Nasci e cresci no meio rural,  numa pequena aldeia do concelho de Bragança, Frieira de seu nome, nas profundezas de um interior quase tão esquecido atualmente como antigamente, em termos relativos, claro. Não obstante lhe ter sido concedido, no passado, o foral de vila, deste estatuto pouco resta, salvo o bem conservado pelourinho, para além de um belo exemplar de uma ponte românica e respetiva calçada,  de um cruzeiro e do recuperado moinho de água, em pleno funcionamento.

Sendo atravessada por uma ribeira, outrora com água limpa, onde se bebia de “bruços”,  se pescava, nadava e até o cereal antes de se moído se lavava, sofre agora,  nos tempos modernos, dos efeitos desenfreados da poluição selvagem. Chamo-lhe “a minha ribeira”, pois relação com a mesma tem sido, ao longo da minha vida, muito particular e de uma “afetividade” invulgar.

A história da minha vida não poderia, com efeito, ser contada, sem que a ribeira aí estivesse integrada. As aventuras da minha iniciação à natação, as regas das hortas, o contemplar dos peixes, dos patos bravos, das galinhas de água, dos bovinos a beber no seu leito, das mulheres da aldeia a lavarem as roupas da família, tudo isso fez parte de uma meninice e de uma infância vivida na liberdade construída no ambiente natural, onde se brincava e vivia sem nada artificial, ou seja, em perfeita harmonia com a natureza e respeito por esta, mesmo sem nunca ter sido “menino”.

Ora,  sendo um defensor das origens e alimentando o “cordão umbilical” com as mesmas, ainda me desloco todas as semanas, desde a minha cidade, Bragança, à minha pequena aldeia, agora quase sem gente e sem a vida que antigamente a tornava “cheia”.

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E se no meu recordar de outrora, vou comparando com o que ali acontece agora, não posso deixar de me referir à solidão das rãs. As minhas naturais vizinhas. Até pode parecer descabido, mas a solidão das rãs, parece-me uma realidade com sentido. Sobretudo nas noites de primavera e do verão, seria difícil não regozijar os ouvidos com o cântico daqueles dóceis anfíbios. Uma verdadeira orquestra dava vida à monotonia noturna do burgo. Algo que encantava o mais distraído que passasse nas imediações da ribeira, no largo junto à ponte, bem no centro da aldeia.

O coaxar romântico das rãs, que transmitiam o seu encantamento e davam voz à sua comunicação quando a água corria num ritmo lento,  estimulava o relaxamento das gentes após as duras jornadas de trabalho agrícola de cada dia seco e quente.

Sem menosprezar toda a dinâmica envolvente de outros agentes da natureza, que viviam e se desenvolviam num ambiente propício à sua preservação, as rãs tornavam-se na genuína identidade biológica da aldeia. Até dava a ideia que se sentiam verdadeiramente felizes por perceberem que as pessoas lhes prestavam atenção, quando se debruçavam na ponte para observarem os seus movimentos e ouvirem atentamente a sua canção, que emergia do leito da ribeira rompendo e inundando agradavelmente o silêncio da noite, cânticos esses, por vezes complementados com cantos das corujas, das rolas, ou das “castanholas” das cegonhas. E tudo isto, num ambiente naturalmente preservado e equilibrado,  que emergia e se desenvolvia em perfeita harmonia.

Porém, nos últimos anos, quando me sento tranquilamente na minha varanda rural, olhando para a ribeira e para a ponte, ouvindo o coaxar das rãs, fico com a ideia que ambiente já não é o mesmo que era. Parece que lhe falta vida, lhe falta alegria, lhe falta companhia. E, na verdade, companhia humana falta, sem dúvida, às rãs, a mim,  quando por ali ando e às poucas pessoas que ali vivem, ou melhor, sobrevivem. Uma pena… Um exemplo, aliado a muitos outros, em que a desertificação demográfica e o esquecimento a que continua votado o interior do país se torna confrangedor, não se vislumbrando políticas que contrariem o desequilíbrio em relação ao litoral, nomeadamente à concentração humana nas grandes urbes, onde as pessoas se acotovelam para sobreviverem, onde uma renda de casa de um mês daria para um ano inteiro no meio rural,  no nordeste transmontano.

Acredito que as rãs da minha aldeia se sintam sozinhas, sofram de solidão humana, não obstante a resiliência das poucas pessoas que ali continuam a resistir e também na solidão residir.

Todavia, acredito que felizes ficariam muitas crianças dos grandes aglomerados do litoral, que nunca viram uma rã,  se ouvissem o seu natural coaxar, ou se com as mãos nelas pegassem, se com liberdade no meio rural interagissem e na ribeira da minha aldeia pudessem brincar e perceberem como a natureza sustenta a vida se consegue gerar e “girar”.