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Rúben Guerreiro é o camisola azul do Giro d'Itália 2020
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Rúben Guerreiro é o camisola azul do Giro d'Itália 2020

Rúben Guerreiro é o camisola azul do Giro d'Itália 2020

Rúben Guerreiro: o líder da montanha que aprendeu a pedalar numa "pasteleira velha"

É benfiquista, gosta de pôr música para os amigos e "podia ser forcado". No Giro 2020, tornou-se no primeiro português a conseguir uma camisola de líder da montanha numa grande volta.

Na primeira corrida que fez como federado foi desclassificado. Esta foi apenas uma das adversidades por que Rúben Guerreiro teve de passar antes de se tornar o primeiro português a conseguir uma camisola de líder da montanha numa grande volta. A história é recordada pelo pai, António Guerreiro, que conta como o filho ficou enfurecido por não o terem deixado subir ao pódio a que teria direito: “Achou aquilo uma injustiça porque saiu do circuito sem querer e ia ter um grande resultado frente a atletas mais velhos do que ele”.

Este homem é o grande motor da carreira de Rúben Guerreiro. Esteve desde sempre ligado ao ciclismo, “mas não era profissional, era um cicloturista”. Esta definição pode ser dada a cada um dos entusiastas das bicicletas que o acompanham todos os anos até Fátima, em romaria. “A primeira vez que fomos foi para agradecer o nascimento dos nossos filhos”, revela Jaime Calado, motorista de autocarros que pára o veículo pesado na berma de uma estrada para falar do “meu menino” ao Observador, por telefone.

Estas idas a Fátima não pararam desde que Rúben nasceu e juntam cada vez mais pessoas. Foi numa delas que muitos perceberam a raça do líder da montanha do Giro 2020, quando ele quis chegar primeiro que todos ao topo da subida do Pafarrão, já muito próximo do santuário. “Ele ia à nossa frente e olhava para trás para perceber se estava a conseguir manter a distância, sem desistir”, recorda Jaime Calado para logo dar conta de que quem o perseguia estava agarrado à carrinha de apoio. “Ele tinha uns 14 ou 15 anos e estava a conseguir manter-se à frente de pessoas mais velhas do que ele que estavam a fazer aquela fase mais difícil do percurso agarrados a uma carrinha”.

A história de resiliência continua nas palavras deste homem que o conhece bem e que explica que, chegado ao topo da subida, o pai aproximou-se e pediu-lhe que subisse para o carro de apoio: “As cãibras com que estava não foram suficientes para o demover. O António ainda achou que o tinha conseguido convencer a desistir, mas ele pegou na bicicleta, acelerou e só parou no destino”.

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"Dava um bom forcado", diz o amigo toureiro, Luís André

Stuart Franklin

Por esta altura, Rúben pedalava numa “pasteleira velha” que o pai lhe arranjou. “Muitos amigos dele tinham bicicletas bem melhores, mas aquela foi a que se conseguiu arranjar na altura, não éramos propriamente abastados”. Apesar de fraca, a bicicleta serviu para testar os primeiros limites e perceber que o ciclismo era mesmo o que queria fazer, deixando a escola para segundo plano.

“Mas eu venho para aqui fazer o quê? Eu quero ser ciclista.” A frase é atribuída a Rúben Guerreiro pelo próprio pai, que diz que terá sido dita muitas vezes quando tinha que apanhar o autocarro para ir à escola. Às seis e meia da manhã já estava a embarcar para a viagem de quase uma hora e meia que o faria chegar ao estabelecimento de ensino do Montijo que frequentou até ao 11.º ano. A chegada a casa só acontecia perto das oito da noite e “muitas vezes nem jantava, ia logo para o treino”.

“Era uma grande sova”, explica António Guerreiro, que cedo se mostrou compreensível com a fraca aptidão do filho para os livros, que o levou a reprovar no 8.º ano. “Aquilo até era injusto, porque havia outros atletas contra os quais ele competia que faziam vida de profissionais e só treinavam e não estudavam”.

Mesmo antes de chegar ao fim do secundário, Rúben Guerreiro quis focar-se apenas no ciclismo e admitiu a possibilidade de abandonar a escola: “Ele disse-me que ou deixava a escola para se dedicar em exclusivo ao ciclismo, ou tinha que encostar a bicicleta”. O pai assume que deixá-lo pôr os livros de lado não foi fácil: “O ciclismo é um desporto muito ingrato, e não é reconhecido, mas ele chegava a disputar os lugares do pódio com atletas mais velhos e que só faziam aquilo da vida, tive que o deixar seguir o sonho”.

Por esta altura, o agora camisola azul do Giro 2020 já fazia parte de uma equipa grande do ciclismo português e era liderado por Manuel Correia na Liberty Seguros, um dos homens que disse a António Guerreiro que o filho era feito da mesma massa de outros grandes ciclistas que já lhe tinham passado pelas mãos. “Logo no primeiro ano que esteve comigo, o Rúben demonstrou que tinha muita classe e era um corredor que podia ter ambição para competir fora de portas”, lembra ao Observador.

"Logo no primeiro ano que esteve comigo, o Rúben demonstrou que tinha muita classe e era um corredor que podia ter ambição para competir fora de portas".
Manuel Correia, antigo treinador de Rúben Guerreira

O diretor desportivo socorre-se da memória para lembrar uma das primeiras corridas em que se surpreendeu com as capacidades do ainda jovem ciclista: “Lembro-me da primeira corrida que ele fez quando veio do BTT e na subida à Serra da Freita — mítica — conseguiu chegar em quarto lugar, mesmo estando a competir contra atletas que eram de um escalão superior ao dele”.

O olho para descobrir talentos do antigo ciclista não se enganou e por isso não está surpreendido com a distinção inédita: “Não digo que estivesse nas minhas previsões ele ganhar já uma etapa do Giro ou conseguir uma camisola de líder dos trepadores, mas atendendo aos dois últimos anos do Rúben, não surpreendeu”. Os dois últimos anos incluem “uma excelente Vuelta a Espanha” e apesar de histórico, Manuel Correia acredita que “não se está a falar tanto dele porque, felizmente, tivemos um João Almeida a conseguir um feito ainda mais notável”.

Quando está fora de prova, o mais certo é encontrá-lo com o grande impulsionador da sua carreira, o pai. António Guerreiro ajuda nos arranjos da bicicleta quando é preciso e conduz o carro que o ajuda a preparar as corridas mais importantes. “É o chamado treino de meio fundo. Eu pego no carro e vou à frente dele a uns 60 ou 70 quilómetros por hora, para ele conseguir simular o final das etapas”. Para além da velocidade constante, estes treinos precisam de ser feitos em segurança e para isso são escolhidas as estradas mais tranquilas junto a Pegões Velhos, a vila de onde é natural. “Não podemos ir para a Nacional 10 nem para a Nacional 4, geralmente vamos com os quatro piscas ligados para a estrada de Vendas Novas.”

Fora dos treinos, Rúben Guerreiro “priva-se de muita coisa” — mas quando está de férias não deixa de ceder aos prazeres da gastronomia. A confidência é feita por Luís André, primo e um dos melhores amigos do ciclista, que deixa claro que as “festas e discotecas não são o que ele mais gosta, prefere ir a um restaurante com quatro ou cinco amigos”.

À mesa, os hidratos deixam de ser uma prioridade e come “um bom bife, comida tradicional portuguesa ou uma mariscada”. É precisamente isso que vai fazer parte do menu da festa de receção que os amigos lhe estão a preparar. “Ainda não temos nada certo, mas de certeza que ele vem de Itália cheio de vontade de desfrutar de uma boa refeição”, explica Luís André.

Quem também se preocupa com a alimentação do atleta é a mulher de Jaime Calado que da última vez que o apanhou lá por casa, numa festa de piscina com os amigos, fez questão de lhe preparar salmão para que não tivesse que comer carne assada. “Foi um erro”, explica em gargalhada o motorista de autocarro. “Ele acabou por comer a carne assada e deixou o salmão de parte, foi o primo que acabou por comê-lo”.

O pai, António Guerreiro, é o grande impulsionador da carreira do ciclista de Pegões

LUCA ZENNARO/EPA

Nesta festa relatada pelo motorista que levava Rúben Guerreiro à escola — apesar de ele ir contrariado — não se fica a saber qual era o tipo de música que estava a tocar nem quem era o responsável pela playlist, mas é provável que fosse o próprio protagonista desta história. “Se ele não fosse ciclista, de certeza que podia ter sido DJ”, revela Luís André, que para comprovar a vocação fala numa passagem de ano em que estiveram juntos. “Foi em Albufeira, aquilo estava muito parado e ele foi buscar umas colunas e pôs música a tocar. Animou toda a gente.”

Apesar de um prodígio comprovado do ciclismo, Rúben Guerreiro também dá atenção a outros desportos. Gosta de Fórmula 1, mas não vai poder assistir à prova em Portugal porque o dia coincide com o momento em que deve estar a ser consagrado como o líder da montanha do Giro d’Itália. Já é menos tolerante quando se trata de perder jogos do Benfica.

“Ele ficou satisfeito com o regresso do Jorge Jesus e gosta muito do Luca Waldschmidt e do Everton”, revela o amigo de infância, que se lembra do último jogo que foi ver com o ciclista. “Foi um Sporting-Benfica, no ano passado, e o Benfica ganhou” por isso saíram satisfeitos do estádio. No que diz respeito a memórias negativas, não lhe sai da cabeça o Benfica-Leipzig de 2019 em que os encarnados perderam por 2-1. “Nem o jantar lhe caiu bem”, diz entre risos ao mesmo tempo que revela que o amigo “não gosta de perder nem a feijões”.

“Ele não é um adepto nada tranquilo, é muito exigente e está sempre a ralhar com os jogadores a partir da bancada”, explica Luís André, para depois dar conta de que o critério para com os encarnados é o mesmo que tem para com o amigo quando o vai ver às corridas de touros. “Ele não se inibe de fazer críticas às minhas lides quando acha que tem que as fazer”.

“Ele dava um bom forcado. Quando vai assistir aos meus treinos costuma brincar com as vacas e é bastante atrevido”, diz o amigo toureiro, que conhece bem as praças de touro do país, uma vez que as frequenta desde pequeno. “O meu pai é toureiro e foi dele que eu ganhei este gosto”, revela. O pai é o cavaleiro Luís Rouxinol, que também é padrinho de batizado do ciclista.

É daqui que vem o gosto pelos touros que leva Rúben Guerreiro a ver corridas “sempre que pode”. Também já montou a cavalo e Luís André destaca a coragem do ciclista e que o fazem encaixar no perfil ideal de um homem dos touros. Não foi para aí que se encaminhou. Rúben Guerreiro preferiu encarar de frente as montanhas em cima de uma bicicleta e trazer para Portugal a primeira camisola azul da história do ciclismo nacional.

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