O leitor poderá inquirir: como é possível que tantos mantenham as crenças religiosas, mesmo quando entram em conflito com a visão que têm do mundo? Saiba que existe um mecanismo cerebral que tem como objetivo predizer erros e monitorizar pensamentos e comportamento. Este sistema é composto pelo córtex cingulado anterior e o córtex pré-frontal medial, e está envolvido na aquisição e manutenção de crenças sobrenaturais intuitivas, possivelmente através da gestão de erros de previsão relacionados com essas crenças.

Num estudo, participantes crentes foram expostos a uma oração de interceção e foram informados quando a oração era proferida por um cristão, por um cristão com poderes curativos e por um não cristão. Este sistema obteve o menor grau de ativação quando os participantes escutaram a oração de um cristão com supostos poderes curativos. Este estudo parece refletir o efeito de expectativas prévias relativas à fonte da mensagem. Apesar de a oração ser a mesma, a capacidade para o controlo e revisão do conteúdo diminuiu na presença de uma figura investida de “poderes”.

Vem este tema a propósito do debate que tive com o Professor António Jácome sobre Deus, espiritualidade e cérebro, o tema que iniciou a 3.ª temporada do ciclo de conferências LogicaMente, no Instituto Universitário de Ciências da Saúde- CESPU.

Embora frequentemente ligadas, religião e espiritualidade são dois fenómenos distintos. A religião consta de um sistema de crenças organizadas, promulgadas e mantidas por instituições, grupos e culturas. A espiritualidade é uma experiência individual relacionada com aspetos não materiais, transcendentes e com a conexão com algo maior.

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Todas as experiências são mediadas cerebralmente. O facto de um tipo de epilepsia temporal se manifestar no seu início (aura) através de um estado de clareza mental, de bem-estar e felicidade e de integração plena com o universo, aponta claramente para esse substrato. No entanto, é errada a atribuição exclusiva destas experiências ao funcionamento cerebral.

As bases neuronais da cognição religiosa envolvem uma interação complexa entre regiões cerebrais, envolvidas no controlo cognitivo e juízo social, e crenças ideológicas.

As crenças são parte integrante do Modelo Mental de Deus, ou seja, da construção que cada um faz do divino. Este modelo depende de dois sistemas: um cognitivo, outro emocional. O sistema cognitivo é constituído pela informação doutrinal, acessível através de circuitos cerebrais utilizados na compreensão de informação linguística. O sistema emocional é de desenvolvimento inconsciente, resulta das experiências e da representação interna de Deus. Este sistema assenta em estruturas cerebrais responsáveis pela significação e regulação emocional dos comportamentos e das emoções, assim como dos acontecimentos de vida.

Curioso que “pensar” e falar com Deus ativa áreas cerebrais responsáveis pela atribuição de estados mentais a outras pessoas, algo que em neuropsicologia apelidamos de Teoria da Mente. Neste sentido, rezar assemelha-se à comunicação interpessoal não religiosa. Cerebralmente, Deus é uma “pessoa” significativa, não uma entidade abstrata a quem se atribuem intensões e emoções. Esta perspetiva abre portas para uma teoria na qual permite que se considere Deus como uma figura de vinculação. Assim, a forma como o indivíduo se relaciona com Deus é prefigurada pelo estilo de vinculação a figuras significativas (pais, amigos, parelha, etc). No sentido inverso, o Modelo Mental de Deus, ao ser constituído, pode influenciar as tendências de relacionamento social.

Vários dados experimentais apontam para uma maior influencia dos pares, especialmente aqueles dentro do mesmo grupo religioso. Assim, o conformismo social “dentro do grupo” é um mecanismo central na transmissão e influência das crenças religiosas. A associação de mensagens religiosas e espirituais a figuras internas à confissão reforça a experiência religiosa. Apesar disso, constata-se que a ativação de circuitos neurais que medeiam as experiências religiosas são os mesmos em diferentes práticas e culturas. Estes circuitos estão ligados ao processamento emocional, imagens mentais e fenómenos cognitivos.

A espiritualidade poderá estar relacionada com a vivência emocional do Modelo Mental de Deus, mas na verdade transcende uma figura e reflete-se num sentimento de transcendência, de união com o universo e por vezes de êxtase e até com qualidades noéticas. Estudos efetuados com monges, com freiras Carmelitas e freiras Franciscanas, apontam para o envolvimento de várias áreas cerebrais aquando da meditação e da vivência de experiências “místicas”.  Dentro destas, destacam-se as variações nas áreas maioritariamente localizadas no lobo parietal e relacionadas com a representação corporal e a autoconsciência. A estimulação elétrica destas regiões, pode induzir experimentalmente experiências fora do corpo. Estas observações sugerem que a espiritualidade está relacionada com sistemas de integração multissensorial e de processamento autorreferencial que, ao alterarem a sua atividade em práticas de oração, contemplação e ou meditação, favorecem a dissolução da identidade e a ideia de “continuidade” com o meio/universo.

O atual corpo de conhecimento está longe da completa compreensão da experiência divina, religiosa e espiritual. A inclusão de elementos neurobiológicos não encerra estas questões num materialismo insuficiente. No entanto, é já significativo o contributo das neurociências para a compreensão mais profunda de como as crenças e experiências religiosas e espirituais se relacionam com a atividade cerebral.

Permite o desenvolvimento de abordagens clínicas para condições em que as experiências religiosas são proeminentes, como a epilepsia do lobo temporal ou a esquizofrenia, melhorando potencialmente o diagnóstico e o tratamento.  Gerando novas hipóteses para investigação futura, relativa às bases neurocognitivas da religião e da espiritualidade. O atual quadro de conhecimento faz a ponte entre a neurociência, a psicologia, a filosofia e a teologia, estimulando discussões interdisciplinares sobre a natureza das experiências religiosas e espirituais.

Em último, a compreensão das bases neurocognitivas das experiências religiosas, poderá contribuir para uma compreensão mais alargada da forma como certas crenças, incluindo as extremas, podem ser formadas e mantidas.