«Às liberdades municipais, à iniciativa local das Comunas, aos Forais, que davam a cada população uma fisionomia e vida próprias, sucede a centralização, uniforme e esterilizadora. […] O povo emudece; negam-lhe a palavra fechando-lhe as Cortes; não o consultam, nem se conta já com ele. Com quem se conta é com a aristocracia palaciana […] que cada vez se separa mais do povo pelos interesses e pelos sentimentos, e que, de classe, tende a transformar-se em casta.» (Antero de Quental, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares)

Referia-se assim Antero de Quental às causas da decadência dos povos peninsulares (ibéricos), há mais de 150 anos. Nem parece que já passou tanto tempo sobre este discurso, pois assenta que nem uma luva ao estado actual de Portugal. Fora de Lisboa, não há opinião, não há razões para viver, não há razões para trabalhar. Já percebemos nos últimos tempos que, enquanto não for possível aos 10 milhões de portugueses habitarem no centro de Lisboa, iremos ter portugueses infelizes, e que a mudança de um qualquer organismo público para fora de Lisboa é um desprestígio, para além de trazer imensos custos para as pessoas (de Lisboa, claro).

Sim, caro leitor, estas são palavras ipsis verbis de algumas pessoas que habitam Lisboa e que têm sido publicadas na imprensa. Estou a falar das discussões em torno do problema da habitação, da deslocalização do Tribunal Constitucional e do Infarmed. Para citar apenas três exemplos, pois a lista é infindável. E é dentro desta moldura que o nosso país tem sido governado.

Há cerca de 24 anos, os portugueses foram chamados a pronunciar-se sobre a regionalização. O resultado foi desfavorável. Os portugueses de então terão feito a escolha acertada?

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Em Portugal, existem duas regiões autónomas, Açores e Madeira. Nos últimos 25 anos, estas foram as regiões que mais se desenvolveram. Vários factores terão contribuído para esse desenvolvimento, mas a proximidade dos governos regionais face às suas populações e às suas potencialidades e necessidades foi determinante na condução das políticas sociais e económicas. Já no Continente, a concentração de (quase) 100% dos serviços centrais na Área Metropolitana de Lisboa (ou Lisboa, daqui em diante), leva a que as pessoas que neles trabalham também habitem nessa área, sendo esse facto suficiente para limitar a pluralidade de pontos de vista sobre as potencialidades e necessidades do resto do país.

Na década passada1, Lisboa consumiu bem mais do que aquilo que produziu (114%), tendo exportado apenas 26% dos bens produzidos. No outro extremo está o Norte, que apenas consumiu 69% do que produziu, tendo exportado 41% dos bens produzidos. Valor que supera a União Europeia, Alemanha e França em 2019, por exemplo. Evidentemente que as diferenças entre as regiões portuguesas não se ficam por aqui; podemos comparar as estruturas produtivas e vemos que o sector primário não existe em Lisboa, mas tem um peso importante no Alentejo e nos Açores; a indústria representa quase um terço da produção no Norte e no Centro, sendo menos de metade disso em Lisboa. Lisboa vive quase só da prestação de serviços, ultrapassando qualquer outra região portuguesa, principalmente por causa das actividades financeiras, que são mais do dobro e até mais do triplo das outras regiões2.

Assim, é natural que quem está em Lisboa não sinta a necessidade de obter competitividade na tributação fiscal das sociedades, o que iria favorecer as exportações (pois são relativamente baixas), mas já pode sentir necessidade de obter um enquadramento favorável ao consumo (que é muito alto) ou nas prestações de serviços financeiros (pelas mesmas razões). É, portanto, de esperar que as decisões sobre os destinos de Trás-os-Montes, Beiras e Minho, tenham vindo a ser tomadas por pessoas que intuitivamente têm uma percepção da realidade completamente desajustada do que se passa nesses locais.

É perfeitamente compreensível que as pessoas olhem para o seu próprio umbigo. É humano. E por isso, é necessário aproximar os decisores das populações. O que não se consegue sem a regionalização.

Será que, século e meio depois, vamos finalmente dar ouvidos a Antero de Quental?

1 Até 2019, pois ainda não existem dados que permitam estimar estes valores para 2020.
2 Dados de 2020.