Apesar de ter vivido dois terços da vida em Portimão, Sandro William Junqueira não se sente de lugar nenhum. Nascido na Rodésia dois meses depois do 25 de abril, passou na ex-colónia britânica os primeiros dois anos de vida, embalado pelos ventos históricos que fizeram com que os pais já não regressassem para a Angola de onde tinham partido.
A Sangrada Família (ed. Caminho), quinto romance de um autor que se tem dividido pelo teatro e pela escrita para a infância, é um regresso ao Algarve que nunca conheceu. Desafiado em 2017 pelo Lavrar o Mar, projeto cultural que tem semeado as artes performativas pelas regiões de Monchique e Alzejur, a escrever textos para teatro ancorados no universo da produção de medronho na serra de Monchique, visitou as adegas onde a magia acontece e trouxe de lá o entorno onde havia de encenar o seu “drama pouco burguês”.
O que devia ter sido um ato único converteu-se num conjunto de peças de teatro. As encomendas foram-se sucedendo, as personagens foram-lhe pedindo que continuasse, às vozes iniciais somaram-se outras vozes. Quatro anos volvidos, o autor viu-se com um romance em potência nas mãos. Submeteu os textos a uma operação de mudança de género, et voilà: eis A Sangrada Família, romance em três atos que nos submerge num mundo bruto onde vigora o código das leis injustas (a “sobrevivência do mais fraco”, a “impunidade do mais forte”), o primado dos ódios viscerais (“o meu ódio tem mais dentes que um tubarão branco”), o ciclo repetido dos amores traídos e não correspondidos, a sede insaciável de vingança entre duas famílias inimigas. Ouvimos alternadamente as vozes de Manuel Monteiro (o pai), Teodoro e Ezequiel (os filhos desavindos) e Filomena (a filha da família rival, cobiçada pelos irmãos Teodoro e Ezequiel). Monteiro e Capote são Shakespeare foneticamente modificado (Montecchio e Capuleto convertidos à grafia portuguesa).
Pela primeira vez, Sandro William Junqueira partiu da vida para construir uma ficção. Em entrevista ao Observador, diz que encontrou um novo filão criativo: daqui em diante, quer auscultar o mundo antes de se barricar na escrita. Mas, se o método mudou, uma coisa permaneceu igual: quando começa a escrever, o escritor não sabe para onde vai. Tal como nos livros anteriores, o destino da viagem nunca se conhece à partida. Nem, talvez, à chegada — já que “uma história em que se percebe tudo é uma história mal contada”.
Este livro começa por não ser um livro. Qual é o caminho que nos traz até ele?
Este livro sai fora de tudo o que escrevi até hoje. Os anteriores foram escritos no alto da minha torre, num quarto, rodeado de livros, ideias, imagens… Este partiu de um convite do Giacomo Scalisi para escrever textos dramáticos que seriam interpretados nas destilarias do medronho. Vivi trinta anos em Portimão, o Giacomo sabia da minha ligação ao Algarve. Conhecia Monchique, mas não percebia nada do medronho. Era uma bebida que não me fascinava. Eu e o Afonso Cruz fomos até Monchique, passámos um fim de semana a visitar as destilarias, a falar com os produtores e com toda a gente que trabalha à volta do medronho… É um processo quase místico. O medronho é um fruto muito particular, muito frágil, são precisos muitos frutos para conseguir algum sumo…
Depois desse trabalho, escrevi a primeira leva de textos e julguei que terminaria aí. Uns meses depois, o sucesso foi tão grande que o Giacomo me pediu uma segunda leva. Deveríamos escrever sobre a apanha do medronho, mas entretanto deram-se os incêndios de Monchique, em 2018, e foi um ponto de viragem. Regressámos ao sítio onde tínhamos estado meses antes, assistimos in loco à devastação, falámos diretamente com pessoas que perderam tudo. Foi um momento muito duro. Nesse instante, senti que tinha de conseguir escrever alguma coisa que fizesse jus ao sofrimento que aquela gente passa. É muito duro viver da natureza, perto da natureza, com uma grande imprevisibilidade… Eles têm uma consciência muito grande da nossa fragilidade. Escrevi a segunda leva de textos sobre os incêndios e, uma vez mais, julguei que terminaria aí. Quando escrevi a quarta leva de textos, olhei para o material e pensei que tinha ali qualquer coisa para lá dos espetáculos teatrais. Depois seguiu-se o trabalho de pegar naquele material e transformá-lo noutro objeto.
Embora comece nas destilarias, o assunto do livro não é o medronho. De que estão a falar estas personagens?
Da luta permanente entre a besta interior e a besta exterior, entre a razão e o coração, entre o lado racional e o lado animal. São personagens muito próximas de uma natureza bruta.
É curioso: não há bebedeiras nesta história…
Não, porque aquilo é gente que aguenta muito. As personagens estão sempre a beber, mas aguentam muito. Assisti a uma destila em que nós chegámos às nove e meia da noite e o produtor estava lá desde as nove da manhã. Não sei quantos medronhos já tinha bebido, mas estava impecável.
O romance conserva alguma coisa da peça de teatro?
Sim. A oralidade, por exemplo. Neste outro objeto aconteceu um cruzamento de espécies: realidade e ficção, teatro e documentário. Acho que este livro vai ser um ponto de viragem na minha obra, e até no modo como vejo a literatura. Saí do alto da torre, desci cá abaixo e abracei o mundo. Há frases do livro que me foram ditas pelas pessoas. O que sobrar deste confronto, deste trespassar a vida, deste apontar da faca, quero que seja qualquer coisa muito real e em carne viva. Quero que o leitor sinta que isto é a vida. “É gente que está aqui”. O meu próximo projeto é sobre um assunto que também desconhecia totalmente: a pesca do bacalhau. Fiz um trabalho de campo, de investigação, falei com pessoas… Provavelmente, esse será o meu próximo livro.
A inspiração para A Sangrada Família partiu de um lugar concreto (a serra de Monchique), mas os lugares do livro nunca são nomeados. Não ser nenhum lugar é a melhor forma de ser todos os lugares?
Sim, é uma característica que já vem dos outros livros. Mas pode ser das duas maneiras. O William Faulkner criou um território dele e aquilo é universal, o Ondjaki fez uma construção literária a partir da realidade das ruas de Luanda… Eu não tenho isso, porque, por circunstâncias da minha vida, nunca estive muito tempo no mesmo lugar. O sítio onde nasci é um país que já nem sequer existe, saí de lá muito novo e nunca lá voltei… Em Portugal saltei de lugar em lugar até aos doze, só depois é que fui para Portimão. Não tenho referências, não tenho um sítio de que possa dizer “este aqui é o meu lugar. É onde vou plantar o limoeiro”. Por isso gosto dessa ideia de universalidade, de esta serra poder ser qualquer outra e não apenas aquela serra.
Não se considera algarvio?
Não, apesar de ser uma parte muito importante da minha vida. Tenho uma relação muito ambígua com o Algarve, ando a lutar para resolver algumas coisas. Principalmente em relação à forma como os municípios algarvios tratam as pessoas que lá vivem, reféns do turismo… É muito difícil fazer alguma coisa na área da cultura. É curioso que o Lavrar o Mar esteja a acontecer no Algarve interior e não no litoral. Acho que era impossível que o projeto acontecesse no litoral. As cidades do Algarve litoral são cidades prostitutas, concebidas para servir quem vem de fora, deixa o dinheiro e vai embora.
Porque é que lhe acontece nascer na Rodésia?
Foi um acaso. Os meus pais foram muito novos para Angola, com doze ou treze anos. O meu pai fez lá a tropa, andou na guerra, foi ferido em combate. Por acaso conheceram-se. Fui feito em Angola. Tinha um avô, um grande ceramista, que tinha ido para Moçambique com uma sociedade com um inglês. A coisa correu muito bem, e eles foram para a Rodésia. Quando a minha mãe engravidou, os meus pais estavam sozinhos porque os meus avós estavam na Rodésia, na altura sob domínio inglês. A minha avó sugeriu que a minha mãe fosse lá ter o bebé, para ter mais apoio e melhores cuidados médicos. Entretanto, dá-se o 25 de Abril. O meu pai percebeu que as coisas em Luanda já estavam a ficar muito más, que o melhor era tentar vender tudo e ir ter com a minha mãe à Rodésia. Ficámos lá dois anos. Viemos para Portugal em 76.
A Sangrada Família é uma saga familiar, movida pelo ódio entre duas famílias arquirrivais: os Monteiro e os Capote. Tal como escreve a dada altura do livro, isto é quase Shakespeare?
Sim, o livro tem essas duas componentes: a literatura como resposta aos livros que leio, e o mergulho na própria vida. Tento conciliar estes dois mundos, não ficar só na literatura pela literatura, mas descer ao mundo e tirar qualquer coisa dali. Calhou ter relido o Shakespeare, e quando me sentei para escrever ocorreu-me pegar nessa ideia e brincar com isso. A família é o lugar onde podemos encontrar conforto e afetos, mas também pode ser um lugar de habitação muito difícil. Fala-se de matilha, o Manuel Monteiro fala muito dos seus lobinhos… Temos o mesmo sangue, e por termos o mesmo sangue somos obrigados a gostar daquela pessoa mais do que de outra? O livro questiona isso. E também a ideia de forçarmos o outro a ser uma coisa que ele não é. O que é isto de pertencer a uma família? A que é que a instituição familiar nos obriga? O livro aponta a faca à instituição e tenta perceber o que acontece quando um elemento rejeita o que a família defende.
Na literatura, o ódio é um motor mais interessante do que o amor?
São os dois. A felicidade é que não produz boa literatura. Os temas são sempre os mesmos, que ninguém pense que está a fazer alguma coisa de novo. Eu não estou a fazer nada de novo, estou a olhar para os temas que já foram mais do que escalpelizados e a tentar olhar meio milímetro ao lado, apanhar um flanco que ainda não foi tão batido, um lugar para onde ainda ninguém olhou desta forma. Andamos sempre à volta das mesmas coisas.
Há outras referências, vindas de universos diferentes, metidas no meio da prosa e das vozes das personagens: Paulo de Carvalho e o “E depois do Adeus”, Walt Whitman e a “Song of Myself”, uma alusão adulterada a um título de Ricardo Adolfo (Os Chouriços São Todos Para Assar), uma frase perdida de Eça de Queiroz (“É necessário amar o avô!”), dita por Afonso da Maia ao neto Carlos Eduardo. O que é que o leva a incrustar na narrativa estes ecos de frequências tão diferentes?
Nasce da escrita, não é planeado. Estava a escrever e surgiu-me a música do Paulo de Carvalho… As palavras vão andando e começam a chamar umas pelas outras, vão atrás umas das outras pelo cheiro. A frase do avô é um dos momentos de Os Maias de que mais gosto.
O livro está sempre a mostrar-nos o seu amor pelo poder inventivo da linguagem. Não necessariamente por inventar palavras (como já fez no As Palavras que Fugiram do Dicionário), mas por subverter o uso comum das palavras e das expressões (“contra factos não há casamentos”, “quem espanca seus males espanta”, “o paladar não ocupa lugar”…). O jogo diverte-o?
Neste livro surgiu porque estive com pessoas, e algumas delas tinham uma maneira muito curiosa de falar. Nunca me esqueço de que escrever também é brincar. O Manoel de Barros dizia que a poesia é a infância da linguagem. Subverter a linguagem é uma coisa que me diverte. Mas não é nada planeado, quando estou a escrever não estou a pensar em mais nada a não ser escrever. Na verdade, os escritores não dominam quase nada na escrita. O processo da escrita é um grande mistério, e ainda bem. Não quero abrir a caixa e perceber as razões que me levam a escrever sobre isto ou aquilo. Isso não interessa, o que interessa é escrever. Não sou um literato, sou um escritor. E um escritor deve escrever.
Quanta realidade existe nesta ficção?
Há o medronho, o facto de ser um fruto muito frágil… E há a questão do fogo. O Manuel Monteiro diz, às tantas, “eu tenho seis incêndios de vida”. Eles contam a vida pelos incêndios. O fogo tem uma importância vital na narrativa. Há uma passagem com o Manuel Monteiro, quando surgem os dois guardas para o levar, que aconteceu mesmo com um dos produtores de medronho que conheci. Quando se deu o incêndio em Monchique ele ficou na serra e a GNR quis levá-lo à força. Disse-me: “Se não se tivessem ido embora, tinha ido buscar a caçadeira. Isto é a minha vida. Aqui ninguém morre do fogo”. Essas coisas estão no livro, mas há um cruzar de vários elementos: da minha cabeça, das leituras que fiz e da realidade daquela vida.
O livro tem uma estrutura de repetição. Repetem-se as vozes das personagens, as personagens repetem as mesmas coisas que já disseram antes, repetem-se os rituais da vingança…
É curioso: em termos de linguagem, à medida que nos vamos aproximando do fim o discurso deles vai ficando cada vez mais homogéneo, como se fosse só uma voz primordial. E são os quatro a falar a mesma voz. Isso é uma coisa que me interessa – quando digo que quero descer da torre e apanhar o mundo, é para apanhar essa voz primordial.
A repetição é imobilidade (nada muda)? Ou o livro avança em espiral?
Acho que não muda nada. Estamos sempre a repetir-nos. Ainda há pouco vi uma entrevista de um físico que dizia que as pessoas estão muito enganadas quando julgam que têm algum controlo sobre as coisas. Não temos controlo absolutamente nenhum. É muito duro aceitar isto.
A última voz da história é a de Babá, a ama — personagem que até aí só tínhamos conhecido pela voz dos outros. O ponto final da história da família fica nas mãos de alguém que não pertence à família. Porque guardou para o fim a voz da Babá?
Foi uma das partes que escrevi de novo, que não estava nos textos teatrais. A Babá era uma espécie de fantasma, uma presença que aparecia no discurso de todos. Senti que seria interessante ouvirmos alguma coisa da voz dela, e ser esse o fim da trama. Acta est fabula. O drama está apresentado.