Conheci Tim Baker em Bali, paraíso surfista pelo menos desde os tempos de Morning of the Earth – um clássico que, mais do que um filme, era uma peregrinação por alguns dos lugares mais sagrados para os devotos das pranchas: além da famosa ilha indonésia, Havai e a costa nordeste da Austrália. Morning of the Earth é de 1971 e mostra praias de Uluwatu, na ponta sul de Bali, absolutamente virginais e impolutas. Nada a ver, portanto, com o centro turístico de massas – não apenas surfistas – em que entretanto se transformou.
https://youtu.be/4e_2SrcjJLY
Baker nasceu num subúrbio de Melbourne (sul da Austrália), a mais de uma hora de carro da praia mais próxima. A distância entre a casa familiar e a costa não só não diminuiu como intensificou a sua paixão pelas ondas. “Para mim, o surf foi sempre uma atividade um tanto inverosímil”, conta ao Observador. “Não podia simplesmente sair de casa e andar uns metros para ir surfar, como tantos outros miúdos que conheci. Tive de conquistar esse direito, trabalhar duro, apanhar autocarros, pedir boleia…”.
O pai trabalhava na indústria química e “ninguém na família tinha uma profissão criativa”. No liceu estudou matemática e ciências; mesmo gostando de escrever, nunca imaginou uma carreira ligada às letras… até ao dia em que fez o último exame antes da faculdade: “Era um exame de três horas, um exame muito importante que ia definir o meu futuro: o curso que ia fazer, a universidade em que podia entrar e por aí fora. Escrevi sobre ir surfar antes do nascer do sol e ficar a olhar para o oceano. Lembro-me muito bem de ter escrito umas linhas sobre a experiência de estar numa falésia a olhar para a praia enquanto dava uma mija para marcar o território, como se fosse um cão… Depois pensei: ‘Mas que grande asneira fui fazer naquele exame, estraguei tudo!’ Senti o sangue a subir-me à cabeça. Tinha escrito uma espécie de viagem de surf meio louca, uma espécie de ensaio em monólogo interior, e julguei que iria ter uma nota péssima. Quando chegaram os resultados, descobri que tinha um 20! Então pensei: ‘Uau, se calhar é mesmo isto o que devia fazer: escrever de maneira espontânea, o que me sair do pelo, com fogo nas entranhas…’. Era como estar a receber o selo oficial de aprovação do sistema educativo”.
Aquele ensaio sobre surf com urina à mistura foi o início da sua carreira como escritor?
Sim! Até lá achava que o meu destino seria estudar silvicultura ou agronomia na universidade, mas mudei de ideias e acabei por fazer jornalismo. Fiz um curso de imprensa escrita para preparar a transição e depois, já com o diploma, comecei a trabalhar numa revista de surf. Só muitos anos mais tarde comecei a escrever livros. Devo dizer que foi, ao mesmo tempo, algo inesperado e um sonho tornado realidade. Se me tivessem dito, aos 15 anos, que iria viver do surf e da escrita, não teria acreditado.
Escreveu a biografia de algumas das maiores lendas do surf australiano: Mick Fanning, Mark Occhilupo… Porque estes e não outros? Como foi o processo de escrita e a experiência de conversar e passar tantas horas com eles?
Tive muita sorte. Primeiro de tudo, tive a oportunidade de falar sobre [Wayne] ‘Rabbit’ Bartholomew, que fora campeão do mundo em 1978. Conheci-o graças ao meu trabalho como jornalista e já tinha ouvido algumas das suas histórias em bares, restaurantes, praias… Tinha um repertório infinito de grandes histórias, e o que mais me impressionava era o facto de ele nunca contar a mesma história duas vezes. O repertório parecia mesmo inesgotável e decidi que a vida dele tinha de ser documentada, porque era mesmo incrível. ‘Rabbit’ estava a chegar ao final da sua carreira profissional e começava a ser um tanto autodestrutivo. Acontece com muitos atletas quando deixam de competir e não sabem o que devem fazer a seguir. Como não encontram um caminho lógico, começam a sair, a fazer noitadas, a beber… Felizmente, hoje continua vivo e tem uma vida muito saudável [presidiu à Associação de Profissionais do Surf durante uma década e dirige a Greencell, uma empresa de biotecnologia]. Na altura achei que não podia deixar escapar aquela história e tive a sorte de chegar a um acordo editorial e conseguir a aprovação e a cooperação de ‘Rabbit’. Normalmente, demoro cerca de um ano a estudar um assunto – uma biografia, por exemplo. Uma vez por semana, sento-me simplesmente para conversar, ouvir histórias e tomar notas.
Ou seja, faz pelo menos 50 entrevistas sobre o mesmo surfista. É isso?
Tento fazer uma abordagem documental, é quase como se estivesse a fazer um documentário sobre as vidas dos surfistas. Por exemplo, se ouvir uma boa história na fase de pesquisa de uma biografia, a seguir vou entrevistar 15 pessoas sobre essa história e vou querer falar com todas as pessoas envolvidas, fazer verificações, obter diferentes perspetivas… Acho que funciona muito bem. Ouves um relato e acrescentas testemunhos de outras pessoas, elementos externos que complementam esse relato. É um formato bem sucedido e o livro sobre ‘Rabbit’ vendeu-se muito bem – e, não por acaso, o livro sobre ‘Occy’ [Mark Occhilupo] volta a usar o mesmo formato. ‘Occy’ é toda uma personagem, muito infantil e inocente num certo sentido… como se tivesse uma variante de Asperger [uma desordem do espectro autista]. Muito bom a surfar e praticamente inapto para o resto das coisas. Foi muito divertido trabalhar com ele.
E Mick Fanning?
Fanning foi muito diferente. É muito sério, muito focado e disciplinado. Envolveu-se a fundo no livro, queria ler e verificar tudo. ‘Occy’ teve um auge, uma queda, um novo auge e desapareceu, mas Fanning ainda está no circuito. Normalmente, escrevo a biografia de um surfista em fim de carreira. No caso do Mick, comecei a escrever quando ele estava a meio da carreira e por isso, mais do que uma biografia, é um manual que explica como conseguiu tudo o que conseguiu. Ultrapassou obstáculos inacreditáveis! Desgarrou um músculo de uma coxa e por causa disso tem um gancho metálico na bacia a segurar o músculo. Todo o mundo pensou que seria o fim da sua carreira! Teve um irmão que morreu num desastre de automóvel, teve uma escoliose [desvio da coluna vertebral] e o médico disse que teria de ser alvo de uma intervenção cirúrgica… Mick quis evitar uma operação a toda a força, porque sabia que iria limitar a sua forma de surfar, e conseguiu corrigir a escoliose no ginásio com a ajuda de um quiroprático. Enfrentou todos estes obstáculos e, em vez de fracassar, ficou mais forte.
Milhões de pessoas em todo o mundo sonham viver do surf e muitas outras sonham dedicar-se à escrita. Em ‘Surfari’, um dos seus últimos livros, materializa ambos os sonhos. O que é preciso fazer para ter um emprego como o seu?
Em ‘Surfari’ tento fazer um balanço sobre a cultura do surf na Austrália. Podemos falar de surf australiano como se fosse uma só realidade, mas na verdade são muitas realidades diferentes. Um pescador de abalones na Austrália Meridional não tem nada a ver com um miúdo da Gold Coast que sonha ser surfista profissional. São diferentes as envolventes, as ondas, a geografia, as motivações, as formas de surfar… A igreja do surf é grande, e foi interessante dar uma volta pelo país e ver tudo com os meus próprios olhos. Passei a vida a viajar e a escrever sobre surf pelo mundo fora e senti que precisava de conhecer melhor a Austrália.
Nessa igreja, ou paróquia, a Austrália é o Vaticano?
O Havai vai sempre ser a pátria espiritual do surf. Diria que o Havai é o Vaticano mas a Austrália é provavelmente um dos países onde o surf é mais importante. A população vive no litoral – não tenho os números aqui, mas acho que nove em cada dez australianos vivem a menos de 30 minutos da costa – e por isso o surf é, legitimamente, um desporto maioritário, praticado por todo o tipo de pessoas. Quando comecei a surfar, em criança, era um desporto um tanto marginal e nós, os surfistas, éramos tratados quase como delinquentes. Para o bem ou para o mal, hoje é uma atividade muito respeitável… alguns surfistas ainda gostam de ser rebeldes ou marginais, mas entretanto o surf tornou-se um desporto dominante: há academias, programas de excelência nas escolas, alunos que surfam várias vezes por semana. É um desporto maioritário.
É conhecido o gosto dos australianos pelo desporto. O surf está no topo das preferências?
Não sei a ordem exata, mas diria que está no topo das preferências, sem sombra de dúvidas. Há dois grupos principais: o dos surfistas convencionais, que deslizam nas ondas por prazer, e o dos nadadores-salvadores. Há muitos clubes de surf com nadadores-salvadores voluntários que patrulham as praias para que sejam seguras. O surf é uma atividade só, mas adota formas muito diferentes.
Em ‘Surfari’, além de viagens em família e aventuras nas ondas, há uma preocupação transversal pelo ambiente. Define-se como um ecologista?
Sinto alguma culpa em relação a isso… acho que poderia fazer mais e escrever mais sobre estes assuntos. Não sou um ativista e nunca me insurgi realmente, mas aterroriza-me o que está a acontecer nos nossos oceanos…
O quê, em particular?
A acidificação, sobretudo quando ouço os biólogos marinhos a falarem de krill, os microrganismos que estão na base da cadeia alimentar. Nalgumas partes do mundo, a estrutura do krill está a ficar mais fina do que costumava ser. Estas alterações radicais em ecossistemas complexos tem inúmeras consequências, e julgo que exageramos a nossa compreensão e o nosso conhecimento sobre estas matérias. Há sempre consequências imprevistas decorrentes das atividades humanas, e por mais previsões e simulações que possamos fazer, por mais que achemos que uma tecnologia milagrosa irá salvar o mundo… chegará o dia de pagar a conta. Nós surfistas gostamos de achar que somos ambientalistas, mas viajamos muito, estamos sempre a ir de avião, de carro… e as pranchas e os fatos são feitos com derivados do petróleo. Um surfista que pretenda ser amigo do ambiente tem de surfar numa só praia, preferencialmente perto de casa para poder ir a pé; tem de usar uma prancha de madeira produzida de forma sustentável, etc. O surf seria muito diferente se tentássemos ser mais honestos.
Ao mesmo tempo, o surf é relativamente inócuo quando comparado com outras atividades no litoral, nomeadamente as industriais. E nem todos os surfistas estão sempre a viajar pelo mundo à procura das melhores ondas…
Os surfistas costumam ser grandes viajantes e também ajudam a construir pontes culturais. Os surfistas australianos que viajam à Indonésia foram-se espalhando pelos confins mais remotos do arquipélago à procura de ondas perfeitas. Os nativos acolheram-nos com grande simpatia e generosidade, mesmo aqueles que quase não tinham recursos materiais. O surf ajudou a desenvolver pequenas economias em zonas muito remotas.
A sua voz é ouvida na Austrália, em particular entre a comunidade surfista. Pensa dedicar mais tempo às questões ambientais a curto prazo?
Sim, vai ter de ser. Tenho [dois] filhos e preocupa-me o mundo que vão herdar, mas não tenho respostas. Continuo a dar voltas a estes assuntos, a questionar de que forma posso ser útil, como posso despertar consciências, combater problemas. Ainda não descobri a melhor forma de o fazer, mas a verdade é que o tempo está a esgotar-se.