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Aos 19 anos, em Detroit, um jovem estofador pálido, de cabelo preto, mais tarde laureado como Jack White, encontrou abandonado numa lixeira uma cópia de Fun House, o álbum de 1970 creditado a Iggy and The Stooges, um momento catalisador para o fundador dos The White Stripes, que garante até hoje que este é o melhor álbum rock alguma vez editado. Na mesma altura, no deserto da Califórnia, Josh Homme depara-se pela primeira vez com os The Stooges e rompe imediatamente com a sua banda, os Kyuss, considerando que não consegue acrescentar mais nada ao sublime tumulto que estava ali registado. Esta história repete-se há 50 anos, um rocker ingénuo, convencido que conhece os cantos da canção, eventualmente descobre o cataclisma Fun House e percebe que, parafraseando Sérgio Godinho, é o primeiro dia do resto da sua vida.
O vocalista dos Queens of the Stone Age tem uma teoria prosaica: os The Stooges são como uma “kick-ass version of herpes”, isto é, uma doença venérea que se propaga debaixo dos nossos narizes, às escuras, na privacidade do quarto, que a música popular carrega como uma uma chaga sem qualquer cura. O motim destas canções continua insuperável em 2020, passaram cinco décadas e permanece a urgência, um desacato face a qualquer noção de conformismo e decência. O demente segundo álbum dos The Stooges, Fun House, foi gravado em 1970 durante uma semana e meia em Los Angeles, de enfiada, composto por sete canções incendiárias que aqui tomamos a liberdade de dividir por capítulos para contar a história do — permitam-nos a arrogância, que convém lembrar, é o elixir fundamental neste universo — melhor álbum rock de todos os tempos.
“Down on the Street”
Os Stooges são uma banda de rufias. Desde a primeira canção, do primeiro segundo de Fun House — quando a bateria e a guitarra de Scott e Ron Asheton impõem um andamento ameaçador, de quem anda a rondar o bairro à procura de sarilhos — que está estabelecido que isto não é boa gente. A marcha não é vagarosa nem célere, tem a velocidade certa para nos deixar de sobreaviso e serve de amparo para os ganidos de um homem-besta, um ser lascivo que ameaça ao invés de cantar.
Originalmente, a violenta “Down on the Street” era uma canção de amor, contrasenso que era natural a Jim Osterberg, um rapaz dócil que, de tronco nu e coleira de cão, transfigura-se em Iggy Pop. Jim Osterberg adota o alter ego Iggy Pop enquanto baterista blues, meados da década de sessenta, mais condizente com a atitude de rufia que tinha vindo a especializar-se desde que conheceu os dois irmãos Asheton, mandriões que passavam os dias encostados à montra da Discount Records, loja de discos em Ann Arbour, cidade universitária a 40 minutos de Detroit. Uma displicência completa impedia os dois Asheton de sequer vingarem como delinquentes, e este desalento profundo — “No fun to hang around/ Feelin’ that same old way” — é acolhido pelo estudante Osterberg, que incorpora as desvirtudes dos amigos num personagem malfeitor que anda a monte, como descreve entre grunhidos em “Down on the Street”.
Estes três vagabundos pegam em instrumentos para fazer ruído, numa espécie de slacker avant-garde psicadélico, inicialmente sob o nome The Psychedelic Stooges, aproveitando a libertinagem que soprava em Ann Arbour. A cidade não deixava de conter o espírito severo da vizinha Detroit, embebido nas fábricas estridentes e na metodologia fordista da linha de montagem. Curiosamente, o método que também inspirou a disciplina de trabalho da conterrânea Motown Records, mas distinguindo-se pelo livre arbítrio sem qualquer tipo de supervisão parental.
O resto da história é célebre: os Stooges entram na comitiva dos MC5 — a banda de ativismo político gerida pelo guru da contracultura John Sinclair; são contratados pela editora Elektra com os MC5 numa promoção “paga um leva dois”; lançam um primeiro álbum brilhantemente monocórdico; e, em obediência à transgressão de qualquer expectativa, abandonam os MC5 e recusam-se a tocar qualquer faixa do disco de estreia, incluindo um hino emblemático como “I Wanna Be Your Dog”.
“Loose”
“Loose” é mais que uma canção, é um estado de espírito. Apesar da frase sugestiva “I’ll stick it deep inside”, a origem não é propriamente o consumo de drogas ou a líbido, é um engrenar completo num transe rítmico que podia ser originalmente qualquer coisa nas lides de James Brown, mas passou a pente fino pela compressa e trituradora dos irmãos Asheton e do baixista Dave Alexander. É Iggy Pop que compõe as canções de Fun House e que dá o corpo às balas ao incorporar este sentimento de soltura — “Cause I’m loose” –, mas é Ron Asheton que cria o riff de “Loose”. Este apontamento ficou perdido pela história, provavelmente pelas nítidas dificuldades de comunicação entre os instrumentistas da banda, alegremente cingidos à retaguarda, estáticos perante a insurreição do vocalista em palco.
Depois de abandonarem as canções sólidas do primeiro álbum, é em palco que Iggy and The Stooges revelam-se verdadeiramente singulares. Entre Charles Manson e Jim Morrison, Apolo e Ramsés II, um diabrete e um operário de fábrica, a persona de Iggy Pop amplia-se de tal forma que o resto da banda segue atrás a transformar aquele sentimento turbulento em melodia. Esta fase áurea de concertos, com o vocalista de luvas douradas até ao cotovelo, jeans rasgados, purpurina no peito e coleira de cão, atinge o ápice no Cincinnati Pop Festival, com Iggy a deambular entre o público até ressurgir sob a plateia, como Cristo no mar da Galileia. Em pé, enquanto espalha manteiga de amendoim no corpo, os comentadores da transmissão televisiva sublinham atónitos: “That´s peanut butter…”
A prestação em Cincinnati serviu de inspiração a David Bowie, o jovem músico inglês que incorporou partes de Iggy Pop na criação de Ziggy Stardust, e quando tentou repetir a proeza de caminhar sobre a plateia no ano seguinte, em Londres, a sua cara encontrou rapidamente o chão. Outra figura tutelar do rock que ficou deslumbrada com este concerto foi Lester Bangs — o crítico de música que Philip Seymour Hoffman personificou em “Quase Famosos”, que escreveu no rescaldo para a revista Creem que Iggy era o único performer genuíno deste tempo, propositadamente um palerma estridente narcisista, sem qualquer endeusamento, que conquistou o palco à bruta e desafiava qualquer transeunte a destroná-lo: “O palco é tanto teu como dele, e estás à vontade para tentar tirar-lhe o palco”. Trocado por miúdos, assim nasce o concerto punk.
“T.V. Eye”
O som mais representativo de Fun House é o berro gutural de “T.V. Eye”, sucessivamente copiado ao longo destes 50 anos, sem ninguém — nem mesmo os devotos Black Francis ou Jack White — conseguir uma entrega plena à bravura de estar sem vertigens em frente ao abismo. E no final de “T.V. Eye”, após uma carga de porrada que despe a canção até ao extremo, quando este assalto sonoro parece terminar, a banda volta à carga, mais furiosa, mais firme, sem reféns.
O responsável máximo pela editora Elektra, Jac Holzman, começa por sugerir, imaginem, a estrela da folk californiana Jackson Browne para produzir o disco destas novas canções. A banda acaba por aceitar a sugestão mais inusitada, Don Gallucci, ex-The Kingsmen — aka os tipos de “Louie Louie”, que certamente não iria tentar exercer o controlo sobre a banda como John Cale dos Velvet Underground, o produtor do álbum anterior dos Stooges. O primeiro contacto de Don Gallucci com a banda é no Max’s Kansas City, em Nova Iorque, mais um concerto memorável, onde Iggy Pop provoca quem tentava em vão ignorá-lo, sentando-se ao colo da plateia e a gritar-lhes na cara. Embasbacado, Don Gallucci descreve os Stooges como “machine music” a Jac Holzman, desumanos, e deixa uma garantia: “É impossível meter isto em disco”.
“Dirt”
“Dirt” é o prenúncio de morte, a confirmação que existe uma decadência suicida neste delírio. A canção caminha pachorrenta até à sarjeta, não tem ilusões, apregoa um niilismo conformado que viver intensamente tem consequências reais. A ruína começou no Tropicana, o motel na Santa Monica Boulevard, Los Angeles, onde Jim Morrison morou durante dois anos e agora hospedava os Stooges, que gravam Fun House no quarteirão abaixo. Coincidentemente, no quarto ao lado de Iggy Pop estava Ed Sanders a escrever The Family, o livro sobre os homicídios e o culto em volta de Charles Manson, que tanto contribuiu para o cenário desolador de 1970.
No primeiro dia em estúdio, de manhã, porque não, Iggy Pop teve uma ideia que certamente lhe pareceu genial: tomar um cocktail de ácidos. A estratégia foi tão apreciada que se repetiu todos os dias em estúdio. E mais: por influência do amigo Danny Fields — que foi recentemente protagonista de um documentário — Iggy conheceu e aprovou com nota máxima o consumo de cocaína. Don Gallucci percebeu rapidamente que seria completamente impossível gravar este disco nos moldes tradicionais, com uma série de takes meticulosos e repartimento de instrumentos, decidiu ligar as máquinas e deixar a fita correr. O resultado é que a banda encarou Fun House como um concerto, cada dia tocam uma canção obsessivamente até acertar, reaproveitando os mesmos PA que usavam em palco, com os microfone no alto para captar a agitação incessante do vocalista inebriado.
“1970”
A euforia tem contornos insanos em “1970”, clima de sábado à noite — “Out of my mind on Saturday night” — com Scott Asheton atrasado na batida sem arredar pé, Ron Asheton a distorcer a melodia num vaivém; o saxofonista Steve Mackay entra à última da hora, a soprar furiosamente como se a sua vida estivesse em jogo; e no meio da tempestade, o saltimbanco perverso garante que é neste apocalipse que está bem: “I feel alright/ I feel alright”.
“1970” é a sequela de “1969”, a canção do primeiro disco que, ao contrário de toda aquela geração extasiada consigo mesma, sentencia em pleno ano de Woodstock que o mundo é aborrecido e não há nada para fazer: “It’s another year/ For me and you/ Another year/ With nothing to do”. No entanto, era evidente o descalabro da Geração Paz e Amor em 1970, com uma sucessão de acontecimentos catastróficos que caem no goto da mundivisão niilista dos Stooges: os Beatles terminaram em conflito e azedume; Charles Manson entra na consciência nacional como um pesadelo; o adensar da Guerra do Vietname; o concerto catastrófico dos The Rolling Stones em Altamont; e uma sucessão sem fim de motins. Nas palavras de Lester Bangs, ainda a quente: “Os Stooges têm um elemento forte de doença na sua música, fruto da incerteza destes tempos, mas acredito que eles também têm um elemento forte de cura, uma sanidade pós-transtorno”. Uma série de anos depois, ao lado de David Bowie, Iggy Pop resume em entrevista: “Acho que ajudei a apagar os anos 60”.
“Fun House”
A canção “Fun House” tem um momento que é sintomático da transgressão deste disco, quando Iggy Pop suplica para abrandar a música e a banda faz ouvidos moucos, permanece impassível nesta perversão de funk, que é bom assinalar, um extraordinário contributo do baixista Dave Alexander. Este era o modus operandi dos Stooges: ligar os instrumentos e deixar a canção discorrer a seu belo prazer, obedecendo ao espírito comunitário que impuseram na própria Fun House, a casa de madeira nos subúrbios de Ann Arbour que abrigava a banda.
Inicialmente, ainda como The Psychedelic Stooges, Iggy apetrechou-se de mescalina e foi com uma pá à procura de uma habitação comunitária, aproveitando o “Verão Quente de 1967”, quando uma série de motins incendeia as ruas de Detroit e arredores. Ron Asheton tinha uma solução melhor, uma casa abandonada ao lado de uma plantação de milho, designada como a Fun House. Aqui estabelece-se a banda, alguns amigos e eventualmente amigas — com destaque para uma temporada da alemã Nico, dedicando-se a ver televisão e fazer o mínimo possível. O compincha Jimmy Silver é encarregue de dar ordem à casa, impõe uma dieta macrobiótica e horários de ensaio. Na parede, a decoração com cartazes de Malcolm X, Elvis Presley e Adolf Hitler confere o clima que concebe as canções de sublevação que iriam gravar em Los Angeles.
“L.A. Blues”
O desaire caótico de “L.A. Blues”, a canção de improviso diabólico que fecha o disco, é um indício entre vários, incluindo o consumo degenerado de ácidos e cocaína, que os Stooges estavam com os dias contados. Segundo Paul Trynka, autor da biografia “Iggy Pop: Open Up and Bleed”, somente Ron Asheton estava sóbrio nesta última sessão em estúdio, que se transformou imediatamente num frenesim festivo. Após terminar a gravação do disco, a banda apresenta as canções no Whisky a Go Go, na icónica Sunset Strip, com um Iggy Pop cada vez mais auto-destrutivo, a espalhar cera a ferver no peito, exatamente no mesmo palco onde quatro anos depois, no auge da decadência como vocalista dos Stooges, dilacera o corpo com uma garrafa partida.
Se era inevitável que a dependência química implodisse a banda, a venda irrisória de exemplares de Fun House, e a consequente demissão da Elektra, foram o último prego no caixão. A editora estava de mãos atadas, a esta altura do campeonato. Com a excepção de Ron, a vida da banda cingia-se a correr atrás da próxima dose de heroína, a praga que assolava Detroit e acabaria por destruir tanto os Stooges como os MC5. Exausto, o babysitter Jimmy Silver atira a toalha ao chão, a Fun House é demolida, Dave Alexander é despedido por estar demasiado embriagado para tocar, e mesmo após a segunda vida dos Stooges com James Williamson, no álbum Raw Power, em 1973, o fiasco aparatoso seria o principal registo de marca. Lentamente, às escondidas, ao longo dos anos, gera-se um passa-palavra que os Stooges são um salvo-conduto, que a imortalidade do rock and roll não está apenas nos astros brilhantes, que aqui na terra, na penumbra, a eternidade está ao alcance de quem incita à independência e falha gloriosamente.