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Quando há uns anos andava a estudar e a escrever sobre a Revolução Cultural Chinesa, e as violentas e apocalípticas perseguições que se faziam a pobres diabos em cima de quem calhavam cair um rol de acusações falsas, era costume encontrar a acusação deste supremo pecado capital contra o comunismo chinês: ser-se espião de Chiang Kai-shek e do seu partido, o Kuomintang, ambos acantonados na ilha de Taiwan. Claro que eram efabulações, durante a Revolução Cultural não eram excessivamente picuinhas com a verdade das acusações que levavam os ditos pobres diabos às humilhações públicas, à prisão ou à morte.
Foi por isso com alguma diversão que percebi – quando estive em setembro em Taiwan a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros para um programa sobre igualdade de género e os esforços do governo nesta área – que afinal a paranoia maoista tinha alguma razão de ser. Não porque os pobres diabos fossem efetivamente espiões de Chiang Kai-shek, mas na verdade o Kuomintang (KMT), apesar de refugiado numa ilha do mar da China com menos de metade do tamanho de Portugal, durante décadas acalentou planos de voltar a conquistar a China continental e expulsar os usurpadores comunistas.
Uma boa descrição para a atual relação entre China e Taiwan é aquele estado de relação que tantos têm no Facebook: “É complicado”. Se desde os anos 50 do século XX que a economia de Taiwan, primeiro na agricultura e depois nos restantes setores, se liberalizou, cresceu e tornou a ilha num dos tigres asiáticos e uma campeã do crescimento económico mundial, enquanto a China permanecia no seu pesadelo maoista, paupérrima em comparação com a ilha-esconderijo do KMT, temendo uma reedição da história de David e Golias, em 2018 a situação é um tudo-nada diferente. David continua a prosperar, é 18º país exportador, mas Golias teve a reforma económica com Deng Xiaoping, é a maior economia mundial se contada em paridades do poder de compra e já não se sente assombrado pelo seu irmão insular.
Não só já ninguém na China teme uma invasão de Taiwan – e na ilha também já perderam a esperança de concretizar estes devaneios – como usa o seu poder de grande player mundial para pressionar os restantes países para isolarem os irredutíveis taiwanren (literalmente, pessoas de Taiwan). Em 2018 Beijing exigiu a todas as companhias aéreas que voam para a China que cessassem de se referir a Taiwan como a um país independente, passando em vez disso a apresentar as cidades da ilha como qualquer outra cidade chinesa. A presidência americana barafustou com esta exigência, mas todas as transportadoras aéreas cederam aos chineses. Os grandes clientes têm sempre razão, não é?
Nos primeiros dias de 2019, Xi Jinping garantiu que atacaria Taiwan caso fosse declarada a independência, e que se manteria a unidade mesmo se necessário as explosões das armas. (Já lá chego.)
Paralelamente, a China tem trabalhado para seduzir os poucos países (atualmente são 17, e potentados como Nicarágua, Saint Vincent and the Grenadines ou Palau) que ainda reconhecem Taiwan como país independente – e, por isso, não têm relações diplomáticas com a China. Em 2018, El Salvador e a República Dominicana estabeleceram relações diplomáticas com Beijing e deixaram de reconhecer Taipei. Em 2017, o Panamá havia feito igual. Sem surpresas, as possibilidades de negócios com a China, bem como o dinheiro a rodos que Beijing vai distribuir (com um preço, claro) na sua Road and Belt Initiative, falaram mais alto que as alianças antigas.
Aqui chegados, em plena ofensiva chinesa, Taiwan, no seu limbo de países que existem mas não existem, tem alguma vontade de fazer relações públicas. Economicamente pouco tem a temer. Continua a produzir e a exportar, cada vez com produtos tecnologicamente mais sofisticados. Aquilo que dantes, há umas décadas, por lá se produzia (os light industrial products, mais baratos e menos sofisticados) migraram todos para as fábricas chinesas, tendo a economia de Taiwan feito um upgrade tecnológico e, claro, de criação de valor nas novas indústrias que foi gerando.
Em todo o caso, sente-se a vontade de Taiwan mostrar aos poderosos e influentes do ocidente que, se Beijing tem as massivas oportunidades de negócios e a nova rota da seda, Taipei tem liberdade, democracia e direitos humanos.
Taiwan, o alter ego da China
De facto, ir à China e ir a Taiwan é uma experiência curiosa. De um lado temos um país que é aquele regalo que se sabe para os direitos humanos. Há Xi Jinping, esse curioso líder que prometia ir na linha de Deng Xiaoping (até começou a sua presidência com uma viagem ao sul do país, emulando a célebre viagem de Deng onde determinou a abertura e reforma da economia) e depois se revelou um discípulo do ferro de Mao. O acesso dos chineses a sites e plataformas estrangeiras é quase inexistente (só com esquemas ilegais), a polícia da Internet vigia obsessivamente os milhões de netizens, ativistas de direitos humanos (incluindo ativistas feministas) têm sido presos com abundância, a relativa liberdade dos académicos estudarem e discutirem temas que há dez anos eram pacíficos agora está limitada e circunscrita, a censura da comunicação social é crescente. Os ateliers do artista contestatário Ai Weiwei são destruídos, alguns livros de autores consagrados como Yu Hua são proibidos, o rol de livros censurados é crescente. Há um nacionalismo feroz, sobretudo nas gerações mais novas, com recusas cada vez mais enfáticas dos usos, costumes e valores ocidentais. (Simultaneamente, é curioso, o plano de todas as famílias endinheiradas é sair da China e ir viver para o demonizado ocidente.)
Mas sabem onde se publicam estes autores censurados na China? Do outro lado do Estreito de Taiwan. Nesse lado temos uma China – Taiwan – que quase parece apostada em desmontar a velha tese de que os chineses, à conta da milenar matriz confuciana – que, numa casca de noz, defende o governo pelo ‘homem superior’, uma espécie de déspota esclarecido – são naturalmente propensos a apreciarem viver numa ditadura. Por lá há eleições, desde o fim da Lei Marcial em 1987 que a democracia se tem consolidado, existem dois grandes partidos – o mencionado KMT e Partido Progressista Democrático – em saudável alternância. A sociedade civil é irrequieta e mobiliza-se.
Os direitos e liberdades individuais que no ocidente consideramos essenciais, Taiwan oferece aos seus cidadãos e residentes. (Há mais de meio milhão de imigrantes em Taiwan, mormente do sudeste asiático – e sem notórios problemas de integração). Algumas vezes estes direitos e liberdades que existem na letra da lei colidem com a cultura da Ásia Oriental, que os boicota, porém Taiwan é um caso especial de liberdade naquela zona do planeta.
Há uns meses dei uma aula aberta na FCH da Católica sobre Taiwan, e escolhi como título “Taiwan, entre os valores liberais e a cultura da Ásia Oriental”. Ainda não mudei de ideias: esta dualidade, umas vezes atrito outras complementaridade, são o que melhor descreve a sociedade daquela ilha.
Liberdade de expressão? É maximalista. Taiwan ultrapassou Hong Kong neste indicador, depois das interferências chinesas na comunicação social e no panorama editorial da antiga colónia britânica. O South China Morning Post, de Hong Kong, continua a ser um jornal imperdível, mas é propriedade de Jack Ma (o dono do Alibaba), que, recentemente, até fez o favor de se filiar no Partido Comunista Chinês (não sabemos se por vontade própria se por sugestão irrecusável superior). Em Taiwan publicam-se todos os livros sem restrições, a comunicação social é virulenta para com o poder político, o escrutínio existe.
Liberdade religiosa? Completa. Não só por lá se mantêm festas e cerimónias budistas e confucionistas que na China foram, digamos, desencorajadas pelo regime comunista (or else…), como existe uma numerosa minoria cristã e outra muçulmana. A ilustrar a convivência pacífica, a mesquita e a maior igreja de Taipei distam poucos metros entre si. As escolas salesianas fazem abertamente publicidade.
Em termos de igualdade de género, Taiwan é o país mais igualitário da Ásia Oriental. A legislação é bastante completa e avançada. Claro que nem sempre cumprida – estamos numa sociedade bastante patriarcal – mas em todo o caso revela como os esforços governamentais e legislativos têm bons resultados nestes indicadores com grande impacto na vida fora das estatísticas.
No parlamento, 38% dos eleitos são mulheres (muito bem, ainda que nos governos central e locais a percentagem desça – mas por cá sucede o mesmo, não temos direito a sobranceria), as quotas estão na constituição e o objetivo é conseguir uma distribuição totalmente paritária até 2030. O gender wage gap é de 16,2% (menor que o português); 36,7% das 1,4 milhões de PME (a coluna vertebral da economia) são propriedade de mulheres.
E, claro, têm uma mulher presidente, Tsai Ying-wen. Que muitos nos fizeram questão de referir que tem carreira política por mérito próprio, não sendo herdeira de pai ou marido, ao contrário de tantas políticas de renome por todo o mundo desenvolvido e por desenvolver. Uma mulher tremendamente escolarizada, que estudou em Londres, dando curiosamente razão à tradicional crença chinesa que os nomes próprios de cada um têm capacidades performativas e determinam o destino de quem os carrega: Ying- wen traduz-se por “cultura inglesa” ou “língua inglesa”.
De resto não só a presidente é uma mulher interessante. Dentre os vários oficiais com que contactei, notava-se uma clara diferença entre os sexos. Os homens todos eles com a rigidez e a formalidade, por vezes pomposa, que se espera dos altos oficiais chineses. Já as mulheres eram muito mais descontraídas e informais, muito mais modernas nas roupas, nas palavras, na forma como se moviam e interagiam com o grupo internacional que recebiam, consideravelmente mais proficientes em inglês. Já quanto aos direitos LGBT, são acarinhados, pelo menos pelo DPP. O casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado – para depois ser recusado em referendo em final do ano passado. Seguirá agora para uma lei de uniões civis para os casais gays e lésbicos.
Ao lado deste ar do tempo livre e próspero, nota-se grande orgulho na cultura ancestral chinesa. Porventura consideram-se até a China pura, não contaminada pelas purgas culturais comunistas. Não por acaso, o nome oficial do país é República da China (os “outros” são como que uma deturpação, a República Popular da China).
O culto de Chiang Kai-shek já teve melhores dias por lá (nem nos levaram ao memorial do antigo líder), mas o Museu do Palácio Nacional, onde está guardada a coleção imperial de arte dos Qing, é mostrado com garbo. Aquelas são as raízes dos taiwanren, incluindo o Caldeirão do Duque de Zhou (os Analectos de Confúcio esclarecem quem foi), as pedras cerimoniais da Cultura de Longshan ou as muitas aguarelas das várias dinastias (e que a mim me encantam tanto que me fazem ter pena de não ter seguido a carreira profissional de larápia de grandes museus). Em boa verdade, desconfia-se que a coleção não teria sobrevivido intacta e cuidada se tivesse ficado ao sabor das loucuras do tempo da Revolução Cultural, quando destruir artefactos antigos era o maior must revolucionário.
A constituição em vigor (com emendas) em Taiwan é a Constituição de 1947, escrita para a China continental antes da vitória comunista. (Já nessa época obrigava a quotas para a participação política de mulheres.) Os caracteres que usam são os tradicionais (os fanzi, caracteres farfalhudos), que têm consideravelmente mais traços que os caracteres simplificados em uso na China desde 1959 – vistos como um abastardamento maoísta dessa tão preciosa característica da cultura chinesa que é a sua belíssima escrita. (Quem não tem um fraquinho pelas telas de caligrafia chinesa não é boa pessoa.) O Grand Hotel em Taipei – onde nos instalaram – é um dos maiores edifícios do mundo de arquitetura tradicional chinesa, lindo de morrer e mais um orgulho nacional.
Este tradicionalismo chinês não interdita um pronunciado travo de modernidade e contemporaneidade – um tanto semelhante, em Taipei, ao de Hong Kong expurgado das influências britânicas. (Taichung, a outra cidade que visitei, já lembra as cidades da China mainland. As roupas das mulheres, os cheiros, o leve ar de descuido.) Se os colecionadores de Taiwan preferem as artes tradicionais como passaporte para reconhecimento de gosto e pedigree cultural, nota-se também um vivaz mercado de arte contemporânea. Repleto de influências ocidentais e ainda a preços muito mais sensatos que os da Mainland.
Existem arranha-céus, claro, ou não se tratasse da Ásia – um dos ex libris da capital é o Taipei 101, o prédio mais alto com o inevitável miradouro no topo com lojas de souvenirs (eu vim carregada de borrachas, cadernos, réguas, pequenos 101 fluorescentes, feios como o breu, para os meus filhos) e dezenas de lojas de jade. O jade é um assunto sério em Taiwan.
Taiwan e a China
Não obstante este orgulho chinês, há em Taiwan uma crescente identidade nacional que a separa da China, bem como um sentimento de que não são parte da Mainland. É certo que ainda não fizeram inteiramente o processo do luto pela derrota com os comunistas em 1949, que obrigou Chiang Kai-shek e os oficiais do KMT (e a coleção imperial) a atravessar o estreito e tomar posse de Taiwan. Esta derrota é uma espécie de Batalha de Alésia para os gauleses nos livros de Astérix ou o nome de Voldermort nos livros de Harry Potter: não se fala nisso.
Quando nos explicaram a coleção imperial Qing do Museu Nacional, informaram que a coleção, para escapar aos japoneses invasores nos anos trinta do século passado, havia sido empacotada e viajava itinerante pela China protegida pelo exército nacionalista. Mas nada sobre a razão por que tinha dado um pequeno salto sobre o mar depois dos japoneses terem capitulado em 1945.
Atualmente, a maioria da população na ilha prefere a manutenção do status quo – que é uma efetiva independência face à China sem estar declarada e reconhecida internacionalmente. Cerca de 30% quer uma declaração de independência formal e menos de 2% prefere a reunificação com a China. É assunto que divide os partidos: o KMT tradicionalmente mais pró-unificação e o DPP decididamente pró-independência. E não é tema fácil.
Em 1992, China e Taiwan estabeleceram o Consenso de 1992, que afirma existir uma só China. No fundo, acordaram em discordar. Segundo a política de uma só China, não fica estabelecido o que é a China e qual a extensão territorial nem, sequer, qual o governo que representa a China única. Manteve-se toda a ambiguidade e cada governo pode interpretar o conceito de única China como lhe convém. Tsai Ying-wen, no entanto, não reconhece sequer o Consenso de 1992, dando voz, de resto, a um crescente sentimento anti-Beijing dos seus governados.
Em 2008 as ligações estreitaram-se com a política dos Três Elos de ligação entre os dois lados do Estreito: acordaram-se voos diretos, viagens de barco diretas e correio direto entre China e Taiwan. Contudo o dinheiro já fluía com facilidade antes disso. Em 1979, a China de Deng Xiaoping emitiu uma “Mensagem aos Compatriotas em Taiwan”, propondo a abertura comercial entre os dois lados do estreito. Mais tarde, passaram legislação criando condições especiais para os investidores de Taiwan nas quatro zonas económicas especiais da China. A primeira empresa totalmente propriedade de investidores de Taiwan (algo interdito a outros estrangeiros) abriu em 1984 em Fuzhou.
Por estes dias, a China é o destino de metade do investimento estrangeiro total de Taiwan. Para a China, este investimento direto está em segundo lugar, com Taiwan logo a seguir a Hong Kong. Foi o capital que veio de Taiwan que salvou a China nos momentos de crise mundial, como depois de 2001, quando os restantes países não investiam fora de fronteiras. A abertura e interligação económica entre os países politicamente desavindos é, paradoxalmente, quase total.
Entra Xi Jinping. Contrariando os antecessores, Xi mostrou desde cedo uma postura mais dura na questão de Taiwan. Em vez de ficar contente com o status quo e a não declaração de independência, Xi já em 2013, numa reunião da APEC em Bali, havia referido que “ambos os lados do estreito são uma família”, que a questão teria de ser resolvida e num tempo curto: não se podiam aceitar disputas de longo prazo dos dois lados nem deixar este problema para as próximas gerações.
Nos primeiros dias deste ano, o presidente chinês num discurso aos militares afirmou que a reunificação de Taiwan era inevitável (dentro do regime “um país, dois sistemas”) e que a China poderia usar o poderio militar para a forçar. Tsai Ying-wen resistiu e pediu ajuda ao resto do mundo para defender a democracia de Taiwan. Como resposta, Xi ordenou que os militares se aprontassem para um conflito.
Esta demonstração de força de Xi Jinping vem depois de um ano em que teve vários desaires – a guerra comercial com os Estados Unidos, as dificuldades de financiamento da Road and Belt – e poderá ser uma tentativa de reafirmar autoridade. Em todo o caso, revela o que pretende para Taiwan. A ameaça deve ser encarada com seriedade.
Taiwan e o Japão
Taiwan será talvez caso único no mundo. Não conheço país que tenha uma visão tão rósea do seu ex-colonizador. Em 1895, no fim da primeira guerra sino-japonesa, o Tratado de Shimonoseki entregou a (de resto, recente) província do império Qing de Taiwan ao Japão. Durante a Segunda Guerra Mundial, soldados de Taiwan combateram – sem revelar estados de alma conflituosos – no exército japonês contra os chineses da Mainland. Porém, perdida a guerra, Taiwan foi devolvida à China.
É possível que seja uma questão de afirmação cultural da tal identidade nacional de Taiwan, esta visão tão benigna do Japão. Afinal, na China, o trauma coletivo do país – enaltecido e promovido e celebrado pelas autoridades comunistas – é a invasão japonesa de 1937 e, concretamente, a ‘violação de Nanjing’ (o magnífico filme Flores de Guerra, de Zhang Yimou, ilustra tanto o massacre da conquista de Nanjing como a visão traumática que ainda existe destes eventos). A isto junta-se outra quezília ainda não resolvida, a das mulheres de conforto, as escravas sexuais que os japoneses recrutavam entre as coreanas e as chinesas para os soldados durante a Segunda Guerra Mundial.
De um lado do Estreito, o Japão é visto como o invasor malévolo e cruel que violou mulheres e um país. Do outro lado, o Japão é o antigo colonizador que, fora escaramuças violentas com as populações aborígenes, implementou um programa abrangente de escolarização, construiu estradas e caminhos de ferro, fez uma reabilitação significativa da cidade de Taipei, e deixou um conjunto numeroso de edifícios públicos, ainda hoje relevantes e em uso, cuja arquitetura colonial japonesa já é um marco cultural e turístico de Taiwan.
Não há palavras agrestes para os japoneses – ao contrário de para os chineses mainlanders -, a gastronomia japonesa é abundante (e de qualidade impressiva) na oferta de restaurantes da ilha, o Japão é um destino de férias e fins de semana preferido das gentes de Taiwan, muito mais que a China ou até Hong Kong. As influências japonesas fazem parte dos elementos distintivos da tal identidade de Taiwan, e os taiwanren orgulham-se disso.
Taiwan e os Estados Unidos
Os Estados Unidos não fazem parte das raízes culturais de Taiwan, mas são um país fulcral para a sua existência (e, porventura, resistência). Com o reatar das relações diplomáticas e económicas dos Estados Unidos com a China no início dos anos 1970, os EUA passaram a reconhecer o governo de Beijing em vez de o de Chiang Kai-shek. Muitos países os seguiram e a ilha dissidente passou para o atual estatuto de limbo diplomático na comunidade de países.
No entanto, para proteger este reduto capitalista da China comunista, o Congresso americano em 1979 votou o Taiwan Relations Act, que instituía relações diplomáticas oficiosas, ainda que não oficiais, entre os dois países. E – em linguagem bastante ambígua – dá a entender que protegerá militarmente Taiwan de qualquer agressão armada chinesa. Não obstante a ambiguidade, é este o maior garante da segurança de Taiwan. Se excetuarmos, claro, as consequências económicas e políticas que recairiam sobre a China em caso de ataque a Taiwan. Mesmo com a vantagem de grande player mundial, algumas punições seriam aplicadas à China. Desde logo porque Taiwan também é um significativo player económico.
No meio desde contexto, Donald Trump é visto com alguma simpatia. É um amigo de Taiwan. Hillary Clinton era igualmente amiga de Taiwan, afirmam, mas a retórica anti-China de Trump dá salvaguarda q.b. ao país. Encontrei desde os que consideravam Trump o ignoramus que está à vista mas com vontade de proteger Taiwan, até aos que (menos numerosos) usavam argumentos quase saídos da Fox News.
Pouco depois de tomar posse, Trump falou telefonicamente com Tsai Ying-wen, algo que nenhum presidente americano antes fizera. E que enfureceu devidamente (como se pretendia) o governo chinês. Trump continuou as vendas de armamento a Taiwan. E os diplomatas americanos fazem lobby junto dos países que ainda reconhecem Taiwan para que não sucumbam à sedução chinesa e reconheçam Beijing (ou seja, não sigam as pisadas americanas).
Claro que Trump é Trump – e as autoridades de Taiwan sabem disso. O apoio ao governo da ilha tanto pode durar como pode ser vendido em qualquer acordo de comércio dos Estados Unidos com a China.
É certo que a China tem uma política de segurança nacional defensiva e de manutenção territorial. Não tem pretensões expansionistas, mas vê como fulcral defender aquilo que consideram a integridade territorial da China – que abarca qualquer território que já tenha feito parte do Império do Meio, mesmo que fugazmente. O Tibete, várias ilhas disputadas no Mar do Sul da China, o Xinjiang e, também, Taiwan. O endurecimento das ameaças de Xi Jinping vem também daqui. Contudo não lhe será parcialmente alheio a vontade de afrontar os Estados Unidos colocando-os perante a possibilidade de terem que defender Taiwan ou engolirem os seus tratados e promessas – e a honra. É uma ótima estratégia negocial.
A situação de Taiwan na geopolítica é esta: o vértice menos importante de um triângulo com a China e os Estados Unidos. Por agora, um peão na guerra comercial e política entre os dois países.
Taiwan e Portugal
E com o nosso país? Que relação tem esta ilha do outro lado do mundo, para além de ter o nome Formosa (dado por navegadores portugueses no início do século XVI) e de alguns vestígios portugueses e espanhóis na zona antiga de Datong em Taipei?
Pouca relação, mas não, garantem-me, por vontade de Taiwan. O Delegado Comercial de Taiwan em Lisboa, o diplomata Raymond Wang – um daqueles senhores orientais imensamente cosmopolitas e sabedores e cuja companhia é um regalo – tem como objetivo Portugal abrir uma delegação comercial em Taiwan, tal como têm Espanha e vários outros países europeus. Os governos portugueses, ao mesmo tempo que afirmam querer Taiwan investido por cá, por alguma razão nunca foram sensíveis a esta pretensão. Talvez por medo de incorrerem na ira da China – apesar de, como vimos, economicamente é como a relação Taiwan-China é mais fulgurante e facilitada. Ou por falta de iniciativa ou visão. Os chineses são e sempre foram pragmáticos: desde que Portugal não reconheça nem apoie as pretensões de independência de Taiwan, pode negociar à vontade.
Enquanto a delegação de Taiwan se esforça, por exemplo, para que os produtores portugueses para lá exportem vinho, o SEF por cá demora meses a dar os vistos aos diplomatas de Taiwan que cá vêm residir. Em todo o caso, Taiwan faz por demonstrar boa vontade. Aquando dos incêndios de Pedrógão em 2017, a Fundação TZU CHI de Taiwan ofereceu 400.000€, no total, diretamente às vítimas dos concelhos de Tondela e Vouzela, com direito a cerimónia camarária e tudo. Esta fundação enviou, ainda, voluntários em nesse ano para ajudarem na reconstrução da zona. A Delegação de Taiwan em Portugal doou, no conjunto, 12.500€ às Câmaras Municipais de Vouzela, Tondela e Oliveira de Frades para usarem no alívio dos afetados pelos incêndios. Escusado dizer que esta contribuição de Taiwan foi a maior vinda de um país estrangeiro.
Mas, em Taipei e Taichung, deparei com mais uma ligação. Tudo isto porque os taiwanren também são cosmopolistas. Só numa semana encontrei dois que falavam português perfeitamente – por terem vivido bastante tempo no Brasil. Em boa verdade, encontrei por lá mais falantes de português do que em Macau quando lá estive (ainda antes da devolução) ou em Goa.
Com o motorista do mini-autocarro que nos transportou no último dia da viagem, à porta da Mesquita de Taipei (a jornalista do Koweit do nosso grupo tinha ido entrevistar o íman), fui informada, em inglês fluente, que já tinha vindo de férias a Lisboa, onde residia um familiar.
E com uma das falantes de português, uma tradutora que encontrei num centro de acolhimento de mulheres em situação de vulnerabilidade em Taichung, tive um daqueles momentos perfeitos que nos mostra como a mistura de culturas pode ser um bem. Depois de descobrirmos a coincidência da língua portuguesa, de nos fotografarmos juntas, de nos abraçarmos antes de me vir embora, Jamie Fan, chinesa de Taiwan, católica, que havia vivido no Brasil e falava português correto, despediu-se de mim com um “Deus te abençoe”.