A manchete de segunda-feira do jornal Público, sobre os contratos de associação, é curiosa de uma forma perversa. Na origem das democracias ocidentais está o primado do cidadão. O Estado é uma construção social que serve apenas como modo de organizarmos a nossa vida em comum. O Estado somos todos nós e age através de pessoas que nós escolhemos para nos representarem. É por isso absurdo esta ideia de uma guerra entre o Estado e partes da sociedade. Absurdo em termos filosóficos, mas muito útil nas lutas pelo poder. O recurso à metáfora futebolística para descrever a relação entre o Ministério e um grupo de colégios (os com contrato de associação) é por isso curiosa, mas bastante perversa.

Pelo lado da associação que representa os colégios, de que eu era presidente à data dos factos, nunca se tratou de uma competição ou luta pelo poder. Tratava-se de denunciar uma opção de política educativa errada, baseada em premissas de facto inexistentes, que tinha como único fundamento marcar uma posição ideológica. E não há dúvida que, como sector, sentimos na pele a força de quem pode, quer e manda, e a ausência de apoio das instituições que deveriam funcionar como estabilizadores sociais.

Os contratos de associação não chegavam a 3% dos alunos no sistema de ensino português e representavam pouco mais de 20% do ensino privado. Mas eram, na sua esmagadora maioria, um exemplo de sucesso educativo com alunos de todas as origens sociais. Eram a demonstração de que todos podem aprender e deram um contributo inestimável para o desenvolvimento do ensino público, sendo muitas vezes usados por Ministros da Educação (até do PS) como exemplo de boa prática a ser seguida por outros. Claro que havia colégios melhores que outros. Mas o que funcionava neste setor que não funciona no Estado é que quando um colégio começava a não criar valor perdia alunos e perdia financiamento. Se não fosse capaz de melhorar, acabava por desaparecer. Isto sempre foi um estímulo muito forte para as direções. O apoio social a estes colégios ficou claro nas enormes manifestações que se seguiram ao anúncio do fim. Foi com orgulho que acompanhámos este movimento de pais, professores e diretores. E foi com tristeza que vimos a cegueira ideológica de quem podia decidir diferente.

Dissemo-lo na altura e mantemo-lo hoje, o tempo dos tribunais não é o tempo da educação. De que vale ganhar passada uma década, se o colégio foi destruído ou se transformou em algo diferente? O que todos queremos e sabemos fazer é educar; não é litigar.

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Mas, em todo o caso, esclareço que a questão jurídica não chegou ao fim. Cantar vitória antes de tempo, além de poucochinho, pode ser precipitado. As ações que foram decididas têm a ver, maioritariamente, com a questão de saber se o despacho que criou uma limitação à inscrição de alunos nestes colégios era legal. A questão de fundo ainda não está fechada. Não há dúvida que a esperança é pouca, mas tem havido juízes e delegados do Ministério Público que consideram que temos razão. Veremos como tudo isto acaba, quando verdadeiramente acabar.

Gostava também de esclarecer um ponto da notícia que é muito importante ficar claro. Os contratos de associação representaram para o contribuinte uma poupança de milhões de euros ao longo dos anos. É verdade o que diz o Ministério, de que diminuiu 100 milhões de euros nos custos com os contratos de associação. Mas o que não diz, é quanto aumentou o custo nas escolas públicas para receberem os cerca de 30 mil alunos que tiveram de sair do privado. O Ministério não diz, mas as contas são fáceis. Segundo o Tribunal de Contas, em 2010 o custo de um aluno no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e no ensino secundário era, em média, de 4921 euros. No mesmo ano, o Ministério da Educação pagou, em média, por aluno em contrato de associação (nestes níveis de ensino) 4090 euros. Ou seja, uma diferença de 20%! É certo que ambos os valores médios se alteraram, mas a diferença manteve-se, pelo menos, igual (o contrato de associação teve um corte para 3640 euros). Assim, se é verdade que o governo diminuiu em 100 milhões de euros os custos com os contratos de associação, a verdade é que essa “poupança” teve por contrapartida um aumento de pelo menos 120 milhões de euros nos custos com escolas públicas.

Tive a felicidade de ser presidente da AEEP num dos contextos históricos que mais marcou positivamente o ensino em Portugal nas últimas décadas: a negociação e aprovação do novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo em 2013 e o alargamento da autonomia curricular ali iniciada a todo o ensino, em 2018. Mas fui-o também no contexto histórico onde mais valor educativo foi destruído desde a expulsão das ordens religiosas: a guerra dos contratos de associação em 2016.

Uma nota final sobre esta história. Muitos colégios com contrato de associação reinventaram-se e estão hoje a educar com sucesso um novo tipo de alunos: os filhos das famílias que conseguem pagar. Os outros passam à porta todos os dias, na carreira dos transportes, a caminho de ninguém sabe bem onde. Como habitualmente, os filhos de quem está bem safaram-se. E esta hein?

Caderno de Apontamentos é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.