A estagnação intelectual aliada ao desinteresse democrático são  dois fatores para a não realização e incumprimento da maior missão de  Abril, o respeito pela Democracia.

Hoje, a Democracia é amplamente desacreditada, não pela sua  incapacidade de afirmação moral ou pela sua incapacidade de  sedução, mas sim, por aqueles que dela extraem os seus maiores  benefícios, a liberdade, nas suas múltiplas e complexas formas. Uma  espécie de aproveitamento indevido, uma extração corrupta de  benefícios e uma negligência generalizada face ao cumprimento dos  deveres incumbentes a cada um dos beneficiários.

A ilicitude com que agimos perante a Democracia, em muito, é um  reflexo sociológico que serve de elemento justificativo para a  estagnação socioeconómica da população portuguesa, a incapacidade  de afirmação, não somente pela rigidez do aparelho estatal, mas  também, pelo conformismo e pela falta de força para demover  obstáculos, que de forma indireta concedem-nos o prazer de usufruir  de todas as bondades e virtudes da Democracia, apesar de  reconhecermos a chacina à qual a vetámos.

A Democracia nas grandes nações demoliberais é detentora de um  respeito e devoção cuja origem é desconhecida, algo intrínseco e quase  transcendente; por seu lado, em Portugal é interpretada por grande  parte da população como uma conjetura idílica, materializada e  instrumentalizada para as liberdades de uns e opressões fiscais de  outros, quando, na realidade, corresponde à segurança e estabilização,  à personificação da capacidade de afirmação pessoal e de  desenvolvimento intelectual, permitindo a transformação e lenização  dos costumes, a escolha e o pensamento.

Grande parte desta conceção errante, provém da prática de atos ilícitos  por parte das mais altas patentes do nosso regime político, um  infortúnio, mas que nada mais é do que um reflexo claro e publicitado de  um mal enraizado na cultura nacional. É que a corrupção é  proporcional ao nível de poder de quem a pratica, e será algo constante  enquanto o tradicional ‘favor’ for tolerado pelos cidadãos, que eles próprios lhe dão  utilização constante sem reconhecimento de tal (desde a cunha para a  marcação de uma entrevista de trabalho, ao facilitismo em arranjar  uma consulta no centro médico ao desvio de centenas de milhares).  Um mal que muitas vezes, suscita ilegítimas reminiscências nas mais  captas das mentes, destacando-se constantes invocações da dignidade  intemerata do Estado-Novo em matéria de corrupção, algo que  considero um dos maiores reflexos da incapacidade de solidificação,  implementação e materialização dos pilares democráticos e do próprio  sentido democrático na população portuguesa.

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A implementação de um novo regime político, é algo que tem que ser  realizado de forma meticulosa, pormenorizada e acima de tudo, com  medidas que suscitem o interesse da população, que elucidem as  vantagens, que apresentem e consigam enraizar de forma clara os  crimes, as incoerências e as injustiças que caracterizaram o  antecessor. Isto, para situações como a nossa, pois, em países com  histórias demarcadas por maior ‘participação-cívica’ ou política, a  legitimidade e o respeito é factualmente reinstituído ou até mesmo,  passado de geração em geração, dentro de círculos mais íntimos.

O caso português é distinto, a transição para o regime democrático  trouxe consigo novidades que jamais haviam sido experienciadas pelas  gerações anteriores com tamanha intensidade, o que de certa forma foi  útil para estabelecer os primeiros pilares da concretização da  Democracia, em complemento, sobretudo, com a mágoa ainda viva da  guerra colonial. Contudo, passados 50 anos, são poucos os que ainda  vivem e que transportam consigo o sentido de mudança verificado, os  benefícios sentidos e as melhorias constituídas. Esses poucos, por  questões naturais, dia após dia, deixam-nos, substituindo-se por uma  geração que já nasceu em liberdade e que hoje, interpreta a realidade  do Portugal, com outras lentes, especialmente, a lente da descrença,  esta, alicerçada num falso sentido de estabilidade que o passado  autoritário conseguiu, com uma eficácia espantosa, tatuar nas entrelinhas da maior parte dos livros de história. Por vezes,  alimentando-se da nostalgia de um Império, noutros casos, na retidão  da obediência severa, algo que creio ser uma área que Freud adoraria  investigar, por se tratar de um fascínio de aqueles que jamais  obedeceram, senão, às legislações que asseguram a estabilidade e a  tranquilidade na Ordem Pública, à repressão e obediência servil.

Assim, com o passar dos anos, verificando-se um processo fracassado  de implementação e enraizamento da Democracia e do sentido de  dever democrático, na história, cultura e dentro dos próprios cidadãos,  considero, que estamos a atravessar uma crise de fé, uma crise de  crença em algo que é transcendente, a liberdade pluridimensional que  a Democracia concede a todos.

A falta de fé num regime político como a Democracia, é um problema  que assume padrões paradoxais, pela própria aproximação que pode  ser estabelecida entre qualquer religião e este modelo de governação  tão peculiar e vantajoso.

Por ótica doutrinária, a Democracia não é um regime que procure o  estabelecimento institucional de obrigações de veneração ou idolatria,  não procura a divinização, mas a humanização, contudo, no caso  português, é algo que faltou no seu período fundacional, cuja ausência,  revela-se hoje na inexistente obrigação moral de servir, cuidar e  prestar um serviço público desinteressado, de cumprir com os deveres  cívicos, enquanto, usufruímos constantemente das suas vantagens,  consagrado em direitos constitucionais.

É por certo que a ‘divinização’ de um qualquer regime, corresponde a  um mecanismo tradicionalmente presente nos autoritarismos e  totalitarismos, contudo, até que certo ponto, não fez falta à sociedade  portuguesa um claro manifesto das vantagens que a Democracia trouxe  consigo? Uma transposição de deveres a serem cumpridos para  assegurar o caminho para outro lado, no caso da Democracia,  assegurar a liberdade individual e coletiva, elementos que garantem o  desenvolvimento social e o progresso económico e intelectual do  Homem.

A fé, no campo da Democracia, não remete para qualquer Deus senão o  livre-arbítrio, no entanto, a obrigação em consciência deveria estar para cada um de nós, como alguns mártires e religiosos estão para os  fiéis de todo o mundo.

Fazer cumprir e sobreviver a Democracia, deveria ser um ímpeto maior  que o Homem, pois é o garante para o Homem viver em liberdade de  iniciativa, expressão, pensamento e escolha, sendo que sem estas,  vive-se num estado de transe, clausura, insegurança e de  subdesenvolvimento constante, reduzindo-se a capacidade humana a  um mínimo caracterizado pela sensação de que não há mais para além  disso.

Em 2023, acredito que a Fé na Democracia portuguesa, transformou-se  em indiferença, sobrevivendo do conformismo típico dos portugueses,  afirmando-se como o único aspeto positivo desta característica do  povo de um país de temperaturas moderadas e de gente passiva. No  entanto, é importante aproveitar o marco que 2024 terá na história da  Democracia portuguesa, para fazer aquilo que já deveria ter sido feito,  sensibilizar, incutir e informar a população das vantagens que  adquiriram, dos poderes que deveriam exercer de forma responsável e  acima de tudo, dos pecados de um passado que aparenta sedutor e  estável, que apenas representa um retrocesso civilizacional.

Abril fez-se de Homens, a Democracia, fez-se de sabedoria. Abril,  mantém-se por convenção, a Democracia, mantém-se por via do trato e  da vontade popular, assim, que voltemos a ganhar vontade de cuidar  meticulosamente do maior presente da revolução, a Liberdade, que  levantemos a voz e que respeitemos o garante da única divindade ao  nosso alcance, o Livre-Arbítrio.