A habitação é uma matéria complexa, multidimensional, mas também multifactorial. Envolve muitos sectores, muitíssimos agentes e players, interesses, agendas, a diferentes escalas, frequentemente contraditórios.
A montante, a satisfação do direito à habitação é uma obrigação do Estado português, competindo ao Governo definir a política de habitação adequada a este desiderato constitucional. Ora, o Estado Central tem de assumir as responsabilidades que lhe são incumbidas pela Constituição da República Portuguesa e pela Lei de Bases da Habitação, como regulador, executor, construtor, promotor e provisor direto de habitação pública e de acesso à mesma, ao contrário do papel de gestor ou de mero garantidor, facilitador do mercado privado, papel que tem assumido com maior peso nos últimos anos em que vivemos.
É indubitável que ao Estado incumbe intervir em todos os níveis da definição e planeamento da utilização de solo urbano, no controlo de preços e mais-valias, ser simultaneamente promotor e proprietário de habitação, contribuir na reabilitação do edificado e na oferta de habitação e arrendamento acessível.
Todavia, tal não parece vigorar claramente no nosso país, já que a habitação é o pilar mais esquecido e menosprezado do Estado Social. O reduzido parque de habitação pública e/ou social é um exemplo de falta crónica de investimento público em habitação e da falta de vontade política em fazê-lo. As dotações orçamentais foram sempre diminutas e a canalização de dinheiro público por parte dos diversos governos foi sempre insuficiente para colmatar as necessidades de nova construção ou reabilitação do stock de habitação social ou pública. À excepção do Programa Especial de Realojamento (PER) do início dos anos 1990, que teve a nobre missão de erradicar os bairros de barracas e realojar milhares de familiares em habitações condignas, mesmo que muito criticado pela reduzida ou mesmo ausente qualidade sociourbanística dos projectos, o acesso ao mercado de habitação foi sempre garantido pelo sector privado.
Na verdade, o maior investimento público para habitação aconteceu com a bonificação dos juros e os incentivos fiscais para a compra de habitação a partir de meados dos anos 1980, com a entrada de Portugal na CEE. Entre 1987 e 2011, 75% dos cerca de nove mil milhões de euros investidos foram canalizados para a banca no sentido de bonificar o crédito à habitação e garantir acesso massificado à compra de casa própria. Basta recordar que antes dos três mil milhões de euros previstos no PRR, o Orçamento do Estado para a Habitação há três anos não excedia os cinquenta milhões de euros.
Isto significa que o Estado se deve comprometer com uma coordenação eficaz de políticas de arrendamento que medeie os mais diversos e contraditórios interesses, agentes e organizações envolvidas no setor, exigir e permitir que todas as partes interessadas relevantes nos setores público e privado desempenhem um papel na realização de metas de habitação acessível e inclusiva. O que significa que deve esforçar-se por fazer coexistir de forma equilibrada os três modelos de regime de propriedade previstos na Constituição da República Portuguesa e cuja lógica se deve estender também ao arrendamento: o do setor privado (portanto mercado livre), o do setor público e o do setor cooperativo e social.
É um imperativo nacional avançar no sentido da dinamização mas também regulação do mercado de arrendamento. Este é um dos poucos sectores de actividade económica no nosso país que não é alvo de regulação ou até controlo por parte de uma entidade governamental ou independente, quer do ponto de vista dos valores praticados, como das condições habitacionais dos locados que são arrendados, quer das condições contratuais entre senhorio e inquilino.
As soluções passam pelo aumento de programas públicos municipais que pratiquem rendas condicionadas, apoiadas ou acessíveis (até um terço do rendimento do agregado familiar ou, tendencialmente, menos), mobilizando uma parte ou totalidade do património público devoluto com vocação residencial para este sector. O Estado e os municípios devem também incentivar fiscalmente a colocação de devolutos privados no mercado livre ou mesmo penalizar aqueles que se mantém devolutos, portanto, desprovidos de função social ou económica, especialmente em áreas de forte procura residencial insolúvel pelo mercado, como defende a Lei de Bases da Habitação. Isto permitirá regular indiretamente o valor das rendas por via do aumento da oferta.
Impõem-se também medidas de justiça fiscal básica para os proprietários. Assim, deve promover-se uma redução significativa da carga fiscal dos senhorios em função da durabilidade do contrato praticado, mas também do valor de renda por metro quadrado. Portanto, senhorios que praticam contratos mais curtos e valores mais especulativos de renda devem pagar mais impostos, ao contrário dos outros. Medidas como um controlo/congelamento ou tecto de rendas, bem como apoios e subsídios financeiros ao inquilinato ou aos proprietários devem ser excepcionais e de muito curta duração porque já vários estudos demonstram que a sua influência distorce os preços de mercado e faz regredir a oferta de casas com rendas acessíveis, sobretudo numa situação dominante de mercado privado no sector como o nosso.
Mas, acima de tudo, é preciso a promulgação de uma nova lei do arrendamento que revogue o Novo Regime do Arrendamento Urbano de 2012, que permita a criação de um ambiente de confiança no mercado de arrendamento, com garantias efetivas de proteção aos inquilinos e pequenos senhorios, no caso do incumprimento dos contratos, mas também direitos e deveres para ambas as partes.
Só assim se avança no sentido de ser possível delinear e concretizar uma estratégia nacional da habitação, tendo em vista o desenvolvimento integrado e sustentável do território e permitir o efectivo direito à habitação de forma universal, incondicional e inalienável.
Luís Mendes é geógrafo e assistente convidado no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa e na Escola Superior de Educação de Lisboa. É membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.