“A citação é uma arma”. Serve para dar autoridade ao que se pretende afirmar, para reforçar credibilidade, para convocar referências, para começar textos jornalísticos. A citação foi a grande arma do encenador e dramaturgo Pedro Penim na génese de Quis Saber Quem Sou, peça que revisita as canções da revolução de 1974 e suas palavras de ordem para nos lembrar as cantigas que são armas. O concerto teatral, que recusa o rótulo de “musical”, pode ser visto a partir deste sábado, dia 20, até 28 de abril, no Teatro São Luiz, em Lisboa, antes de partir em digressão nacional pelas cidades de Aveiro, Porto, Loulé, Tomar e Coimbra.
A ideia de trabalhar sobre o cancioneiro revolucionário partiu da vontade de “trazer para o presente este património que é artístico, mas também político e revolucionário”, explica Penim aos jornalistas depois de um ensaio. “50 anos é muito tempo e há um desgaste, um esquecimento natural, não só do que aconteceu mas também destas obras”, diz sobre os temas de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Paulo de Carvalho ou Fausto Bordalo Dias.
“Durante muito tempo, muitas destas canções pareceram datadas. Sobretudo durante os anos 1980 e 1990, ganharam uma espécie de patine, ouvi-las quase dava graça”, recorda o também diretor do Teatro Nacional D. Maria II. Canções como E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, cujo primeiro verso foi senha da revolução e dá título ao espetáculo, “contêm em si uma mensagem que é tão poderosa que 50 anos volvidos [da revolução], de repente, estas letras parece que deram uma volta e voltaram a fazer sentido”. Citá-las é “zelar pela manutenção da conquista das portas que Abril abriu”.
Com Filipe Sambado, que assina a direção musical do espetáculo, chegaram a 50 temas, que foram reduzindo até aos 23 que serviram de texto aos “atores cantores” encontrados através de um casting em Lisboa e Aveiro. Houve um esforço de “não evitar as canções mais evidentes, que também se espera que estejam neste espetáculo, mas ao mesmo tempo [uma vontade de] trazer outras ainda mais esquecidas ou verdadeiramente esquecidas, mas que contêm essa mensagem poderosa tanto como o cancioneiro mais imediato”. Por isso se escutam canções brasileiras, angolanas, francesas, norte-americanas, mas também temas portugueses mais recentes como Talha Dourada, de Filipe Sambado (uma sugestão de Pedro) ou Prognósticos, de B Fachada (uma sugestão de Filipe).
Entre melodias, evocam-se nomes de resistência. Como Catarina Eufémia, trabalhadora rural assassinada em 1954 pela GNR durante uma luta de assalariados, no Alentejo, e símbolo da luta antifascista. Ou Maria Antónia Fiadeiro, jornalista e escritora defensora do direito ao aborto, pioneira dos estudos feministas em Portugal e que esteve presa em Caxias durante o Estado Novo. Escuta-se também o discurso de Amílcar Cabral proferido a 1 de janeiro de 1973, o último antes de ser assassinado, no qual o líder histórico faz um balanço da luta de libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde.
“Essa ideia de convocar essas autorias, não só de música, mas também de poesia, as palavras dos Capitães de Abril, de muitas vozes e vontades” conduz à “criação de um altar ateu onde se pede ajuda, inspiração a este património, para que ele nos possa entreguiar, salvar, resgatar aquilo que era o sonho de abril”, diz Pedro Penim, que espera que a peça sirva de “aviso para os perigos daquilo que estamos a viver agora e o regresso possível, assustador, do antes de Abril.”
Numa alusão não verbalizada à ascenção da extrema-direita, o encenador e autor não esconde a “relação entre a vontade de ouvir essas canções, mas ao mesmo tempo perceber que essa celebração dos 50 anos de Abril está de alguma forma está manchada pelo que não esperávamos”.
“Aparentemente, em cada dez portugueses, dois são fascistas”, ouve-se do palco. “Segundo o resultado das últimas eleições, há neste coro, de treze, pelo menos dois fachos”, continuam. “Não há outra forma de os descrever, lamento. Ao contrário daquilo que se pensa, o monstro é igual a nós. O monstro está entre nós”.
“A cantiga é uma arma / Contra a facharia”. A canção composta por José Mário Branco ainda no seu exílio em Paris, em 1973, e um dos temas mais conhecidos do GAC (Grupo de Ação Cultural), é dos poucos alvo de intervenção ao longo das cerca de duas horas de Quis Saber Quem Sou. Precisamente porque, como será dito várias vezes pelo coro que fala em uníssono, “a citação é uma arma”. “Não nos interessava alterar a perceção das canções, interessava-nos trazê-las para o presente. O cancioneiro serve não só como inspiração, mas como reduto referencial a quem se pede ajuda. Por isso, não fazia sentido que fosse muito manipulado”, justifica Pedro Penim. “Veicular a obra original é saber que ela contém esse poder.”
Há uma geração de “esperança”, mas para quem “o perigo do esquecimento é mais real”
Ana Pereira, Bárbara Branco, Eliseu Ferreira, Francisco Gil Mata, Inês Marques, Jéssica Ferreira, Joana Bernardo, Joana Brito Silva, Manuel Encarnação, Pedro Madeira Lopes, Rafael Ferreira, Rute Rocha Ferreira, Vasco Seromenho. São estes os treze jovens que se juntam a Manuel Coelho, 69 anos, que faz parte do elenco residente do TNDMII, para levar a palco um “cancioneiro definidor da identidade de uma geração inteira”.
O diretor do Teatro Nacional desde 2021 sabia desde o princípio que “queria escrever para esta geração, entre os 16 e os 20 e poucos” e “porventura com muito pouca relação com este cancioneiro”. Recusando a ideia de “apatia em relação ao cancioneiro ou à revolução”, justifica a “relação de distância” destes jovens criada “naturalmente com a passagem do tempo”. Não lhe interessando o “discurso paternalista”, elogia o que julga ser uma geração “muito mais poderosa e até ativa” do que a sua.
“Esta geração é aquela onde se deposita a esperança. Fazia sentido para mim que ela fosse a protagonista”, esclarece. Aludindo às suas obras anteriores, Casa Portuguesa (2022), A Farsa de Inês Pereira (2023), Pedro Penim comenta o que ouve em entrevistas: “Dizem-me que escrevo para a Geração Z”. O fundador do Teatro Praga sorri. “De facto, é uma geração que me interessa, poderiam ser meus filhos”.
As vozes, alicerçadas no poder do coletivo, enchem a sala, os olhos cravados no público. O tom é de manifesto. “É um espetáculo muito politizado e claro no sentido político onde está a operar, nisso não há como escamotear esse facto”, diz ao Observador, dias antes da primeira récita. “É uma espécie de grito de revolta, aviso, e reação ao que se está a passar em Portugal. O espetáculo tenta dar voz a esse sentimento.”
Reconhecendo “um sentido educacional na maneira como este cancioneiro é apresentado”, o encenador abraça a “ideia de transmissão”. “A minha herança, da minha geração, é essa ideia da repetição, da passagem do testemunho, da passagem do património simbólico, a passagem da responsabilidade é deixá-la com essas gerações seguintes”.
Na viagem pelo país, numa Odisseia Nacional do Teatro Nacional que parece ter vindo para ficar, estão previstas várias sessões para escolas. Depois de Lisboa, Quis Saber Quem Sou segue para Aveiro (24 e 25 de maio, Teatro Aveirense), Porto (31 de maio e 1 de junho, Teatro Nacional São João), Loulé (7 e 8 de junho, Cineteatro Louletano), Tomar (8 de agosto, Festival Bons Sons) e, finalmente, Coimbra (15 e 16 de novembro, Convento São Francisco).
Teatro São Luiz, Lisboa. 20 a 28 de abril. Terça a sábado, 20h, domingo, 17h30. 12-15€