As recentes eleições inglesas foram notáveis pela enorme desproporção, a nível nacional, entre os votos e os mandatos de deputado obtidos pelos partidos. Alguma falta de proporcionalidade é sempre expectável em círculos uninominais, em que o critério de eleição é a maioria, absoluta ou relativa. Votos minoritários não elegem deputados. Em troca, a proximidade com os eleitores está assegurada. Cada círculo tem o seu deputado, razoavelmente conhecido por todos os residentes.
Podemos traçar um paralelo com o caso português. O sistema eleitoral para a Assembleia da República (AR) combina o pior de dois mundos: é razoavelmente desproporcional e não aproxima os eleitos dos eleitores. Há círculos com dezenas de deputados, razoavelmente conhecidos pelos directórios partidários que os indigitam.
Para medir a desproporcionalidade do nosso sistema, vamos compará-lo ao sistema mais proporcional possível. Imaginemos um círculo nacional único com 230 deputados, no qual os votos são convertidos em mandatos com o quociente de Droop. Com este método, os votos expressos (excluindo brancos e nulos) são divididos pelo número de lugares a eleger mais um, isto é, . Os votos de cada partido são divididos por este quociente para atribuir os deputados que lhe cabem. Se sobrarem mandatos por atribuir, são distribuídos pelos partidos com maiores restos (a parte decimal da divisão de dois inteiros).
Vejamos um exemplo. Nas últimas eleições para a AR (AR2024) houve 6.194.290 votos expressos para 230 lugares (mais 1); ou seja, 26.815 votos garantem a eleição de um deputado. Aplicando este método, alocamos 220 mandatos. Dos 10 mandatos restantes, o primeiro vai para a lista com maior resto, que é a coligação PSD/CDS na Madeira: (ou seja, 1 deputado mais um resto de 0,976). E assim sucessivamente até atribuir os 9 mandatos restantes. A Figura 1 compara o modelo Proporcional, que acabámos de descrever, e o modelo Actual, que corresponde aos resultados das últimas eleições.
A tendência é clara. No modelo Actual, os três partidos mais votados ganham mandatos à custa de todos os outros, por duas razões: 1) disparidades na dimensão dos círculos eleitorais distritais e 2) enviesamento do método de d’Hondt a favor dos partidos mais votados. Em 22 círculos eleitorais, o maior tem 48 deputados, mas 50% (11) têm 2 a 5 deputados. A soma de deputados destes 11 círculos é 37. Em círculos com poucos deputados não existe proporcionalidade entre número de votos e número de mandatos, porque os partidos com poucos votos não conseguem eleger.
Por outro lado, o método de d’Hondt favorece os partidos mais votados, para impedir a fragmentação e facilitar a formação de maiorias governativas. Como funciona? Os votos de cada partido são divididos por uma sequência de divisores, que vai de 1 até ao número de lugares a eleger (10, por exemplo). Ao contrário do método anterior, temos médias diferenciadas pelo número de mandatos a eleger, ou seja, médias para 1 lugar, para 2 lugares, etc. Os 10 mandatos serão atribuídos às 10 médias mais elevadas.
O efeito combinado de ambas as distorções é evidenciado na Figura 2, que mostra a diferença entre a percentagem de votos e a percentagem de mandatos do partido vencedor, em cada círculo. Em Bragança, 42% dos votos garantiram 2/3 dos mandatos. Em seis círculos, bastaram menos de 50% dos votos para garantir 50% dos lugares. Os efeitos são menos visíveis nos círculos maiores.
Círculo de compensação?
Nas eleições AR2024 houve 760.890 votos “desperdiçados”, isto é, votos expressos em círculos eleitorais que não corresponderam a deputados eleitos. O fenómeno é comum a todos os círculos eleitorais, conforme vemos na Figura 3.
O círculo de compensação, que visa corrigir uma distorção da proporcionalidade causada pelo voto em círculos locais, tem sido proposto por vários partidos para resolver este problema. Existem duas formas diferentes de fazer isto. Opção A: sobrepõe-se um círculo nacional aos círculos locais, sendo os mandatos nesse círculo directamente atribuídos em função dos votos de todos os eleitores. Esse voto pode ser automático – o voto no círculo local vale para a lista do mesmo partido no círculo nacional – ou duplo – o eleitor pode escolher votar em partidos diferentes no círculo local e no nacional. Opção B: criação de um círculo nacional de aproveitamento (CA) de votos “desperdiçados” nos círculos locais. No primeiro caso, existem duas eleições simultâneas, e todos os votos são contados duas vezes. No segundo, só os votos “desperdiçados” são “repescados”.
Quais as consequências de cada opção no caso português? Vamos manter os actuais círculos e número de deputados, com os resultados AR2024. Acrescentamos um círculo nacional, com uma dimensão arbitrária de 20 mandatos, alocados com o método de d’Hondt. Depois calculamos os resultados para as opções CC e CA. A Figura 3 demonstra os resultados.
Opção CC: Parece óbvio que um círculo de compensação demasiado pequeno, ao replicar o voto local, amplifica os problemas do sistema Actual. Os partidos mais votados são sobre-compensados, e os partidos mais pequenos não são muito beneficiados. Como demonstrado no estudo que acompanhava o belíssimo projecto de reforma eleitoral do PS, da autoria do politólogo André Freire, um círculo de compensação eficaz requer um grande número de deputados (80?). Com a dimensão da AR constitucionalmente limitada a 230 deputados, a criação de um círculo deste tipo obrigaria a cortar mandatos nos círculos locais, ou a rever a Constituição para aumentar a dimensão da AR. Opção CA: Um círculo de aproveitamento, mesmo com dimensão reduzida, produz resultados mais próximos do modelo Proporcional.
Uma solução mais simples?
A solução deve ter em conta o seguinte. Por um lado, precisamos de um sistema que reflicta mais fielmente as escolhas do eleitorado. As exigências de estabilidade governativa não devem significar bónus escondidos aos maiores partidos. Isto acontece quando os círculos são tão pequenos que só os maiores partidos conseguem eleger. Por outro lado, precisamos de círculos locais. Um único círculo nacional (modelo de Israel) com listas de 230 deputados significaria o total afastamento entre eleitos e eleitores, e inviabiliza qualquer forma de ordenação dos candidatos pelos votantes.
Existe uma solução fácil de implementar (semelhante ao modelo holandês para a câmara baixa). Primeiro: mantemos os actuais círculos locais como círculos de candidatura, nos quais os partidos apresentam as listas de candidatos. Segundo: criamos um círculo nacional de apuramento, no qual todos os votos são agregados para efeito de atribuição de mandatos aos partidos, de acordo com o método de d’Hondt. Terceiro: para manter o carácter local, depois de saber quantos mandatos cabem a cada partido, aplica-se o quociente de Droop às listas locais de cada partido, para seleccionar os deputados. Este passo não será necessário se um partido apresentar a mesma lista em todos os círculos.
Este sistema tem vantagens assinaláveis: 1) implica uma alteração mínima em relação ao sistema actual, e não requer adaptação dos eleitores; 2) é fácil de explicar; 3) não acarreta aumento da dimensão da AR, nem obriga a redesenhar os círculos locais; 4) aumenta a representatividade dos pequenos partidos (Figura 5); 5) mantém o método de d’Hondt, que tem consagração constitucional, e que facilita a formação de maiorias; 6) ao manter os círculos locais, abre a porta a sistemas de listas abertas ou semi-abertas, que permitam aos eleitores exprimir preferências pelos candidatos individuais. Em suma, permite resolver as distorções mais graves no curto prazo, deixar amadurecer o sistema, e introduzir aperfeiçoamentos no médio prazo.