Em maio celebraram-se 115 anos do nascimento do artista belga Hergé, o famoso criador de Tintin. Talvez por esta razão se realizou na Fundação Calouste Gulbenkian, entre outubro de 2021 e janeiro de 2022, uma exposição retrospetiva da sua obra. Lá encontrávamos os trabalhos de desenho e pintura que desenvolveu desde os anos 1920. Na última sala podíamos reparar em vários nomes que o influenciaram, entre eles um denominado Rabier. Mas quem foi este insigne artista, que hoje proclamamos como um dos pais da banda desenhada?

Benjamin Rabier nasceu no dia 30 de dezembro de 1864, em La Roche Sur Yon. A sua família tinha origens humildes, tendo-se mudado para Paris em busca de melhores condições de vida, quando o filho contava apenas cinco anos de idade. Rabier cedo demonstrou um talento proeminente para a ilustração, como comprovou o Prémio de Desenho da Cidade de Paris, que recebeu dois anos consecutivos, em 1879 e 1880.

Apesar da virtude artística que demonstrava, começou a trabalhar ainda em 1879, para ajudar a sustentar a família. Nessa época iniciou atividade na área da contabilidade, desenvolvendo funções no banco Caisse Commerciale et Industrielle de Paris e pouco depois no banco Caisse des Dépôts et Comptes Courants. Este ofício seria algo que o acompanharia até 1910. No ano de 1885 foi enviado para o 33º regimento de infantaria, na cidade de Arras, a fim de cumprir o serviço militar obrigatório. Rapidamente alcançou a patente de sargento-mor. Mas a sua técnica e valor artístico não passaram despercebidos, o que o levou a ser encaminhado para Paris com a missão de copiar aguarelas de batalha. Nessa ocasião travou conhecimento com Emmanuel Poiré, mais conhecido pela sua assinatura Caran d´Ache.

Em setembro de 1889 foi dispensado do serviço militar e estabeleceu-se em definitivo na cidade de Paris. Começou por se tornar contabilista na grande superfície comercial Le Bon Marché, passando para o mercado dos Halles e o Nouveau Cirque. Benjamin Rabier fez um pouco de tudo antes de assumir a profissão que definiria a sua carreira. Enquanto desempenhava estes trabalhos, foi convidado por Caran d´Ache para colaborar em algumas revistas de renome no meio artístico francês, de que são exemplo a Chronique Amusante e a Gil Blas Illustré. A crítica foi unânime, possibilitando a publicação dos seus trabalhos em edições anglófonas de grande importância, como a norte-americana Puck ou a inglesa Scraps. Nestas participações havia um pormenor que se destacava, a extrema minúcia e desenvoltura de Rabier no retrato da vida animal. Apesar de estar dividido entre a sua arte e a ocupação laboral, continuou a progredir profissionalmente nos Halles.

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Nos anos 1890 participou em vários álbuns coletivos, mas foi em 1897 que criou o seu mais famoso personagem, Tintin-Lutin, uma criança ruiva indisciplinada, independente e aventureira. Tintin-Lutin marcava definitivamente a sua técnica, a ligne claire. A linha clara serviu de inspiração aos ilustradores do século XX e criaria uma rutura com o método utilizado até então. Esta forma de desenhar distinguia-se pelo traço vincado e pela aplicação de cores vivas e sólidas. Durante este século vemos o aperfeiçoamento do mesmo estilo com a ilustração de Fables de La Fontaine, obra publicada em 1906. Foi através deste contributo, que o jovem Georges Remi, cujo o nome de autor seria Hergé, teve contacto pela primeira vez com Rabier e o seu estilo, afirmando mais tarde: “Maravilhava-me com a firmeza do traço, com a isenção das cores aplicadas numa demão; durante muito tempo considerei Rabier o máximo da criação artística, muito acima de Rubens e de Rembrandt”. Ou seja, o que fascinava o desenhador era a linha clara, que mais tarde popularizou com Les Aventures de Tintin, publicadas a partir de 1929. A inspiração na imagética e no traço de Rabier foi tão importante para Hergé, que até o nome e a fisionomia do personagem principal se mantiveram inalterados. A primeira aventura de ambos os heróis foi em Moscovo, apesar de as narrativas serem bem diferentes.

No início do século XX o prestígio de Benjamin Rabier era já incontestável, depois da exposição das suas obras no Salon de l’École Française, em 1907, e no Salon du Peuple, que deu origem a um catálogo produzido pelo escritor Guillaume Apollinaire.

A edição de Le Roman de Renard, adaptado por Jeanne Leroy-Allais e ilustrado por Rabier, em 1909, veio juntar-se a Fables de La Fontaine como obras unicamente protagonizadas por animais no historial deste artista, o que marcaria o seu percurso.

Depois de abandonar o trabalho como subinspetor nos Halles, em 1910, empenhou-se mais na escrita e produção de teatro, de que é exemplo a peça Le Chateau des Loufoques. A resposta aos sucessivos sucessos fez-se anunciar quando foi nomeado Cavaleiro da Legião de Honra em 1913, pela República Francesa. A partir desta época, iniciou uma carreira como ilustrador publicitário, dando primazia à representação animal. Em 1920 criou a sardinha da marca de conservas Béziers e no ano seguinte seria adotado um dos seus animais para ilustrar a marca La Vache qui Rit. De facto, a sua biodiversidade lembrava a escola artística do escultor e investigador Bernard Palissy, que deixou um enorme vestígio na sociedade do século XVI, replicado nos séculos XVIII e XIX.

Durante os anos 1910 criaria filmes animados, ao lado de Émile Cohl. Les Aventures de Clémentine, filme lançado em 1916, foi um passo revolucionário neste género em França. A partir de 1923 até 1939, ano em que Rabier morreu, a 10 de outubro, o autor produziu os dezasseis álbuns das aventuras do pato Gedéon. Foi durante essa época, em 1924, que ilustrou o Romance da Raposa, da autoria de Aquilino Ribeiro.