Foi como um regresso às origens, mais de duas décadas depois. Fernando Pimenta até começou na natação quando tinha apenas quatro anos. Era bom, não metia água. Em 2000, ao contrário do que costumava acontecer, as atividades do Clube Náutico de Ponte de Lima não abriram e, para não estar parado, decidiu experimentar a canoagem. Meteu muita água pelas vezes que virava o caiaque, tornou-se o melhor. Com muitas horas de treino, com uma enorme dedicação, com um apego à terra que o viu nascer que nem a passagem para o Benfica em 2018 beliscou. Há muito que os principais clubes nacionais procuravam o atleta, só mesmo nessa altura aceitou. Por várias razões, o último fim de semana e as duas medalhas de ouro ganhas nos Mundiais de maratona tiveram um significado ao nível dos pódios olímpicos.
Se é verdade que a lenda local fala do Lima como o rio do esquecimento, ali ninguém esqueceu ninguém. Pimenta não esqueceu a terra que o viu nascer, os habitantes de Ponte de Lima não esqueceram o seu filho pródigo, os adversários não esqueceram com quem estavam a competir – e se é complicado falar do atleta como um peixe fora de água seja em que contexto for, há dez anos que não participava num Mundial de maratonas, depois do bronze absoluto conseguido em Roma no ano de 2012 (foi vice-campeão de Sub-23). Tudo a fechar uma temporada onde conquistou 15 medalhas, entre Taças do Mundo, Campeonatos da Europa e Mundiais de velocidade além deste Campeonato do Mundo de maratonas.
Ao todo, numa conta que tende a deixar desatualizada por cada competição internacional em que entre, já leva um total de 123 medalhas, num trajeto que começou em 2005 quando conseguiu ganhar a prova de K4 500 do Festival Olímpico da Juventude Europeia. Daí para cá, conseguiu duas medalhas olímpicas (prata em K2 1.000 com Emanuel Silva em 2012, bronze em K1 1.000 em 2020), 14 medalhas em Mundiais de velocidade entre as quais quatro ouros em K1 1.000 e K1 5.000 ou 25 pódios em Europeus de velocidade com seis ouros, 11 pratas e oito bronzes. Um currículo de eleição que não apaga algo que já lamentou várias vezes: a falta de reconhecimento pelos feitos e pela própria modalidade.
Termina a temporada de 2022 com um saldo de 15 medalhas internacionais entre Mundiais, Europeus e Taças do Mundo. Independentemente disso, estas medalhas conquistadas em casa, nos Mundiais de maratonas, foram as mais especiais?
Sem dúvida de que estas medalhas são mesmo muito, muito especiais para mim. Primeiro, porque são dois títulos mundiais, dois títulos de campeão do mundo. Depois, porque foram disputadas em Ponte de Lima. Depois, porque também consegui voltar a competir no registo de maratona e isso também faz com que tenham um valor bastante acrescido. E também por ser um atleta que esta época conseguiu medalhas quer na velocidade quer na maratona – algo, dentro daquilo que é o meu conhecimento da modalidade, nenhum atleta tinha feito.
Ganhou a short race, ganhou depois o K2 com o José Ramalho, pelo meio ficou em quinto na prova de K1. Quando passou a meta baixou a cabeça, depois de se ter percebido as dificuldades que sentiu na última volta e antes da última portagem. Era esforço a mais para quem não ia a Mundiais de maratonas há dez anos, sentiu isso?
Como é óbvio, eu era um dos alvos a abater, tinha literalmente o alvo colado às costas porque dois dias antes tinha vencido a short race e os maratonistas não queriam deixar um atleta como eu, mais rápido do que eles, chegar à ponta final ou chegar em condições de disputar a prova. E aquilo a que assistimos foi todos eles a tentarem, a todo o custo, fazer o maior número de ataques sempre do lado em que eu estava e tentando sempre colocar-me numa zona mais confortável da cabeça do grupo. Fui acumulando muito cansaço, fui respondendo aos ataques, fui tentando defender-me, fui tentando também tentar o melhor possível. Mas lá está, isto é também uma questão de ser um tipo de treino um pouco diferente daquele que eu normalmente faço, eu faço alguns treinos de bastante volume mas é logo no início da época e até mais ou menos janeiro. Depois baixo o volume de treino para colocar intensidade. E foi aí que comecei a sentir algumas dificuldades, quando faltavam mais ou menos seis quilómetros.
Na última volta então.
Quando entrei nos últimos 700 metros, que era a volta pequena no final da prova, já quase não conseguia remar, sentia mesmo muita falta de energia. Tive cãibras nos dois antebraços, nas pernas quando comecei a correr com o caiaque. Ainda consegui aproximar-me deles mas na última ronda acabou por ser completamente impossível, acabei completamente extenuado, com cãibras quase pelo corpo todo. Terminei num quinto lugar, acho que é um lugar fantástico depois daquilo que tinha feito e do tempo que tive para preparar este Mundial. Sem dúvida que tenho de estar orgulhoso dos três resultados que tive e ver com bons olhos o facto de, tanto na velocidade como na maratona, ser um atleta bastante polivalente.
Acha que o Mads Pedersen não consegue ganhar a prova porque estava quase mais preocupado consigo do que em chegar à vitória?
Notou-se isso, claramente. Eu cheguei a meio da prova e disse ao José ‘Olha, descontrai e mantém-te atento porque temos quatro contra dois’, que eram os dois sul-africanos, o espanhol e o dinamarquês que quiseram queimar-me primeiro a mim, desgastar-me ao máximo, e depois se eu ficasse para trás quem iria sofrer era o Ramalho, porque ia ser a próxima vítima, o atleta da casa. Quando temos um candidato e esse candidato está no seu país, vai sofrer mais um bocadinho do que o normal. Notou-se claramente que, sempre que eu tentava ganhar um pouco a cabeça do grupo e juntar-me a quem ia a marcar o ritmo — quase como no ciclismo, apanhar a roda —, havia sempre um deles que dava sinal para a frente para eles sprintarem e não me deixarem colher um pico de velocidade.
Mas ficou satisfeito com isso? Com esse quase reconhecimento de que era mesmo um dos alvos a abater?
Aconteceu isso durante praticamente a prova toda e achei curioso. E só tenho obviamente de ficar satisfeito e contente por isso acontecer porque se isso aconteceu com um especialista da prova é porque eles realmente estavam com receio, reconhecem e reconheceram o meu valor. Só tenho é de estar feliz por isso acontecer. Mau era se fosse ao contrário, se não me dessem importância nenhuma durante a competição toda, era porque estavam a menosprezar-me. E não foi isso que aconteceu. Estavam atentos ao que eu estava a fazer e tentaram, de certa forma, cobrir-me um pouco para que eu não chegasse à reta da meta com o mínimo de energia. Porque aí, provavelmente, eu conseguiria vencer. Mesmo o próprio espanhol [Ivan Alonso], o único momento em que foi marcar ritmo foi na última volta grande e encostou-nos completamente às margens. Ainda não consegui falar com ele mas fez algo que não achei correto, apesar de ele provavelmente já estar em desespero. Não foi um momento correto. Nunca deu ritmo e quando deu ritmo foi para prejudicar os outros atletas que estavam em competição menos aqueles com quem já tinha a tática quase combinada.
Como é que foi a preparação para os Mundiais de Maratona depois dos Europeus e dos Mundiais de velocidade? O que é que mudou mais nos treinos que costuma fazer?
Nos Europeus e nos Mundiais, a distância máxima são cinco quilómetros. Normalmente, por treino, costumo fazer aproximadamente entre 14 ou 16 e, em algumas situações, 18 quilómetros. No treino para a maratona, penso que não tive nenhum treino abaixo dos 20 quilómetros. Logo aí, já é completamente diferente. O que acontece é que na velocidade fazemos bastante intensidade mas também temos algum tempo de recuperação entre o trabalho de velocidade e aqui é um ritmo mais médio/lento e depois ritmo alto, ritmo médio, ritmo alto, ritmo médio, ritmo alto e varia muito assim. E depois a parte de correr com o caiaque na mão, uma coisa que já quase nem me lembrava de fazer, a parte das portagens, claro que também foi bastante duro.
O facto de ter disputado os Europeus há tão pouco tempo, em agosto, teve influência?
Andei muito em baixo. Porque tinha vindo de um Campeonato da Europa, também porque tive uns problemas de saúde não graves que ainda me atiraram mais para baixo e depois andei a recuperar ao máximo. Como não estava habituado, não tinha esse volume, foi bastante duro. Recordo-me de que o primeiro treino que fiz foi logo depois do Europeu. Acabei o Europeu no domingo, segunda-feira foi dia de viagem e de descanso e na terça-feira já estava a treinar com alguns atletas espanhóis ligados à maratona. Nessa terça-feira, fiz logo um treino de 20 quilómetros com o José Ramalho a um ritmo médio já de maratona. Descansámos uma hora, fizemos mais 15 quilómetros de K2, saímos mais 50 minutos e entrámos novamente para fazer mais 10 quilómetros. São 45 quilómetros só numa manhã. E isso foi o meu segundo treino para a maratona. É muito duro, é muito intenso. Conseguir estar ao mais alto nível tem destas coisas, é resistir, resistir, aguentar, aguentar. Houve dias em que me custou muito até a parte de começar o treino e houve dias em que soube-me bem conseguir concluir o treino e terminar a sessão com a sensação de que consegui fazer um bom trabalho.
Foi uma época com 15 medalhas mas também uma época de experiências, com o K2 misto com a Teresa Portela, o K2 1.000 com o João Duarte e um regresso ao K1 500. Há alguma dessas apostas que seja para manter, sobretudo entre as olímpicas, ou 2023 já vai ser um ano mais “normal” a olhar para o K1 1.000 em Paris?
Não, não, não…
Agora já é a sério?
Não é que não tinha sido bem a sério…
E as medalhas mostram isso…
Se havia um ano em que podíamos arriscar era este ano porque era aqui que podia acontecer a uma competição destas, e era legítimo que acontecesse, e pode acusar o desgaste e não conseguir nenhuma medalha. Há atletas que fazem só uma ou duas provas e conseguem-se manter muito mais frescos e descontraídos de prova para prova. Como tenho estado concentrado mais tempo e em mais provas acaba por provocar um desgaste físico e psicológico maior. Sem dúvida que no próximo ano o grande foco vai ser o K1 1.000 metros, que é para conseguir o apuramento olímpico. Se conseguir e se o meu treinador achar que há uma possibilidade de fazermos mais uma embarcação ou distância, assim farei. Mas não vai ser como este ano, em que entrámos em quatro provas por competição. Temos de ir com calma, vai ser um ano bastante rigoroso e temos a noção de que poucos atletas conseguem o apuramento olímpico.
Horas depois do ouro em K2 com o José Ramalho revelou que tinha perdido o seu avô. Como é que se lida com duas emoções tão contrárias num espaço tão curto de tempo, ainda por cima estando a competir em casa?
Não foi no início da semana, foi no decorrer do Campeonato… Na quinta-feira estive concentrado na final da short race, tive a eliminatória de manhã e fui procurar recuperar para à tarde estar na minha melhor forma possível e depois. que aconteceu foi mesmo muito triste, como devem calcular…
…
Na sexta-feira ainda estive com o meu avô durante a hora de almoço, estava com algumas dores devido ao problema de saúde que tinha mas notei que ele estava orgulhoso, que tinha acompanhado as regatas do dia anterior e que tinha visto o neto mais velho a conseguir o título mundial. Depois foi aqueles dois beijinhos antes de sair de casa, a dizer que ia descansar porque tinha a prova de K1 mas no sábado de manhã tinha o meu melhor amigo e o meu irmão a ligarem-me para não sair de casa, provavelmente porque não queriam que viesse a saber por outras pessoas. Foram eles que me deram a notícia. Caiu-me um balde de água fria. Eles já tinham falado com algumas pessoas, nomeadamente com o meu treinador, que havia a possibilidade de não competir se não me sentisse bem ou se achasse que não seria o melhor para mim, o campeonato podia terminar ali para mim e que todos respeitavam a minha decisão.
Chegou a ponderar isso?
Nos olhos da minha mulher estava a tristeza mas vi perfeitamente que ela lhes respondeu logo: ‘Ele não competir não é opção, vocês sabem como ele é’. Já estava um pouco de costas, numa outra parte da casa, e ela disse que sabia que não ia deixar de competir, ele vai competir e dar o seu melhor. Depois eu disse que a resposta estava dada, que ia entrar na prova com tudo o que conseguia, que ia procurar gerir da melhor forma as emoções que podem abalar qualquer atleta, tentei ao máximo que não viessem ao de cima e tive também muito apoio do lado de fora pelos espectadores e isso ajudou a colmatar esses meus pensamentos. No final, depois também ao ser campeão do mundo no K2, sei que onde estiver, está orgulhoso e esse era um dos objetivos, que onde esteja continue orgulhoso. Era isso que ele queria, que continuasse e fizesse o meu melhor para representar todos os portugueses.
O Vítor Félix, presidente da Federação Portuguesa de Canoagem, não tem dúvidas em considerá-lo o melhor atleta português de todos os tempos, num currículo que leva já duas medalhas olímpicas entre 123 medalhas no plano internacional. Também sente isso? E considera que é reconhecido por isso?
Se sou um dos melhores de sempre… Bem, um dos meus objetivos é, se não for o melhor, estar entre os melhores de sempre de Portugal. Quero continuar a conquistar títulos e medalhas para Portugal e aumentar o meu palmarés e quem percebe de desporto, que acompanha e estuda são as pessoas ideais para dizer se sou ou não um dos melhores ou o melhor de todos os tempos. Seja Europeus, Mundiais, Taças do Mundo e Jogos Olímpicos, o meu objetivo é continuar a conquistar títulos, o resto terão de ser as pessoas a dizer… Eu no meu currículo só coloco os resultados finais, não coloco os resultados de qualificação. Isso aumentava muito mais o palmarés, se pusesse que ganhei as eliminatórias e as meias-finais etc. Só colocamos o resultado final que mais interessa, o título mundial ou a medalha. Esse é o objetivo.
E sente-se reconhecido?
Até suspiro… Olhem, depende. Depende, depende… Em Portugal não temos a valorização do desporto como se faz noutros países, infelizmente em termos culturais não estamos virados para aí, voltamos mais quando um atleta entra em conflito com outro, para fazermos alvo de chacota e dizer 1.001 coisas dele… Se alguém tem algum tipo de lesão também há chacota… Recordo-me que em 2016 quando vim dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro tive diretores de meios de comunicação social a gozar com o que aconteceu, eles que têm uma força de opinião e comunicação grande. Serem eles, portugueses, a fazerem chacota de um momento que me abalou bastante e que não tive culpa… É fácil perceber que temos de mudar mentalidades porque se eles são os primeiros a estar contra quem consegue resultados, não faz sentido. Os portugueses têm de apoiar os portugueses…
Temos de trabalhar mais pela cultura desportiva?
Sim e faz parte da comunicação fazer também essa parte, do acompanhamento e da divulgação como o que se passou este fim de semana em Ponte de Lima, se sabem onde fica Ponte de Lima… Se calhar agora alguns já puseram a mão na consciência mas é uma ou outra vez, não se vê isso de forma uniforme. E não estou só a falar de futebol, parece que existem preferências de modalidades e uma discriminação em relação a alguns…