A Casa da Cultura da Comporta fica mesmo no centro da pacata aldeia alentejana. Foi neste antigo armazém de arroz e antiga sala de cinema, edifício comprido e caiado de branco, com barra azul rente ao chão igual à do casario tradicional, que três galerias brasileiras montaram agora uma exposição temporária com 36 artistas contemporâneos. Alexandre da Cunha, Cildo Meireles, Erika Verzutti, Ernesto Neto, Kim Lim, Leonor Antunes ou Tadáskía são apenas alguns dos nomes representados.
Intitulada O Canto do Bode, abriu nos últimos dias de junho e mantém-se até ao fim de agosto, com renovação de peças a 29 de julho. A Fortes d’Aloia & Gabriel, galeria fundada há duas décadas em São Paulo e com espaço também no Rio Janeiro, juntou-se às igualmente paulistas Luísa Strina, quase cinquentenária, e Sé Galeria, surgida há sete anos. Daí que a exposição seja descrita como “inédita e colaborativa”. Das três, só a Luísa Strina participou até hoje numa feira portuguesa, a Arco Lisboa.
O objetivo é o de cativarem um público internacional que passa férias ou tem casa nesta freguesia de Alcácer do Sal. E não terá sido por acaso que a mostra começou em vésperas da grande feira de arte contemporânea Arco Madrid, realizada há poucos dias, não sendo de excluir que alguns colecionadores tenham aproveitado para dar um saltinho até à Comporta. Segundo a diretora internacional da Fortes d’Aloia, Maria Ana Pimenta, o consórcio de três galerias está especialmente interessado na aldeia alentejana por ela se situar mais ou menos perto de Lisboa — a pouco mais de uma hora de carro —, mas ser já zona rural, sem a confusão de um grande centro e certas restrições que as autoridades de saúde impõem por estes dias.
A ideia é rara em Portugal, mas já tem sido experimentada por toda a Europa na última década. Como escrevia há dias o El País, as “mecas de verão com pedigree cultural” têm sido cenário de exposições efémeras de verão, que aliam a arte ao turismo com paisagem, casa e comida, fugindo-se assim da clássica galeria de paredes brancas na cidade. A madrilena Albarrán Bourdais aposta neste modelo desde 2010 e o mesmo sucede desde 2014 com a poderosa galeria Hauser & Wirth de Zurique. Um fenómeno que a pandemia só veio reforçar.
“Achámos que fazia sentido estar aqui por ser um espaço off-the-grid [autónomo], numa zona com um ritmo diferente, e por sentirmos que há aqui um público que pode responder bem à nossa proposta”, sublinhou a diretora internacional, justificando o porquê de as três galerias terem decidido apresentar-se deste lado do Atlântico. “A exposição parte de uma realidade que já estávamos a ver há algum tempo e que a pandemia acelerou: a necessidade de encontrarmos novos modelos operacionais, novas formas de atuação dentro do circuito da arte contemporânea. Muitas feiras seguidas todos os anos tornou-se um ciclo exaustivo. Acho que a pandemia criou a necessidade de procurarmos novos modelos de atuação. A busca da sinergia talvez se tenha tornado ainda mais importante”, explicou.
50 mil dólares por uma Cola
Quando há dias o Observador passou pela Casa da Cultura, ao fim da manhã, testemunhou a presença de veraneantes sozinhos e em família e ouviu de Maria Ana Pimenta que já estavam vendidas pelo menos quatro obras a colecionadores particulares portugueses, mas também de Itália, da China e do Brasil. Os preços só são revelados a potenciais compradores mas “nenhuma peça tem um valor fora do comum”, disse a diretora internacional. Uma cobiçada Coca-Cola de Cildo Meireles, por exemplo, alcança os 50 mil dólares (ou 42 mil euros). Os preços são em dólares porque as galerias têm âmbito internacional.
A peça em apreço surge no centro da exposição e pertence à série de 1970 “Inserções em Circuitos Ideológicos”, em que o autor inscrevia mensagens políticas irónicas em garrafas usadas de Coca-Cola, espalhando-as depois por sítios inusitados em número superior a mil. Cildo Meireles nasceu em 1948 no Rio de Janeiro e é considerado um dos mais influentes artistas conceptuais, habituado à linguagem da instalação e da escultura com base em noções políticas, filosóficas e estéticas. Já esteve na Bienal de Veneza e no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA). Os portugueses puderam vê-lo em 2013, quando de uma grande antológica no Museu de Serralves, no Porto.
Leonor Antunes, representante de Portugal na Bienal de Arte de Veneza em 2019, surge com duas esculturas longilíneas dependuradas, anteriormente vistas em 2019 no Hangar Bicocca. Pamela Castro, pintora brasileira e ativista de direitos das mulheres negras, resgata a tradição do retratismo e representa duas figuras femininas, uma das quais é a deputada federal Renata Souza.
Tadáskía (conhecida também como Max Wíllà Morais e descrita como pessoa transgénero) será a artista mais jovem da exposição e exibe um desenho que remete para formas de insetos e representação de deformidades. Pedro Victor Brandão trabalha digitalmente imagens de pratarias portuguesas que foram transportadas para o Brasil, numa composição a preto e branco que lembra as vinhetas da banda desenhada. Kim Lim (1936-97), artista convidada mas não representada por qualquer das três galerias, oferece dois desenhos geométricos.
Ainda, a título de exemplo, o artista venezuelano ionamâni Sheroanawe Hakihiiwe, que se mostrou há poucas semanas na galeria da capital Kunsthalle Lissabon. Aplica em tecido alguns símbolos indígenas. E talvez há alguns nem estivesse no circuito da arte contemporânea, porque o mercado não considerava a chamada arte indígena, segundo a diretora internacional da Fortes d’Aloia.
É óbvio o diálogo entre artistas de diferentes gerações e linguagens (ou “percursos formais”, como se diz no meio). Há criadores estabelecidos, alguns até acolhidos pelo establishment, e outros que trabalham nas margens ou procuram afirmar temas e realidades a que geralmente não se presta muita atenção. Alguns trabalhos parecem fruto da agitação ideológica que o Brasil vive, com narrativas de esquerda sobre o Governo brasileiro ou a situação dos povos indígenas.
Diálogo entre criadores que nunca se conheceram
Para definir o percurso da exposição — cujo título evoca cerimónias dionisíacas da Grécia Antiga que deram origem à tragédia no teatro — as galerias aproveitaram o espaço da Casa da Cultura tal como ele se apresenta: com uma plateia de cadeiras de madeira antigas e uma área aberta que pode servir para montar um palco.
Convidaram o artista visual português João Maria Gusmão (conhecido pela dupla com João Pedro Paiva, a qual chegou ao fim este ano e tem epílogo na exposição Terçolho, até novembro em Serralves) para fazer a cenografia, a qual consiste num palco de madeira, como se a exposição fosse afinal uma peça de teatro. O palco mudará a disposição no fim do mês, quando a exposição avançar para uma segunda fase, ou segundo ato, momento em que outros artistas também estarão representados, como sejam Robert Mapplethorpe ou Julião Sarmento.
“Partimos da natureza deste espaço e da questão cenográfica”, resumiu-nos Maria Ana Pimenta. “O espaço do Centro Cultural determinou a disposição das obras e de certa forma a escolha dos artistas e das obras. Tivemos a preocupação de que as obras pudessem despertar novas conexões entre si. Daí, por exemplo, o Cildo Meireles estar aqui ao lado do Anderson Barbosa. Ou seja, uma peça [garrafa de Coca-Cola] criada no auge da ditadura militar no Brasil aparece em diálogo com um artista novo, que olha para temas novos noutro momento histórico, que é o atual.”
O consórcio, segundo Maria Ana Pimenta, candidatou-se a um concurso e assim acabou por programar este verão a Casa da Cultura da Comporta — fundação “sem fins lucrativos e de interesse social”, de acordo com os respetivos estatutos, criada em 2014 com capital da Herdade da Comporta SA e das câmaras de Alcácer do Sal e de Grândola. Porém é ainda cedo para dizer que frutos trará a experiência e se ela representa o início da afirmação das três galerias em Portugal ou até o nascimento de um polo de arte contemporânea a dois passos da praia e dos arrozais da aldeia alcacerense.