Desde há muito, que entendo que a realidade e a perceção de cada um daquilo que é a realidade são coisas distintas. Vim também a entender que essas realidades (a da coisa em si e a da respetiva perceção) têm importância significativa na vida em comum e em sociedade.

A Carta das Nações Unidas, de 1945, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, a Diretiva 2000/43/CE do Conselho, na sequência da revisão operada pelo Tratado de Amsterdão, de 1997, que acrescenta à proibição da discriminação em função da nacionalidade, no art. 13.º do Tratado da Comunidade Europeia, a proibição da discriminação também em função da raça, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, a Constituição da República Portuguesa, de 1976, a Lei 134/99, a Lei 93/2017, entre outras, são exemplos de textos legislativos com normas jurídicas que fazem dos comportamentos racistas, comportamentos marginais, danosos às pessoas, que ofendem com esses comportamentos e à sociedade como um todo, concluindo que são comportamentos censuráveis, ilícitos, inclusive sob a forma de responsabilização civil e criminal.

Desde há muito que a sociedade europeia tem vindo a marginalizar os comportamentos racistas. Todavia, os comportamentos racistas são ainda demasiado frequentes e muito raramente censurados.

Racismo, onde quer que exista, seja em África, na Ásia, na Oceânia, na América, na Europa, ou nos Polos, é para acabar. Todavia, observo que as pessoas que têm comportamentos racistas, ou os apoiam ativa ou passivamente, parecem não ter a perceção de que em Portugal, hoje, os comportamentos racistas são proibidos e criminalizados.

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Observar que o racismo na perceção dessas pessoas não é um comportamento marginal, proibido, é a prova de que o Estado falha na censura do comportamento racista.

São da área da Educação e da Justiça, as instituições em que o falhar na defesa da dignidade da pessoa humana, no que aos comportamentos racistas diz respeito, mais significado e importância têm para a perceção da proibição, marginalização e censura desses comportamentos.

O racismo é uma tradição já com séculos na Europa. Por muitas leis que se façam, se a perceção for de que tais leis, na prática, não existem, é certo que os agentes de qualquer comportamento de racismo estão à vontade e não serão censurados com a força do Estado pelo ilícito que cometeram. A tradição permanece e resta à sociedade, sem os recursos do Estado, vencer estes comportamentos marginais.

Por outro lado, na perspetiva da vítima, a experiência e a perceção de que os comportamentos racistas não são censurados constrói a errada e injusta, já que exagerada, conclusão de que todos os que podem ser racistas, o podem continuar a ser, à vontade, e muito provavelmente o são. Esta perceção, que estende ao todo, o conhecimento que se tem de uma parte, é aumentada e confirmada pelas experiências que conhecemos de outras pessoas vítimas de racismo.

Esta experiência é ainda de maior escala se, por exemplo, vivermos num aglomerado habitado por pessoas de pele mais escura e percebermos que só estas urbanizações é que são “encerradas” pela polícia – “ninguém entra, ninguém sai, nem para ir para o trabalho” – para cumprimento de mandatos que, após buscas efetuadas em várias casas daquela urbanização “encerrada”, no final, resultam em menos de meia dúzia de suspeitos. É um exemplo do que associamos a aglomerados habitacionais de, principalmente, pessoas de pele mais escura. E é exemplo do menor respeito que é prestado às pessoas que ali vivem.

Na prevenção do crime e nas operações policiais, a raça em nada deve importar, nem na ponderação da operação, nem na sua execução, ou na atitude de cada polícia. A evidência mostra que o fenómeno do crime ocorre em todas as camadas da sociedade, sem distinção de idade, estatuto social, nacionalidade, ou do tom da pele. Se se “encerrasse” um outro bairro que não fosse habitado, maioritariamente, por pessoas de pele escura, e se vasculhassem várias das respetivas casas, talvez se encontrasse a mesma meia dúzia de suspeitos de crime. Mas isso não acontece, porque talvez seja mais valorizado, neste caso, o prejuízo que esse “encerramento” representaria para a dignidade das pessoas inocentes.

Os comportamentos manifestos de racismo são a minoria de uma minoria. Mas tão prejudiciais como estes, são os mais frequentes, daqueles que censuram um jogador com comportamentos racistas vindos das bancadas; ou do julgador, ou do procurador, que se convence da culpa de um homem ou de uma mulher porque não se coloca, nem procura colocar-se, no lugar do outro que está a ser julgado –  partindo eu do pressuposto, de que o liberalismo, mais do que a República e a democracia, obrigam a que o julgador sinta que está a julgar cidadãos com os quais podia trocar de lugar, cidadãos com o mesmo estatuto que o seu.

Há umas semanas, foi notícia que uma das medidas do Estado no caminho de erradicação do racismo é monitorizar a liberdade de expressão de um corpo profissional – o objetivo será minimizar os comportamentos racistas desse mesmo corpo profissional. Critico esta medida, que é lamentável e paradoxal.

Lamentável e paradoxal, porque, ao procurar reduzir os comportamentos de menor respeito para com determinadas pessoas, está a reduzir igualmente o respeito pelos direitos fundamentais das pessoas que integram esse corpo profissional, transformando todo um corpo profissional num grupo “suspeito” de comportamentos que são apenas de alguns. O que importa é que estes profissionais, no conjunto da sua atuação, adotem comportamentos de igualdade de respeito por todos os cidadãos. E, aqui, o Estado tem todo o poder e legitimidade para o impor, se o quiser.

Esta monitorização agora proposta revela o contágio e os sintomas de “certa luta contra o racismo”, que não é o caminho que resulta na erradicação do racismo. A verdadeira luta contra os comportamentos racistas é a luta pela dignidade da pessoa humana. E é um caminho que deve ser feito de liberdade universal e responsável.

Se é preciso censurar, censura-se quem é digno de censura, na medida do comportamento censurável. Deve-se, sim, censurar as pessoas, profissionais ou não, de qualquer setor, de qualquer atividade, que tenham comportamentos racistas pelos comportamentos racistas que tiverem.

O racismo é proibido e criminalizado, porque o comportamento racista revela desrespeito pela dignidade da pessoa humana de uma forma própria e não confundível com outros atentados à dignidade da pessoa humana.

A ofensa com motivação racista revela a necessidade de prevenção, de impor o respeito pela dignidade da pessoa humana. Está em causa o dever de reconhecer a igual dignidade do outro, ainda que este aparentemente seja diferente dos outros que encontro no local onde nasci.

A sociedade onde falte, ou não seja promovido, o respeito pela dignidade da pessoa humana é uma sociedade que sofre da pior corrupção.

Daí não apenas existirem as leis, mas também a necessária atitude quotidiana, adequada e sistemática da exigência do respeito pela dignidade da pessoa humana, que deve sempre, necessariamente e em todas as oportunidades, ser reconhecida e valorizada. A perceção de queJustiça é feita quando alguém tem comportamentos racistas é o melhor resultado para quem luta contra os comportamentos racistas.

A  Justiça deve ser feita quando há comportamentos racistas, a bem da Justiça pela dignidade de todas as pessoas. E não apenas quando o racismo se mostra num crime tão hediondo como o de homicídio, que todos devemos lamentar.