“Bom dia, acabei de me desvincular do Bloco de Esquerda”. Os membros da direção dos Jovens do Bloco estavam a voltar das comemorações do 25 de Abril quando as notificações e mensagens começaram a aparecer. No Twitter, parecia crescer uma aparente onda — alimentada por páginas que admitiam estar a parodiar o assunto — de desfiliações e insatisfação no Bloco, sobretudo de membros mais novos. Pouco a pouco, começavam a surgir tweets com insinuações, embora raramente concretizadas. Num aspeto, quase todos confluíam: o partido estaria a “encobrir” casos graves. As queixas, depois, variavam. Há referências a “abusos” entre membros do partido, “assédio” de vários tipos e transfobia, por exemplo.
Quando, na madrugada de dia 5 de maio, surgiu também no Twitter uma denúncia de uma ex-militante do Bloco, Catarina Alves, contra o deputado Luís Monteiro por violência doméstica, o ‘buzz’ nas redes sociais adensou-se. Algumas das mesmas contas que garantiam ter-se desvinculado apontavam para um alegado encobrimento da situação como um dos motivos para a desilusão do partido. A vaga de contestação interna, que misturava referências a temas que são bandeiras do Bloco, começou a crescer.
Nos últimos dias, a direção do partido teve de trabalhar para descodificar o assunto e perceber de onde vinham os vários focos de incêndio. Por um lado, explicando se houve ou não, afinal, um “encobrimento” do caso Luís Monteiro — uma resposta que a direção do partido dá ao Observador, detalhando qual foi o acompanhamento que fez do caso que efetivamente conhecia.
Por outro, a direção teve de lidar com denúncias internas graves: um grupo de militantes e ex-militantes (vários saíram por causa desta situação) apresentou uma queixa em que acusa outra militante de cometer assédio moral, transfobia, ameaças físicas e psicológicas. Este grupo acusa a linha oficial do partido de ser conivente com estas práticas.
BE sabia do caso Luís Monteiro, mas não houve queixa formal
Ao Observador, o partido responde oficialmente que não existem quaisquer queixas internas por motivos de assédio ou de violência idênticas à que envolve Luís Monteiro. O que não significa que não se soubesse dentro do partido do caso de Luís Monteiro, que entretanto disse ser ele próprio vítima de Catarina Alves e anunciou que vai avançar com uma queixa na Justiça contra a ex-namorada e ex-colega de partido.
O caso, como o Observador pôde confirmar cruzando diversos testemunhos, era conhecido há anos — os dois namoraram de fevereiro a outubro de 2015 –, mas “nunca foi apresentada a qualquer instância do Bloco sobre os atos agora relatados”. Mesmo sem queixa formal, o partido admite “ter conhecimento de que Catarina Alves foi ouvida informalmente por membros do Bloco”.
De acordo com a resposta oficial do partido, estes membros “fizeram o que deve ser feito”: “Face a uma denúncia relativa a factos exteriores à vida do partido, envolvendo aderentes ou não aderentes, as vítimas devem ser encaminhadas para organizações específicas que as podem apoiar.”
No caso de Catarina Alves, apurou o Observador, terá havido um reencaminhamento para a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e para a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), mas não terá chegado a concretizar-se nenhuma queixa.
Esta é a política geral bloquista para alegações de violência ou assédio entre pessoas do Bloco, justifica o partido. “O Bloco pratica a tolerância zero com a violência. É à justiça que cabe apurar factos e punir abusos”, lê-se na mesma resposta, onde se garante que “as vítimas devem ser encaminhadas para organizações que as podem ajudar e a denúncia às autoridades deve ser encorajada”. Isso, garantem os responsáveis do Bloco, terá acontecido neste caso.
Ameaças e ofensas entre os jovens do Bloco
Mas esta questão acaba por cruzar-se com outro caso que, não estando diretamente relacionado com o de Luís Monteiro, faz parte dos argumentos usados para alimentar a contestação interna. Conforme o Observador apurou, uma parte das desfiliações de que se falava no Twitter por estes dias estará relacionada com uma queixa formal interna que foi enviada a 28 de abril para a Comissão de Direitos do partido e que deverá resultar numa expulsão.
Na carta, um grupo de militantes, que a linha oficial do partido diz ser inexpressivo em número e responsável por querer “criar o caos” no partido, apresentam uma queixa contra uma outra militante. Na origem dessa denúncia, estão ameaças a colegas de partido, acusações de assédio psicológico e de práticas transfóbicas.
Num “grupo de trabalho informal” de Whatsapp composto por aderentes do Bloco, a militante em causa terá feito ameaças físicas, assumiu que estaria a tentar hackear a conta de Instagram de Leonor Rosas, que faz parte da direção dos Jovens do Bloco, e terá sido sido ofensiva com uma pessoa transgénero — referindo-se de forma premeditada pelo nome anterior com que a pessoa era conhecida, algo que configura um gesto de violência dirigido contra as pessoas transgénero, e insistindo nas insinuações.
Ao Observador, Leonor Rosas, uma das visadas pelo ataque da militante entretanto denunciada, pede que o tema seja tratado com a “seriedade” devida. “Estou certa que as alegações terão a averiguação devida dada a seriedade do que é relatado”, diz, preferindo não fazer mais comentários.
A direção do partido confirma a existência desta carta: “Foi apresentada recentemente uma queixa à Comissão de Direitos sobre alegados comentários ofensivos num grupo de WhatsApp exterior ao Bloco. O assunto ainda não foi analisado pela Comissão de Direitos”, lê-se numa resposta enviada por fonte oficial do partido.
O processo não será finalizado para já, uma vez que o Bloco de Esquerda tem convenção marcada para os dias 22 e 23 de maio, em Matosinhos, e só depois de a direção ser eleita e tomar posse nesse momento é que se poderá dar continuidade à queixa.
No entanto, é provável a expulsão da militante em causa após a constituição de uma Comissão de Inquérito interna. O texto enviado à Comissão de Direitos aponta esta situação como a causa de algumas desfiliações, mas não só: como o Observador apurou, algumas das pessoas que saíram apontaram também insatisfação com a forma como o partido lidou com o caso de Luís Monteiro e com a organização interna do Bloco.
Direção desmente desfiliação em massa
Todos estes casos terão ajudado a alimentar a ideia de uma suposta onda de desfiliações — umas relacionadas com a referida queixa apresentada à Comissão de Direitos, outras justificadas com o caso de Monteiro e outras ainda relacionadas com organização interna do partido que estes militantes descontentes descrevem como “centralista”.
Ora, de acordo com a resposta oficial do partido, este conjunto de desfiliações existe mas não será numericamente significativa. “Desde o início do ano, o Bloco recebeu 632 novos aderentes”. No mesmo período, as desvinculações foram 117, “em linha com os números homólogos de anos anteriores”.
Em maio, quando os estilhaços do caso Monteiro começaram a ser mais evidentes, houve oito desfiliações. O Observador pediu os números de abril, o mês em que se registou a primeira vaga de críticas ao partido nas redes sociais, mas não foi possível obtê-los em tempo útil.
Depois das críticas internas e do caso Luís Monteiro, que terá agora sequência na Justiça, o Bloco ficou numa situação politicamente delicada. Quando confrontada com as possíveis repercussões na credibilidade do partido, sobretudo tendo em conta a importância que bandeiras como a luta contra a violência doméstica, a direção bloquista limita-se a dizer que “não” teme qualquer impacto. Os dias têm envolvido muito controlo de danos para o Bloco, mas o partido acredita que o assunto não trará feridas políticas.