Quantas obras se podem gabar de terem atingido quase um milénio de publicações sucessivas? Os tratados filosóficos gregos, a poesia latina, os textos bíblicos representam grande parte da literatura que continua a ser lida após séculos da sua criação. A fábula que aqui vos trazemos, hoje tão conotada com uma história infantil, já foi considerada um clássico incontornável da nossa História, apenas dirigido a um público de proveta idade.

O Romance da Raposa tem uma longa tradição escrita e destaca-se como uma compilação de fábulas medievais, protagonizadas por uma raposa matreira. No ano de 1148, o poeta flamengo Nivard de Gand escreveu em latim o primeiro vestígio destas narrativas, numa obra intitulada Ysengrimus, nome do lobo arqui-inimigo da raposa Renard. O compêndio tinha como principal inspiração as fábulas de Esopo e destinava-se a satirizar a sociedade medieval e a sua hierarquia vincada. Todos os personagens têm atitudes muito humanas e a linha narrativa destinava-se a ser acompanhada apenas pela audiência adulta, a fim de transmitir uma moral cívica e religiosa. Algumas das cenas contadas na obra centram-se nos pecados mortais, como o adultério, e a remissão dos mesmos através das boas ações. Por esta razão, nos finais do século XII assistimos à sua tradução para francês arcaico, feita por vários monges e escrivães.

Pierre de Saint Cloud foi o primeiro a adaptar a história para a realidade, língua e costumes franceses, deixando claro que cada animal representava um quadrante da sociedade. A raposa e o lobo simbolizavam a nobreza, os cavaleiros que combatiam nas cruzadas, o leão o rei, a galinha o povo, o burro os clérigos, o camelo os juristas e o urso os senhores feudais. Havia uma influência direta entre estes animais e a realidade, sendo reconhecíveis como caricaturas de soberanos e altas figuras da Igreja. Bernard, o burro, assemelha-se ao célebre Doutor da Igreja São Bernardo de Claraval, que foi justamente canonizado em 1174, ano da primeira adaptação para francês do Ysengrimus. Durante o período entre este ano e 1205 foram escritas aproximadamente quinze versões do Roman de Renard, principalmente em França. A palavra utilizada para designar uma raposa em francês arcaico era goupil, mas através da tradução e adaptação destas fábulas, o nome da raposa, Renard, passou a fazer referência ao próprio animal, na língua francesa atual.

As narrativas continuaram a fazer parte da tradição escrita e oral francesa ao longo da Idade Média e Moderna, mas foi no ano de 1668 que voltaram a encontrar eco na literatura. Jean La Fontaine escreveu as suas Fábulas durante o final do século XVII, baseando-se na longa herança de Esopo e de Nivard de Gand. Fábulas como A Cegonha e a Raposa, ou A Raposa e as Uvas, estão intimamente ligadas a Renard, apesar de estes contos se dirigirem a um público infantil, ao contrário dos textos medievais.

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Em 1909, a escritora Jeanne Leroy-Allais, reinterpretou a narrativa original e trouxe à luz as suas moralidades e comédia, com ilustrações do célebre artista Benjamin Rabier, sempre a pensar numa audiência infantil, à imagem de La Fontaine. Esta última obra estava ilustrada com desenhos de Benjamin Rabier, para melhor se adaptar ao seu público.

Aquilino Ribeiro viajou para Paris em 1910, ingressando posteriormente no curso de Filosofia, na Universidade de Sorbonne. Nesta época poderá ter conhecido pessoalmente Rabier, a sua linha clara e o seu talento, que estavam tão bem expressos em Le Roman de Renard. A sua estadia pela capital francesa prolongou-se até 1915, data em que regressou a Portugal, devido à I Guerra Mundial. Apesar disso, nunca perdeu o contacto com o célebre ilustrador. No início dos anos 1920, o escritor dedicou-se à produção do Romance da Raposa, uma adaptação da antiga história medieval, onde sobressaiam características únicas da língua, tradição e costumes portugueses. A língua portuguesa empregue estava repleta de expressões e referências da Beira Alta, o vestuário era facilmente identificado com o usado nas regiões portuguesas de lavoura, onde se via o chapéu de aba larga e a jaqueta.

Para Aquilino, a epopeia de uma raposa que se revolta na sociedade serve de mote para criticar a sua época. Na dedicatória que deixou ao seu filho mais velho, Aníbal, Aquilino dizia: “Representa, tal como vem da fábula, no guinhol com os outros bichos, a todos os quais dei voz, com licença de mestre Esopo. E dei-lhes voz para melhor manifestarem o que são, e nunca para com eles aprendermos a distinguir bem e mal, aparências ou estados, pouco importa, atribuídos exclusivamente ao rei dos animais, como nos jactamos de ser.” Assim, compreendemos que o autor se baseou em Esopo e em Le Roman de Renard para completar este testemunho publicado em 1924.

O editor da Editora Bertrand, Júlio Monteiro Aillaud, estava disposto a publicar o livro, mas com as ilustrações de Benjamin Rabier. Sabemos que grande parte dos custos desta obra foram dispensados no trabalho de Rabier, o que levou Aquilino Ribeiro a afirmar mais tarde: “Mestre Benjamin Rabier, francês, o primeiro lápis de todas grandes revistas parisienses da especialidade, que expressamente fez os desenhos a cores. Custaram uma fortuna ao meu sempre saudoso editor Júlio Monteiro Aillaud.” Benjamin Rabier já se tinha tornado um artista reputado e multidisciplinar, que estendia o seu trabalho ao cinema, teatro, ilustração e publicidade, por isso é compreensível que os seus honorários correspondessem à fama que granjeara.

Renard continua a simbolizar o arquétipo de rebeldia, apesar das mudanças civilizacionais da Humanidade.