como é que se faz para conseguir estar entre tantos espectáculos ao mesmo tempo?
Isto é resultado uma espécie de work in progress de vários trabalhos. O trabalho com o Teatro Praga é um trabalho constante, que dura o ano inteiro, mas que vai variando entre atividades distintas que nem sempre são muito visíveis. Neste momento estamos só numa fase de maior visibilidade.
Mas há também as coisas que faz a título individual, além do Teatro Praga.
O “Antes”, que estreou no Temps d’Images, era isso, e depois passou a ser produzido pela Praga. Na próxima semana vai ser apresentado também em Istambul, num festival internacional. É um daqueles casos em que é meio Praga, meio a solo – na verdade, nunca consigo fazer bem essa distinção. O meu percurso é indissociável do percurso do Teatro Praga. A maior parte das coisas que faço acabam por se misturar, e isso acontece também com o resto do núcleo do grupo: o André [Teodósio], a Cláudia [Jardim] e o Zé Maria [Vieira Mendes]. Ultimamente, passámos a usar uma designação de “federação de artistas”. Significa que, por um lado, continuamos a produzir espectáculos juntos muitas vezes, mas que depois temos uma atividade individual, que às vezes está relacionada com Praga e outras não. Por isso, o grupo acaba por funcionar como uma espécie de Unidade Federal.
Este conceito de “unidade federal” teatral é vosso, não é um título oficial…
Nada oficial [risos]. É uma imagem que arranjamos para nós. Antes dizíamos que era uma “constelação”. Temos sempre tantas pessoas a gravitar à volta do Teatro Praga, mas que não estão necessariamente ligadas à estrutura – são colaboradores-satélite, que têm os seus percursos individuais mas a quem recorremos muitas vezes. A ideia de “federação”, em que cada um tem a sua república, significa que estamos debaixo desse chapéu que se chama Teatro Praga e às vezes colaboramos em conjunto, até porque a ideia de estarmos juntos só faz sentido assim. E não há nenhuma fricção entre as várias federações, são muito pacíficas e muito unidas.
Mas ao mesmo tempo começou a surgir essa vontade de fazer outras coisas – como aqueles terrenos que estão em pousio, lavra-se primeiro do outro lado, fica ali a descansar a ideia de colaboração, vais fazer outra coisa, e nessa outra coisa até podes trabalhar com outros colaboradores que podem ser puxados para colaborar com o Teatro Praga. Sempre fizemos isso e achamos muito saudável: por um lado, obriga-te a não cristalizar a tua atividade, porque estás sempre a solicitar output de energia e de referências de outras pessoas, e depois, se tudo correr bem, eles influenciam também o percurso do Teatro Praga, e isso obriga-te a não estar num sítio que seja sempre seguro.
Uma das definições mais justas quando se fala neste grupo é essa: nós estamos sempre a tentar que o sítio onde estamos não seja totalmente seguro. No teatro isso nunca acontece. Há sempre a possibilidade de desaparecer tudo, mesmo que agora as coisas até estejam a evoluir de forma positiva. Claro que os artistas, sobretudo depois de algum tempo, e depois desse percurso de afirmação – que em Portugal é uma coisa demorada, que acontece com pouca frequência –, deviam ter mais direito ao erro, a experimentar e eventualmente falhar. Sabemos que as coisas não são assim, mas ao mesmo tempo há essa vontade de aproveitar ao máximo as circunstâncias – para quê ficar a achar que chegámos a uma coisa segura e ficarmos nela? Podemos sempre desmantelar, acrescentar alguma coisa.
É uma coisa que têm de se lembrar para continuar a fazer? Ao fim de tantos anos a trabalhar, isso ainda acontece naturalmente?
Acho que sim. Se chegarmos a esse momento, talvez comece a deixar de fazer sentido. Sobretudo na relação entre estas quatro pessoas que agora formam o grupo, nunca me aconteceu ir ver um espectáculo onde não tenho nenhuma participação directa e sentir como se não fosse uma coisa minha. Mesmo quando não estou a criar, para mim aquilo é como se fosse meu. Isso é um enorme patamar de confiança, essas coisas fazem parte da forma como Praga funciona. A nossa maneira de construir os espectáculos vai-se definindo a cada projecto, nunca é a mesma coisa. Muitas vezes tem a ver com uma reacção a alguma coisa. Começa por ser uma auto-análise.
É possível definir o que é o Teatro Praga?
Acho que sim, mas isso tem muito a ver com as pessoas que fazem parte do Teatro Praga. É isso que, de alguma forma, dá uma espécie de definição ou de identidade ao próprio grupo. Mas ela é mutante. Às vezes apetece-nos falar de umas coisas, às vezes de outras, e isso nem sempre reflete essa ideia de auto-análise. Há mais uma análise de nós enquanto agentes criativos e agentes culturais e pessoas vivas que estão interessadas em coisas do que da própria atividade. O teatro é só uma coisa que faz parte disso.
Mas é teatro que vos interessa fazer.
Sim. É um terreno que é tão fértil, que quer dizer tantas coisas e tão poucas coisas ao mesmo tempo, que esses tais limites do teatro ainda me parecem suficientemente flexíveis para se poder jogar com eles. Mas às vezes também é um cansaço – às vezes nem sequer quero dizer mais vezes a palavra “teatro” num espectáculo.
Dá para dizer há quantos anos há Teatro Praga?
Há datas distintas para gostos distintos. O nome Teatro Praga – a marca [risos] – começa a ser usado em 1995. Mas pensando nesse grupo de 1995, já não tem nada a ver. Dos que estão agora, estava só eu. Com estas quatro pessoas, foi a partir de 2007, quando o Zé Maria se juntou. Ou seja, a estrutura actual tem dez anos. E consigo identificar estes últimos dez anos com um período mais contínuo, que tem mais a ver com o que estamos a fazer agora e com o que queremos fazer. O André juntou-se em 2000, há quase 18 anos, e talvez a partir de 2002 já haja muito da génese do sítio onde chegámos agora. Pronto, começa em 1995, que é quando esse nome aparece na minha vida. Havia um grupo de pessoas que queria fazer um espectáculo e tinha de ter um nome, ali num café da Avenida de Roma, e é uma coisa que ficou comigo até agora. Tem cuidado com as decisões que tomas aos 19 anos [risos]… Mas é surpreendente.
Por isso é que é tão difícil distinguir o que é o trabalho de Pedro Penim daquilo que é o Teatro Praga?
É uma evidência. Antes de eu procurar formação, e a minha primeira formação foi na Escola Superior de Teatro, já existia o Teatro Praga. Uma espécie de carro à frente dos bois. Tens o grupinho formado ainda antes de saberes do que estás a falar ou o que estás a fazer. Mas supostamente um grupo de teatro só deve durar 12 anos…
É o que se diz?
Sim, é como os cães. Um espaço de tempo entre 12 a 16. Se for mesmo assim, se calhar é mesmo melhor fazer estas contas por ciclos.
“O grupo toma conta de ti”
Estava a dizer que é surpreendente… era impossível imaginar este percurso?
Sim, não era suposto. É mais do que não poder imaginar – mesmo que eu imaginasse, o mais provável era não se concretizar. Ao pensar no grupo, na maneira como surge, de forma tão circunstancial, sei que é uma coisa que foi acontecendo. Foi acompanhando as nossas vontades, e essas sim é que eu acho que são mais sólidas, são mais claras.
Cada vez mais claras?
Sim. Tem a ver com as minhas vontades, as vontades do André, as vontades da Cláudia, as vontades do Zé Maria, as vontades das outras pessoas que foram entrando ou foram saindo. Essas é que puxam o Teatro Praga e fazem com que o Teatro Praga se mantenha ao longo do tempo. Caso contrário, tinha ficado tudo ali em 1995 ou 1996. Mas aquilo que existia nesse grupinho de quase adolescentes com vontade de fazer coisas de repente começa a transformar-se numa espécie de refúgio ou espaço privilegiado para construíres as tuas próprias coisas. Durante muito tempo, íamos trabalhar com pessoas fora do grupo e essa era a atividade principal, não havia dinheiro para mais. Era a forma de ter experiências diferentes. De vez em quando lá nos reuníamos para fazer umas coisas juntos.
Agora vocês é que são o chapéu para outras coisas.
Pois, isso mudou muito. O que acontece é que o grupo toma conta de ti. Quando passas a ter uma estrutura reconhecível, ela precede-te de alguma maneira.
Mas continua a ser um espaço de liberdade?
Absolutamente privilegiado. Às vezes há pessoas que me perguntam: então, mas não gostarias de ser o diretor do teatro ‘não sei o quê’? E eu penso que até queria, que podia ser uma coisa gira, mas depois começo a pensar no que é que isso implica de facto, de perda dessa liberdade. Aí é que percebo que, de facto, estamos numa posição privilegiada. Posso vir para o CCB trabalhar com a Companhia Maior e dão-me carta branca para fazer o que quiser. Isso é incrível. Dá para fazer exactamente o que eu quero, sem filtro ou censura. Isso é tão precioso.
Está com a Companhia Maior e sem o Teatro Praga? Isso é possível
Pois… sou eu com o meu historial. O Teatro Praga não está directamente implicado, é uma peça da Companhia Maior. É definitivamente uma peça minha, mas já aconteceu outras vezes. Isso não é um problema para nós.
O que está a tentar fazer com a Companhia Maior?
Este ano, estou numa fase de escrever muitos textos. E isso também parte dessa convivência com o Zé Maria e com o André, que fez com que me conseguisse autonomizar numa coisa que antes fazia com muita parcimónia. Comecei a arriscar mais. Quis muito escrever a peça que fiz no Temps d’Images. Já tinha arrumado antes a fase da autobiografia, na trilogia Europa, que apresentei pela última vez em conjunto na Culturgest [“Eurovision”, “Israel”, “Tear Gas”]. E aqui também fiquei com vontade de escrever, não lhes queria propor o enésimo Rei Lear.
Tive uma semana de workshop com eles, para os conhecer melhor, e os actores fizeram uma lista de “sins” e “nãos”, em que os “nãos” eram muito mais importantes do que os sins. Felizmente, coincidiam com as coisas que eu não queria fazer com eles. Estar com atores que têm mais de 60 anos não significa que isso tenha de ser sublinhado o tempo todo. Não tem de ser sobre isso. Queria mais colocar-me no lugar deles – daqui a 18 anos posso candidatar-me à Companhia Maior [risos]. O que é que eu queria que fizessem comigo nesse caso? E estava sempre em sintonia com o que eles me diziam – não quero falar da minha memória, não quero ser um símbolo das memórias dos outros, não quero estar aprisionado numa categoria.
Qual é então a proposta de “Humor Maligno”?
Fiquei a pensar no que seria o oposto dessa ideia do velho que carrega a doçura, a memória, a história do mundo. E concluí que podia ser o humor, e especificamente o humor negro – porque esse é que é o humor dos vilões e não o humor das avós queridas. Trata de assuntos ofensivos, tabus, e obriga-te a mexer numa pasta malcheirosa. Andámos a ler muitas coisas sobre isso, a ver muitos sketches de comediantes como o Ricky Gervais ou a Sarah Silverman. Para testar os limites do humor é preciso pisar o risco. E a peça é isso – pessoas a pisar o risco, pessoas a dizer que não se pode pisar o risco, e depois todos a discutirem isso.
“Já devia haver pessoas para nos estarem a atirar ao chão”
Agora está aqui no CCB, mas o Teatro Praga abriu desde final de 2015 o seu próprio espaço, na Rua das Gaivotas, em Lisboa. Isso marca também um ciclo na vida do grupo?
Acho que é a marca mais clara da fase adulta do projeto Teatro Praga. Enquanto grupo, beneficiámos muito de uma fase nos anos 90 em que Portugal era rico e havia dinheiro para tudo: havia o Ministério da Cultura, algo que ainda não tinha acontecido; começou-se a imitar o modelo francês de apoio às artes, com a existência de subsídios de forma mais concertada; e tivemos também o apoio de imensa gente que tinha começado nos anos 80, como a Mónica Calle, a Lúcia Sigalho, o João Garcia Miguel, pessoas que nos abriram as portas dos seus espaços para mostrarmos o nosso trabalho.
Esta fase das Gaivotas é um bocado a devolução, o pagamento dessa dívida. Além disso, cada vez as instituições são mais cautelosas – de repente, tens teatros e estruturas de produção que só apostam em coisas muito seguras, têm salas gigantes que querem encher, e isso deixa muito pouco espaço para projectos novos. Ainda ontem li uma notícia sobre mim que me chamava “jovem encenador” e eu fico arrepiado – se há coisa que não posso ser neste momento é um “jovem encenador”. Isso é sintomático. As coisas novas estão a aparecer com muita dificuldade. Já devia haver pessoas para nos estarem a atirar ao chão.
E não há?
Claro que continua a haver gente a querer fazer coisas e a fazer coisas bem, mas não há a mesma sustentação. E não têm as mesmas possibilidades, o mesmo dinheiro, não se conseguem afirmar como nós nos afirmámos, não têm acesso às instituições.
Mas vocês também não demoraram a entrar nessas instituições?
Acho que foi mais fácil para nós. Apanhámos uma conjuntura mesmo especial, porque apanhámos também a formação da figura do programador cultural. Essa ideia de instituições que co-produzem é também recente. O Francisco Frazão, sobretudo, que estava na Culturgest, foi a primeira pessoa a abrir-nos as portas de uma instituição, numa sala como deve ser. Foi ver-nos ao Hospital Miguel Bombarda, onde trabalhávamos, e nunca mais me esqueço desse dia – ter a Culturgest a telefonar para dizer que gostava de fazer uma co-produção connosco. Nessa altura, essas instituições eram muito mais generosas e arriscavam muito mais do que agora. Hoje em dia acho que ninguém iria sequer ver um grupo ao Hospital Miguel Bombarda.
As Gaivotas tentam colmatar isso?
É mais isso do que um espaço do Teatro Praga. É programado por nós, claro, mas é um espaço que está aberto a que se arrisque mais. Quem sabe se esses tais programadores não podem ir lá depois para ver o que se está a passar e o que se está a fazer?
Há ainda aquela ideia de que vocês é que são os miúdos?
Sim, às vezes, mas aí a responsabilidade é partilhada. Nós continuamos a fazer por isso. Há esse lado de enfant terrible que se nos colou à pele de alguma maneira, e que às vezes até dá jeito. A nossa identidade continua a passar por aí, no sentido de que há pessoas que ainda têm medo de nos receber por não saberem o que vai acontecer. Mas por outro lado também já nos viram a fazer muitas coisas. Podemos voltar um bocado ao princípio da conversa: nunca nada é definitivo. Por exemplo, nós fizemos a “Tropa Fandanga” no Teatro Nacional, e fomos nós que dissemos que queríamos fazer uma revista. A reação é essa: o que é que estes vêm fazer para aqui? Fazemos, corre super bem, até ganhamos um Globo de Ouro, e uma pessoa até pode pensar – temos aqui um momento de viragem. Mas a coisa que fizeres a seguir, e que pode eventualmente contrariar o lado mais mainstream que esse espectáculo tinha, vai fazer com que volte tudo atrás outra vez.
Isso é bom?
Talvez… é que, independentemente disso, há pessoas que gostam do nosso trabalho e que continuam a convidar-nos. O Teatro Nacional convida-nos, o São Luiz convida-nos, o CCB… outras pessoas já não nos convidam, mas isso tem a ver com aquelas fricções do meio. A verdade é que tens de estar constantemente a provar a tua relevância e a tua pertinência, e acho que vai ser sempre assim.
Mas é assim para toda a gente?
Acho que é mais para nós, mas mais uma vez é também responsabilidade nossa, porque gostamos de nos colocar nessa posição. Dizemos isso a nós mesmos: estou sempre à espera do espectáculo que vai ser um falhanço total, e estou sempre a achar que vai ser o próximo [risos]. Até agora já foi falhanço, só ainda não foi total.
Ajuda o facto de já terem um público vosso?
Pelo menos sentes que aquilo que estás a fazer não é vão. Há um eco, há um diálogo, que acontece com o público mas também com os criadores que estão a sair das escolas. Depois, sais para Badajoz e já ninguém te conhece. Sentimos isso até no Porto, é logo diferente. O engano é: não podes criar só para as pessoas que já te conhecem bem. Nós levamos espectáculos para fora e isso ajuda. Aquele que esteve no Temps d’Images vai para Istambul, e é construído já a saber que terá essa ambivalência.
O que vê quando olha à volta, para os programadores? Aconteceram algumas mudanças, nomeadamente na Culturgest e no Teatro Maria Matos.
Acho que o panorama teatral em Lisboa é muito diverso, acontecem muitas coisas. Essa variedade vem de uma espécie de fortuna de um infortúnio: como não temos uma tradição teatral muito concreta nem muito pesada, nunca tivemos nomes como Shakespeare ou Moliére e Gil Vicente nunca se conseguiu afirmar como uma referência, isso deixou-nos sem herança, sem pai. Isso torna o teatro em Lisboa muito mais desempoeirado.
Haver mudanças significa também que há vitalidade, mas há o perigo gigante do gatekeeping: aquela intelligentsia que domina tudo, que gera uma espécie de gosto uniforme. É um perigo e já se começa a ver. Até estou a falar contra mim – tens as mesmas pessoas constantemente nos mesmos teatros. O teatro em Lisboa precisa de continuar a ser diverso. Estou a viver metade do meu tempo na Turquia e é bom quando te deslocas da tua realidade. A realidade do teatro da Turquia é muito mais complicada – não há comparação em termos de possibilidades, financiamento, liberdade de expressão, variedade.
Então não está lá por motivos artísticos?
Estou por motivos pessoais. Mas trouxe-me desafios diferentes. Fez-me querer saber mais, conhecer pessoas. Lá, de facto, sou ninguém, e sou obrigado a recolocar-me. Esta peça que vou apresentar lá já foi escrita na fase de Istambul e é uma peça que reflete essa dupla nacionalidade que a minha “federação” adquiriu.
“As pessoas da minha idade queriam fazer peças como elas já eram feitas”
É possível imaginar um Pedro Penim programador?
Sim. Estou numa fase em que começo a olhar para os teatros, para as programações, e começo a fantasiar o que seria a minha programação. Já teria condições para o fazer, e poderia criar redes, poderia criar identidades que pudessem ser interessantes para esses teatros, e era uma coisa que me daria muito prazer. Fiz um mestrado em Gestão da Cultura, as pessoas que conheço até se riem – mas eu tenho esse lado da gestão, gosto mesmo das contas, da parte organizacional. Normalmente, no Teatro Praga sou eu que fico com isso. E agora, com este tempo, com a experiência nas Gaivotas, a experiência de ensino no Porto que tem sido muito valiosa… estou sempre a sentir que podia estar a mexer nessas coisas. A dificuldade é sempre a mesma: também estou aqui tão bem.
Que impacto teria uma decisão dessas no Teatro Praga?
O Teatro Praga tem um relacionamento pessoal tão sólido que, mesmo que as pessoas se afastem durante um período, há ali uma possibilidade quase inequívoca de sequência e de progresso. Isso vale para qualquer um de nós. Neste momento, a nossa relação de confiança é mesmo concreta e nada postiça. Houve alguns momentos no Teatro Praga em que foi preciso alguém mandar, mas agora é mesmo partilhado e vivido de forma muito saudável. A história do Teatro Praga, e é por isso que continuamos a gostar de fazer coisas juntos, tem a ver com um mecanismo de diferenciação. E isso eu aprendi na escola – a ideia do mestre e do aluno sempre me fez sentir aprisionado. Eu sentia que as pessoas da minha idade queriam fazer peças como elas já eram feitas pelo Luís Miguel Cintra, pelo João Mota e pelo João Lourenço. E eu sabia que não era isso, que não podia ser isso.
É fácil afirmar uma identidade dentro de um grupo?
Até vou mais longe – eu não me teria conseguido afirmar se não tivesse o grupo. Tento também passar isso aos meus alunos: no teatro, estás completamente dependente das pessoas que encontras na tua vida e da maneira como essas pessoas influenciam aquilo que tu és. O desenvolvimento do Teatro Praga tem a ver com isso – com as pessoas com quem quero continuar a conversar e quero continuar a criar. As coisas vão-se tornando mais fáceis. Pessoalmente, tive a sorte de encontrar estas pessoas que estão comigo. E tive a sorte de elas me acompanharem e de eu as acompanhar e de haver esta simbiose de interesses.
É que esta entrevista era com o Pedro Penim e quase só se falou de Teatro Praga. Essa confusão não é um problema?
Para mim é uma vantagem. Sou péssimo a analisar-me, mas isto também é válido se eu tentar pensar como seria a minha personalidade. Sem o Teatro Praga seria uma pessoa muito diferente, mais triste. Isto não é sequer uma crítica à ideia do autor solitário, que é muito válida. Eu agora até já gosto mais dessa ideia. Mas aprendi-a com o coletivo. No Teatro Praga somos todos muito diferentes e continuamos a discutir imenso. E quando digo discutir é mesmo a berrar uns com os outros. É também prova de que nunca me anulei, mas consegui encontrar um interlocutor que me desafia a fazer coisas que eu nem sabia que sabia fazer. Gostava de passar aos meus alunos essa necessidade. Podes fazer tudo sozinho enquanto autor, mas no teatro estás sempre dependente de pessoas que te consigam apoiar, mesmo que te reconheçam como chefe supremo daquela obra. Precisas dessa generosidade dos outros. É mais do que generosidade: precisas de te permitir perder um bocado o controlo das coisas.
Quais são os próximos planos?
Este ano já fechei a loja. O “Romeu e Julieta” continua pelo país, faço agora o “Humor Maligno” e para a semana estou em Istambul com o “Antes”. Depois paro. Para 2018 é que já temos dois projetos grandes fechados: um no São Luiz, que se vai chamar “Jângal”, e outro no Teatro Nacional, que se vai chamar “Worst Of” e é uma espécie de coleção dos piores momentos do teatro português. Estou a adorar a ideia. Haverá muito mais coisas nas Gaivotas, o Teatro Praga vai colaborar com a Cotovia e tentar que a publicação de peças seja uma realidade mais clara no nosso percurso. Depois ainda vamos a Espanha com o “Despertar da Primavera” e a África do Sul com o “Zululuzo”. A atividade é muito intensa mas já arranjámos mecanismos para lidar com isso.
“Humor Maligno” está entre 18 e 21 de novembro no CCB. Mais info aqui.