A Democracia está em perigo! Ouvimos dizer isto constantemente, em particular a pessoas que aproveitam qualquer oportunidade para alinhar-se com Cuba, Venezuela ou, nalguns casos, Coreia do Norte. Por isso, desconfiando, fui verificar. E a minha conclusão é que, por incrível que pareça, a democracia está mesmo em perigo. E não é em Cuba ou na Venezuela, países onde isso é óbvio. É mesmo aqui na Europa.

Poderia ser coincidência, mas é um padrão que se tem vindo a repetir. Salva-se a Alemanha, porque aí os eleitores votaram como se espera, pelo menos até às próximas eleições. Senão vejamos: no Reino Unido, o Partido Trabalhista voltou ao poder com uma maioria como já não obtinha desde os tempos de Tony Blair. Os trabalhistas conseguiram  63,2% dos lugares no Parlamento com apenas 33% dos votos. Como se fosse pouco, conseguiram esta façanha perdendo cerca de meio milhão de votantes. Isto deveu-se essencialmente ao facto de uma fatia substancial dos eleitores do Partido Conservador terem decidido que este partido não era suficientemente conservador, ou de direita, ou ambos, e terem tranferido o voto para o Reform UK. É certo que a direita no seu todo perdeu cerca de 2 milhões de votos dos 13 que os conservadores conseguiram em 2019, mas ainda assim apresenta um resultado combinado de 11 milhões de eleitores, contra os 9,5 dos Trabalhistas. No entanto, devido às características do sistema eleitoral britânico, os cerca de 4 milhões de pessoas que votaram no Reform UK (14,3% dos votos), elegeram 0,8% dos deputados (um por aproximadamente milhão de votos). Todos sabemos que o sistema britânico, com os círculos uninominais, é propenso a estas coisas. Mas, não deixa de ser preocupante para a democracia que, quando uma parte substancial dos eleitores manifestam uma vontade clara de políticas ainda mais conservadoras, obtenham em troca um governo maioritário de esquerda, para não dizer o mais maioritário de trabalhistas que alguma vez pisou Whitehall.

Mas se a situação no berço da democracia parlamentar moderna se deve, em grande parte, a um sistema eleitoral que, no longo prazo e em conjunto com outras instituições, até demonstrou ser mais eficaz na manutenção de um regime democrático, em França, o sistema eleitoral  foi descaradamente desenhado para evitar certos resultados. E foi assim que, depois de uma vitória na primeira volta com 29% dos votos, o Rassemblement National, de extrema-direita, conseguiu 37% dos votos na segunda volta, mas apenas 21% dos lugares no ainda em disputa. A Nouveau Front Populaire, de extrema-esquerda, com 25% dos votos obteve 29,5% dos assentos, e o Ensemble pour la République, representante do extremo-centro, foi premiado com 31% dos mandatos. Dificilmente se pode afirmar que, no berço da democracia popular, a composição da Assembleia Nacional represente de forma fidedigna as preferências dos seus eleitores.

Esta tendência já vem de trás. Vejamos por exemplo o caso de Espanha que teve eleições no ano passado. Apesar da vitória do Partido Popular (33,1%), até poderíamos considerar que o resultado foi um empate, dada a curta distância a que ficaram os socialistas do PSOE (31,7%). Só que, com os 12,4% do Vox à direita, o PP poderia tentar fazer o que o Partido Conservador não pôde no Reino Unido: governar. Ou quase: pois ficaram a apenas 6 deputados de um governo de coligação. Só que o PSOE conseguiu juntar os apoios dos outros partidos e retirar o tapete ao PP. Mais além do custo para os contribuintes destes apoios, a que os nossos bolsos já estão infelizmente habituados, dá-se o caso caricato de a sobrevivência do governo de Espanha se dever à boa vontade de pelo menos três formações partidárias (duas da Catalunha e uma do País Basco) cujo programa defende a independência de estas regiões. É pouco crível que a maioria dos Espanhóis queira um governo dependente de concessões a apoiantes de uma secessão, mas é o que têm neste momento.

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Mas o caso que melhor ilustra este fenómeno, apesar da sua relativa insignificância na grande ordem europeia, é o caso português. Senão vejamos: em Portugal a direita obteve uma confortável maioria, mas uma em que os dois principais partidos mais ao centro virtualmente empataram. Os 28,8% do PSD e os 28% do PS são ainda mais próximos que o sucedido em Espanha mas, neste caso, o PSD poderia tranquilamente ter convidado o Chega para formar governo e os 18% de eleitorado sobravam para um governo de maioria. Não obstante, preferiu governar em minoria. Serve isto para ilustrar que, mesmo quando não existem quaisquer entraves do sistema eleitoral, o sistema político continua a impedir a entrada dos partidos da extrema-direita, direita popular, ou simplesmente direita (que cada um escolha o nome que mais lhe aprouver), apesar de estes representarem uma fatia do eleitorado cada vez maior. Quando os governos não reflectem a composição democrática do eleitorado, é óbvio que a democracia está em perigo.

Agora que este ponto está claro é o momento de fazer uma ou duas precisões: a primeira, que nenhum sistema eleitoral permite ordenar perfeitamente as preferências dos eleitores sempre que existam mais de duas alternativas. Não sou eu quem o diz. Quem o disse, ou melhor, demonstrou matematicamente foi um senhor chamado Kenneth Arrow na sua tese doutoral. Para quem o nome não diga nada, Arrow foi, anos mais tarde, galardoado com o Prémio Nobel da Economia. Isto significa que o sistema eleitoral perfeito não existe, e teremos de viver sempre com algum grau de “injustiça” democrática. A segunda precisão, que tudo o que se pergunta numa eleição é quem é que o votante quer que governe, e não com quem ele gostaria, ou não, que o seu partido se aliasse. Dito de outra forma, bem ou mal, o PSD até foi o partido que respeitou o mandato dos seus eleitores, ao contrário do que fez o PSOE e tentou fazer o PP em Espanha, ainda que o habitual seja que os partidos utilizem, em proveito próprio, a ambiguidade do mandato das urnas. No entanto, nada disto contraria a minha tese: o sistema eleitoral e o sistema político incumbente estão a fazer tudo o que é possível para que esta, chamemos-lhe nova direita, não chegue ao poder.

Existe uma terceira precisão, que não deveria ser necessária mas, infelizmente, é mais necessária que as anteriores: democracia é simplesmente um sistema de eleição do governo pela maioria dos cidadãos. É que o termo, até pela conotação sacrossanta que tem vindo a adquirir, é habitualmente distorcido para incluir outras instituições fundamentais no sistema político Ocidental. Instituições, como os tribunais ou a imprensa livre, que são geralmente mais úteis como travões ao excesso de democracia que descarrila invariavelmente no populismo, do que quando decidem, também elas, surfar na crista dessa onda. Provavelmente, por essa mesma confusão, porque muitos governantes nas últimas décadas, um pouco por toda a parte e por todo o espectro político, quiseram confundir todo o aparelho do Estado com o processo democrático para assim eliminar os poucos equilíbrios de checks and balances em proveito próprio. Sob o slogan “o que é democrático é bom” chegamos a uma situação em que um regime de populistas teme agora ser derrubado por outros populistas simplesmente porque a sua popularidade chegou ao fim. É esse e nenhum outro o motivo pelo qual todos os partidos tradicionais, a começar pela própria direita, se dedicam a formar cordões sanitários ou traçar linhas vermelhas.

E ainda que os dados demográficos dos resultados eleitorais não possam ser tomados em consideração sem alguma cautela, parecem revelar algo interessante. Que, mais que uma dicotomia entre direita e esquerda, está a formar-se na Europa (e provavelmente nos Estados Unidos) uma separação entre as classes altas e médias altas e as classes baixas. Estas últimas, como se sabe, são mais numerosas pelo que, também por este motivo, a democracia está em perigo.

Em França, o partido mais votado pelas classes baixas e médias baixas foi o Rassemblement National, o Ensemble foi o preferido das classes médias altas e, entre os votantes de classe alta, quem mais votos obteve foi a Front Populaire. No Reino Unido apesar de o Partido Trabalhista ter sido o mais votado em todos os segmentos de rendimento (também devido à divisão do eleitorado de direita por dois partidos), é nas famílias mais abastadas que essa diferença se acentua, tendo conseguido um 40% dos votos nas casas onde os rendimentos anuais superam as 50.000 libras, quando no resto dos agregados familiares se situou pouco acima dos 30%. Inversamente, o Reform UK foi notoriamente menos votado pelas pessoas que vivem em agregados que auferem mais de 70.000 libras anualmente. Repito, este números ainda são demasiado transversais para evidenciar uma clivagem entre os que têm muito e os que não têm nada, mas não deixa de ser surpreendente que aqueles partidos que, em teoria, dizem representar os humildes e oprimidos prosperem relativamente melhor entre os mais afluentes (e provavelmente influentes). Na prática, que sejam os partidos que mais abertamente defendem uma maior intervenção do Estado na vida privada aqueles que agregam uma maior preferência entre os que mais beneficiam dessa intervenção é muito menos surpreendente. Dir-se-ia que é sempre assim.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.