Na segunda parte deste tríptico, tentei explicar o porquê da conjuntura económica ser bastante proclive a contribuir para agravar o déficit democrático que se verificou nas últimas eleições na Europa Ocidental. Este pode resumir-se ao facto de a deterioração do chamado Estado do Bem-Estar ser um cenário já inevitável para pelo menos a próxima década. Nesta última parte dedicar-me-ei àquilo a que Thomas Carlyle chamaria a “condição e a disposição” da população. A perceber, mais além das estatísticas, o que é que moralmente está em jogo.

Citando o filósofo escocês e para que se entenda: “não é o que o indivíduo visivelmente tem ou quer o que constitui a felicidade ou a miséria para ele. Frio, fome, toda sorte de angústias, a própria morte se necessário, foi padecida com felicidade quando o coração com isso se consolava. É o sentimento de injustiça, aquilo que o indivíduo não suporta.” A pergunta que devemos fazer, portanto, não é se as condições económicas se vão agravar de tal forma que isso gere descontentamento. A pergunta é se esse agravamento acarreta alguma espécie de injustiça. A pergunta que Carlyle se fez é se “a condição da classe trabalhadora inglesa é errada; tão errada que homens trabalhadores e racionais não vão querer, e nem sequer deverão querer, ficar tranquilos? (…) E esse descontentamento é em si mesmo apenas loucura, como a forma que tomou?”

Poderia parecer que isto se refere aos distúrbios que começaram em Southpark e alastraram a grande parte do país durante as últimas semanas, mas não.  Não me parece que esses distúrbios tenham sido obra da “classe trabalhadora inglesa”. No entanto existe uma reflexão interessante e inesperada em relação aos mesmos. Pelo que fui lendo, as multidões de “rufias da extrema-direita” como Keir Starmer lhes chamou (e a imprensa adoptou chamar) nunca passaram de umas poucas centenas de pessoas, ao contrário do sucedido em 2011, quando milhares de pessoas saíram às ruas para protestar, pilhar e confrontar fisicamente as autoridades pela morte de um jovem negro às mãos da polícia.

Mesmo que possa existir uma certa tendência nos meios de comunicação para minorar o número de pessoas envolvidas, parece-me que, desta vez, a ordem de magnitude é muito menor. Em 2011 houve a lamentar 5 mortos e em 2024 até ao momento, felizmente, nenhum. O que é extraordinário nestes últimos distúrbios é a dureza das penas aplicadas a pessoas que simplesmente  incitaram outras através das redes sociais a cometer crimes, mas não participaram pessoalmente em nenhum desses distúrbios. Não sabendo se essas penas vão ser cumpridas, 20 a 38 meses de prisão a indivíduos por excitar a multidão nas redes sociais é inaudito. Fui investigar e em 2011 algumas pessoas foram condenadas a prestar serviços comunitários pelo mesmo crime.

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Não quero com isto afirmar que o governo olhou com mais benevolência os outros prevaricadores que estes, até porque o governo de então era Conservador, e, este, Trabalhista. Nem quero de forma alguma desculpabilizar as pessoas pelo que escreveram nas redes sociais. Por um lado, porque incitar pessoas a queimarem casas ou espancarem outros parece-me grave, e, por outro, porque os acusados em geral se declararam culpados dos crimes. Mas, para colocar a situação em perspectiva, e porque os tais rufias foram acusados de ser racistas e até de estarem infiltrados por organizações neo-nazis, parece-me extraordinário que os sucessivos governos de Sua Majestade, desde o final da Segunda Guerra Mundial, nunca tenham necessitado tomar tais medidas contra pessoas que efectivamente pensavam dessa forma. Organizações neo-nazis e racistas, como o British Movement e vários grupos skinheads que orbitravam ao redor da extrema-direita, foram um problema sério para as autoridades britânicas, em particular durante os anos 70 e 80. Nessa época, os tribunais britânicos condenaram muitos indivíduos a penas de prisão severas por cometer crimes atrozes, como espancamentos ou incêndios, em nome destas ideologias. No entanto, os ideólogos destes movimentos puderam viver a sua vida tranquilamente e, inclusivamente, escrever livros ou organizar eventos políticos onde negavam o Holocausto, defendiam a segregação racial ou idolatravam os nazis como heróis. Não seria difícil demonstrar em tribunal que, de alguma forma, estavam a incitar as pessoas a cometer crimes violentos.

E, no entanto, nunca pareceu suficientemente importante a nenhum governo até agora sacrificar a liberdade de expressão para condenar estes indivíduos. Indivíduos que, independentemente de estarem a defender uma ideologia abominável, gostemos ou não, eram normalmente suficientemente articulados para poder expor a sua interpretação da realidade de forma coerente. Estas pessoas, Colin Jones, John Tyndall, Nick Griffin, Michael McLaughlin, etc. são, na minha opinião, muito mais perigosas que as que foram agora condenadas a penas de 20 e 38 meses de prisão por retuitar (ou como se chame agora com o X) ou republicar notícias, adicionando comentários racistas ou que incitavam à violência. Parece-me óbvio que estes últimos são muito mais perigosos para o governo actual do que os neo-nazis alguma vez conseguiram ser para os anteriores.

Podemos argumentar que, com o aparecimento das redes sociais, a transmissão de mensagens inflamatórias e notícias falsas tomou uma proporção maior e mais imediata. Mas recordo que o muro de Berlim caiu antes do Facebook, a Revolução dos Cravos deu-se antes da Internet e a de Outubro antes de aparecer a televisão. Recuando no tempo vamos encontrar distúrbios anteriores à invenção da imprensa, para espanto de muitos jornalistas habituados a exercer o Quarto Poder. E o que parecerá mais incrível é constatar que nenhuma destas grandes transformações políticas foi bem sucedida à primeira, sendo normalmente o culminar da acumulação do descontentamento da população durante anos, às vezes décadas. Vaclav Havel não era mais inteligente ou corajoso que Dubcek quando conseguiu a Democracia na Checoslováquia, ou os Capitães de Abril que Humberto Delgado. Grande parte do sucesso ou insucesso destes actores deveu-se, ainda que não só, à disposição da população em geral. No Reino Unido a disposição de uma cada vez maior fatia da população é, em 2024, muito mais compreensiva em relação aos protestos de “rufias da extrema-direita” do que era em 1980 às ideologias neo-nazis. Por isso os sucessivos governos britânicos puderam dar-se ao luxo de deixar em liberdade negacionistas do Holocausto.

Quando digo que existe uma parcela cada vez maior da população britânica compreensiva com as motivações dos que saíram à rua não estou a afirmar que o estão ao ponto de querer, no curto ou no médio prazo, juntar-se a este tipo de protestos. De acordo com uma sondagem do YouGov, apenas 7% dos inquiridos apoiam os distúrbios. No entanto, 34% estão de acordo com as manifestações pacíficas de onde os distúrbios se originaram. Um terço ainda está longe de ser a maioria, mas é uma parcela suficientemente significativa da população para estar composta apenas por rufias de extrema-direita.

Isto leva-nos de volta a Carlyle e ao descontentamento dos trabalhadores ingleses de que ele falava. É preciso perceber que a definição de trabalhador de Carlyle não é a que Marx e os Marxistas adoptaram depois. Carlyle, como a generalidade dos seus contemporâneos, dividia a sociedade inglesa em duas classes – a classe alta e a classe baixa – e, também como os seus contemporâneos, pluralizava os dois conceitos – as classes altas e as classes baixas. Não obstante, na sua concepção de classe também estava presente outra distinção. A distinção entre classes trabalhadoras e não-trabalhadoras, sendo que a palavra que utilizava para as definir – “toiling” e “untoiling”  – acrescenta uma dimensão de esforço, de sofrimento, ao trabalho desempenhado. Deste modo, quando Carlyle se perguntava qual era a condição e a disposição dos trabalhadores ingleses, não estava a falar apenas das classes baixas, mas de todos aqueles, de classe baixa ou alta, que viviam do esforço do seu trabalho. Actualizando para os nossos dias, Carlyle refere-se àqueles que com o seu trabalho não só se sustentam como sustentam um Estado do Bem-Estar onde as “untoiling classes” não fazem mais que aumentar. Qual será a disposição destas pessoas à medida que os impostos (entre eles a inflação que é um imposto oculto) aumentem? Não me parece difícil adivinhar.

Se estamos de acordo com Carlyle, e eu estou, a única forma de o aumento do desconforto poder ser suportado pelos trabalhadores é se com isso não aumentar a sensação de injustiça padecida. Durante muito tempo o conceito de justiça social, com todas as imperfeições que acarreta, foi sendo suficiente para paliar qualquer sensação de injustiça que as classes trabalhadoras podiam sentir ao ser chamadas a pagar o Estado do Bem-Estar. Tanto a Social-Democracia (à esquerda e nos países protestantes) como a Democracia-Cristã (à direita e nos países católicos) procuravam convencer as classes trabalhadoras de que igualdade no acesso à educação, universalidade dos serviços de saúde ou uma rede de protecção social generosa para amparar aqueles que caiam nas margens da sociedade se justificavam na medida em que permitiam obter uma sociedade mais justa no seu conjunto, mesmo quando existia uma certa injustiça na forma em que cada indivíduo era chamado a sufragar esses gastos. Era o tal apelo a que o coração dos indivíduos estivesse no sítio certo. Mas, com o passar do tempo, não só muitos destes serviços prestados pelo estado aumentaram o seu custo e reduziram a sua qualidade, como cada vez mais funções foram sendo acrescentadas ao conceito de justiça social. Basta ver que tipo de medidas defendem hoje em dia os chamados Social Justice Warriors. Para além do ambientalismo, que foi algo que até já tinha uma grande aceitação popular muito antes de eles terem chegado (mas cujo custo nunca foi tão elevado), justiça social passou a significar uma série de políticas identitárias que em pouco ou nada contribuem para a coesão social. Apenas para aumentar o número de membros das “untoiling classes” e, o que é tão ou mais preocupante, sinalizar uma espécie de virtude aos que partilham esses valores que os identifica e separa das classes trabalhadoras.

Esta é a pira que o governo britânico neste caso, mas em geral todos os governos progressistas e alguns conservadores do Ocidente estão a atear. Impor à população um conjunto de valores que a parte trabalhadora dos mesmos se resiste a aceitar, ao mesmo tempo que é forçada a pagar por eles. Para Carlyle esta era uma questão moral, mas também pode ser explicada de forma biológica. No reino animal quando a relação entre dois seres vivos se estabelece de forma a que só um retira benefício tem o nome de parasitismo. Em todos os ecossistemas existe parasitismo e este é tolerado sempre que parasita e parasitado consigam encontrar um equilíbrio que sirva às duas partes para continuar a reproduzir. Mas quando o sistema entra em desequilíbrio e o parasita absorve mais recursos do que aqueles que o parasitado pode dispensar as consequências são desastrosas para ambos.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.