Há divindades que tiveram um único profeta. Não é o caso de Trotsky que – assumindo-se com uma espécie de Parvati, pervertida com um só braço, o da destruição, pelo qual promoveu a salvação – substituiu Deus e teve uma legião de arautos (da desgraça). Em Portugal, destacam-se Francisco “tele-evangelista” Louçã e Mamadou Ba, incansáveis ilusionistas, e umas quantas aspirantes a pitonisas que nunca foram mais do que profanas e desprovidas de qualquer respeito pelo valor espiritual.
Neste vídeo, Mamadou Ba demonstra a necessidade de instrumentalizar o preconceito: a evangelização socialista exige a hegemonia cultural. Como é que se consegue esse domínio de pensamento, principalmente em regimes democráticos e pluralistas? Através da “tal” revolução permanente, duma guerrilha ininterrupta onde a classe, a raça, a orientação sexual, a identidade do género, etc., são meras balas e projécteis e a violência física um meio de combate que, travestida como um ideal ideológico, deve, a todo o custo, reescrever e criminalizar, inclusive retroactivamente, a história. Onde se desenrola este conflito? Em todo o lado. Das escolas (principalmente primárias) às universidades, na comunicação social, nas redes sociais e em todo e qualquer espaço público visando um clima de medo e de terror que conduza à subjugação da liberdade. Porque é essencial a dominação ideológica? Porque, tal como afirmou Nikolai Berdyaev, o socialismo é uma fé messiânica e o Estado socialista assemelha-se a um estado teocrático autoritário. Como tal, nem a social-democracia será tolerada. Quando é que termina esta luta? Jamais! Mesmo depois de se acabar com a pluralidade e com a democracia, mesmo depois de o socialismo ser a religião oficial do Estado será necessário eliminar os possíveis dissidentes. Não. Não pensem que o BE oferece redenção. O BE exige condenação!
Entendamo-nos. A ideia de que certos indivíduos membros da espécie humana, pelo facto de partilharem alguns atributos arbitrários – como a cor da pele ou o órgão genital –, se esgotam em predicados grupais, sendo, por isso mesmo, moralmente (quando não materialmente) obrigados a pensar e comportar da mesma forma, a escolher as mesmas coisas e a prosseguir os mesmos planos de vida, encurralados numa favela tribalista da qual não podem sair sem trair, excomungados para a eternidade, a honra do clã ao qual devem obediência perpétua, é uma ideia objectivamente racista e sexista.
O racismo e o sexismo começam quando os seres humanos deixam de ser tratados como indivíduos autónomos, singulares e indelegáveis e são ferozmente colectivizados num kolkhoz ideológico em nome do cumprimento de um qualquer Plano Quinquenal identitário do qual terão de ser os proletários (se possível) voluntários ou (se necessário) involuntários. Actualmente, esta apófise ridícula de tempos antigos é advogada pelos “anti-racistas” modernos que, cooptados por si mesmos, julgam representar todas minorias étnicas, e pelas “feministas” contemporâneas que, eleitas por si mesmas, julgam representar todas as mulheres, condignamente infantilizados uns e outras, colonizando e canibalizando os seus respectivos “lugares de fala”, agora docilizados pelo discurso e, sobretudo, pelo(s) silêncio(s) dominante(s).
Entendendo este incansável mecanismo de des-individualização sistemática, entenderemos mais facilmente por que razão as causas identitárias são tão politicamente sedutoras: porque, por um lado, na medida em que retalham e amassam, a foice e martelo, o indivíduo até que, finalmente simplificado, caiba no leito de Procrustes de uma categoria grupal politizável, dispensam o respeito pelas oblíquas tribulações dos indivíduos; e, por outro, na medida em que incidem sobre atributos humanos tangíveis simplificados, dispensam a confissão da nossa ignorância constitutiva relativamente às aspirações intangíveis (e, portanto, dificilmente politizáveis) de que são feitos os indivíduos. Toda a colectivização do indivíduo é, pois, uma forma de inquisição: inquisitio: simultaneamente tribunal supressor de heresias (o indivíduo é a heresia suprema) e “inquirição”, “perscrutação”, “interrogação”: todo o colectivista identitário é um implacável bisbilhoteiro da alma humana, cidadela abaluartada e inexpugnável do indivíduo. Todo o colectivista identitário é um Torquemada hodierno que, na impossibilidade de lhe chegar à alma, se vê condenado a raspar a superfície do humano, reduzindo o indivíduo ao seu corpo: o indivíduo é a sua côdea epidérmica ou o seu penduricalho sexual. O racismo e o sexismo não passam da apologia, mais ou menos confessada, deste vínculo sinistro.
A discordância (educada) e a troca de opiniões é a base da pluralidade. Nas relações humanas nunca existe apenas uma perspectiva ou visão. Tudo deriva da liberdade e da responsabilidade inerente ao comportamento humano. E este será sempre complexo.
Mas o trotskismo é uma religião intolerante que não admite concorrência nem complexidade. Daí que seja possível chegar rapidamente à conclusão que para os arautos da desgraça é fundamental que o racismo tenha cor e enquadramento político. É assim que se acaba com a concorrência. É assim que se elimina o indivíduo. É assim que se extingue a liberdade.
Vicente Ferreira da Silva é Professor convidado EEG/UMinho e Miguel Granja é Mestrando em Ciência Política, EEG/UMinho