É indiscutível que os sistemas de ensino, e em particular as escolas, estão a viver uma fase de grande agitação – sinónimo de convulsão, para uns, dinamismo e transformação positiva, para outros. Trata-se de um fenómeno global, que, em maior ou menor escala, Portugal, como todos os outros países com sistemas de ensino consolidados, está a experimentar.

Poderá existir a tentação de olhar para este momento como apenas mais um dos muitos períodos de agitação por que as escolas passam periodicamente. Compreende-se esse erro na análise já que dificilmente podemos considerar a escola como paradigma da mudança. Com alguma falta de imaginação, somos mesmo tentados a afirmar: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, todo mundo é composto de mudança, menos as escolas.

Uma escola avessa à mudança

De facto, se pedirem para descrever uma escola do final do século XVIII, a maioria de nós imaginará um edifício com uma ou mais salas, bancos, possivelmente carteiras, os alunos divididos por grupos, provavelmente grupos etários, um professor para cada grupo, posicionado à frente, em lugar de destaque, um quadro, um ponteiro e um sino, para marcar a hora de entrada e saída. E com certeza não andaremos longe da realidade.

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Na comparação com o sistema de saúde, o sistema de transportes, o sistema fiscal ou o sistema de segurança, o sistema de ensino é de longe o mais imune à mudança. De tal forma que, grosso modo, nestes dois séculos descortinamos apenas dois períodos distintos. O primeiro foi o período do nascimento, crescimento e afirmação. Durou mais de um século, sensivelmente até à 2ª Guerra Mundial, garantindo a escolaridade universal a todas as crianças dos respetivos países e, pouco a pouco, uma escolaridade básica cada vez mais longa e abrangente. O segundo foi o período da consolidação, apogeu e crise. Consolidação, com o reconhecimento da carreira docente, a par do reforço do papel dos sindicatos, a multiplicação das escolas superiores de educação, a entrada em cena da pedagogia e das ciências da educação, com uma influência crescente na vida das escolas. Foram décadas de entusiasmo, em que a escola se alcandorava a elevador social, ao mesmo tempo que respondia à solicitação permanente de mão-de-obra cada vez mais qualificada e a sociedade correspondia com financiamento e reconhecimento públicos.

Da massificação do ensino passámos para a aposta na qualidade. Os edifícios tornaram-se cada vez mais bonitos e envolventes, as salas de aula ganharam mobiliário mais ergonómico, o quadro verde passou a quadro branco e depois a quadro interativo, mas no essencial, a escola continuou a ser o que era: salas de aula, alunos divididos por turmas, um professor e um quadro em cada sala com uma turma, possivelmente, já sem necessidade do sino a marcar o início e o fim da aula. E lenta, mas inexoravelmente, a escola começou a perder o seu estatuto.

Os limites da melhoria incremental

Não é que não se ensine melhor. Longe disso. A aposta na formação dos professores, a introdução (de alguma) tecnologia, a influência da academia e o desenvolvimento das ciências da educação trouxeram uma melhoria muito significativa ao processo de ensino-aprendizagem. Hoje ensina-se melhor do que alguma vez se ensinou. Contudo, quando comparadas com as transformações radicais por que passam as sociedades modernas, as mudanças operadas nas escolas não foram mais do que uma “evolução na continuidade”.

No essencial as escolas não mudam! É uma verdade histórica e não há porque considerar que a fase de agitação que agora vivemos seja diferente do passado e venha a gerar grandes transformações. Mas não é assim. Pelo contrário, começam a ser cada vez mais evidentes os sinais de que, desta feita, estamos mesmo a viver um período não de transformação, mas de disrupção, com uma alteração de paradigma na educação.

Ainda não está claro qual será este novo paradigma, mas há quatro traços essenciais, linhas de força se assim as quisermos identificar, que podemos desde já realçar na mudança em curso e a que podemos aludir muito brevemente, sem qualquer intenção valorativa.

Quatro linhas de força da disrupção na educação

A primeira é o foco nos conteúdos dar lugar à centralidade das competências. De facto, não é nada de novo, dado se falar de competências há muitos anos, mas desta feita é para levar a sério. Os valores e competências já não serão apenas os 5% de ponderação da nota que ficam para o professor aplicar para o fim. Não, em breve saber o nível de competência dos alunos será tão ou mais importante que saber os conhecimentos que (de)tem nesta ou naquela disciplina, com tudo o que isso implica ao nível da organização do currículo e da formação dos professores. Em termos muito simplistas, trabalhar e avaliar o grau de pensamento crítico ou capacidade de trabalho em grupo de um aluno será mais importante do que trabalhar e avaliar os seus conhecimentos em inglês ou matemática. Não é que deixe de ser necessário que o aluno detenha conhecimento. É expectável que aluno seja conhecedor, até porque sem conhecimento dificilmente haverá pensamento crítico. Mas o conhecimento só por si perdeu valor, passou a ser instrumental na aquisição de competências e, assim sendo, definir um extenso corpo de conhecimentos que todos devem aprender (currículo comum) torna-se redutor e inconsequente.

O segundo traço, em certa medida consequência do primeiro, é a transição de uma cultura de resultados para uma cultura de processos. Numa cultura de resultados, o foco da aprendizagem está naquilo que o aluno sabe em determinado momento, e que fica para sempre fixado numa nota. Numa cultura de processos, o foco da aprendizagem está na forma como o aluno aprende, desde logo porque as competências se desenvolvem com a prática, por oposição aos conteúdos que muitas vezes não são para os alunos mais do que teoria. Numa cultura de processos, o caminho é tão ou mais importante do que a meta, o meio é um fim em si mesmo. Nesta ótica, não faz mais sentido “dar a matéria” na sala de aula e marcar o trabalho de grupo como TPC; a prática pedagógica tem de ser virada do avesso, pois há inúmeras formas de o aluno aceder aos conteúdos fora da sala de aula e o trabalho de grupo é uma experiência de aprendizagem demasiado valiosa para o professor perder.

O terceiro traço resulta dos anteriores e pode ser resumido no primado da aprendizagem sobre o ensino. Aquilo que o professor ensina tenderá a perder relevância, na exata medida em que aquilo que o aluno aprende será cada vez mais relevante. E uma e outra estarão cada vez mais desligados ou, melhor dito, já não será o ensino a gerar aprendizagem, mas sim a aprendizagem a suscitar ensino. Parece uma simples transformação semântica, mas é bem mais profunda. Desde logo, porque a aprendizagem ocorre em qualquer lugar, enquanto o ensino vive fechado na sala de aula, mas, paradoxalmente, a boa aprendizagem requer muito trabalho e, tal como o ensino, não pode ser deixada ao acaso.

O quarto e último traço é aquele que ainda é menos visível, mas que acabará por emergir enquanto resposta e consequência dos anteriores. Trata-se da transformação da escola tal como foi criada e a conhecemos. A escola tradicional, dividida em salas de aula, organizada em turmas, com blocos de aulas e professores atribuídos em função de disciplinas não consegue (cor)responder a uma educação centrada nas competências do aluno, que valoriza as experiências de aprendizagem, em detrimento da acumulação de conteúdos. A boa notícia é que a aceleradíssima evolução tecnológica que estamos a viver, pese embora os perigos que acarreta, traz com ela instrumentos e ferramentas que permitem pilotar esta disrupção. Num futuro não tão distante – nalguns lugares, já é realidade – aprender em qualquer lugar, a qualquer hora, ao seu ritmo, será uma realidade para todos os alunos.

Administrador do Externato Marista de Lisboa

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.