A filosofia, em especial a filosofia moral (aquela relativa ao comportamento humano voluntario), desde há muito tempo entende o dilema de saber se uma ação é moralmente boa ou má fazendo um balanço entre dois bens. Sempre se entendeu desta forma, porque se se considerasse um único bem numa discussão (por exemplo, dar de comer a quem tem fome), então pouco haveria para discutir. No caso-exemplo enquanto um bem é a caridade, de forma a começar uma discussão, teria de introduzir um segundo bem na equação, como por exemplo, a responsabilidade. Nestes termos, aquilo que tinha uma resposta óbvia, ou seja, que dar de comer a quem tem fome é bom, pode (ou não) vir a alterar-se, se consideramos que a pessoa que dá um pão tem uma família em casa e um dever de alimentar, e se ceder o pão, não apenas ele, mas toda a família passará fome. Há muitos bens sobre os quais é possível ter uma boa discussão, por exemplo, a propriedade: se eu dou um pão a quem tem fome, mas o roubo da mercearia, coloca-se outro dilema. Ou se eu dou o meu último pão e a pessoa que “tem fome” vai almoçar em 5 minutos, a questão voltar-se-á ao contrário.

Estas questões, em última análise, são resolvidas com recurso à hierarquia de bens, uma lei segundo a qual as coisas têm naturalmente uma importância, e a sua violação em detrimento de outra inferior resultará num juízo improprio de uma ação. Por exemplo, se eu matar uma pessoa para salvar uma formiga, o bem vida humana é violado em detrimento do bem vida animal, e posso constatar que a decisão foi errada.

Acontece que, relativamente ao tema do aborto, aquele a que hoje me proponho abordar, os bens em causa são radicalmente elevados, neste caso, o bem escolha ou liberdade e o bem vida. Claro está que, nem quem defende o aborto, nem quem defende a proibição do aborto é contra os bens em causa, nunca se ouviu um conservador dizer ser anti-liberdade, ou um liberal anti-vida. Olhos de ambos os lados estão obcecadamente vidrados no bem que defendem, e com alguma razão, visto que ambas as posições implicam a defesa de um bem quase supremo. Por isso é um tema sensível, e pior, por isso é um tema no qual as partes não estão dispostas a negociar.

Ainda assim, impele-me a escrever este texto um desejo de defender a Verdade, aquela que com a mesma naturalidade invoco ao defender o bem determinação sexual, ou integridade física quando oiço de casos de mutilação genital feminina. Fazendo, contudo, a seguinte ressalva: o meu argumento fundamenta-se em quatro premissas que, tanto quanto entendo levam necessariamente à conclusão de que o aborto é uma ação condenável, contudo, provando que alguma das premissas está errada, ou que das premissas não se segue a conclusão, eu imediatamente mudo de posição.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

1. Que a vida humana é sagrada. Aquilo que os juristas com muita pompa afirmam ao qualificar pilar da república democrática a dignidade da pessoa humana. Claro que esta premissa não é demonstrável, ou sequer provável. Eu não sou capaz de, somando dois mais dois, obter o resultado “toda a vida humana é sagrada”. Contudo, não deixo de o afirmar como Verdade. Muitos teóricos já tentaram desfazer este paradigma, claro que apenas o fizeram na teoria, porque na prática levá-los-ia ao consentimento com o genocídio dos judeus, ou a escravatura dos africanos, ou mil e uma coisas que já foram feitas à vida ao longo da vida. Eventualmente escreverei mais sobre este assunto, mas por razões de tempo e espaço terei de seguir em frente. Observo apenas que negar esta premissa leva inevitavelmente à inutilidade de qualquer debate sobre qualquer assunto moral, dado que a vida é o suporte de qualquer outro bem, inclusivo o da escolha.

2.  Que o assassinato é injusto ou imoral. Aqui refiro-me à morte dos inocentes em específico, preceito este que deriva do primeiro. Há casos em que se justifica o assassinato, como a legitima defesa, contudo nesse caso acontece que se deparam dois bens de igual valor, duas vidas, e que aquele que comete a tentativa já está a incorrer num ato imoral. Só se pode, em bom rigor, promover o instituto da autodefesa se se considera que a vida é sagrada e o assassinato é seu antagonista. Só observamos a exclusão de ilicitude, em termos legais, por reconhecer como um mal a primeira tentativa (a ilícita) de tirar a vida a outrem. Mas, para o caso, refiro-me apenas ao assassinato dos inocentes. Nestes termos, qualquer um pode afirmar que os tiranos que matam crianças estão inequivocamente a cometer um mal moral, ou uma injustiça.

3. Que a vida começa na concepção. Esta premissa, por muito que se queira discutir, é única provável (suscetível de ser provada) das quatro premissas que disponho. Qualquer manual de biologia, antes do aborto se tornar um tema político, afirmava que assim o era. Isto porque o código genético forma-se no momento da concepção, todas as condições estão reunidas e em bom rigor a partir da concepção apenas crescemos. O mesmo não se pode dizer do momento anterior à concepção, relativamente ao esperma, ou aquele pós-morte, quanto ao cadáver. Estas duas figuras não seremos nós, contudo, eramos nós no útero da mesma forma que o eramos no parto, na infância ou agora.. Contudo, é certo que: a ciência, relativamente a qualquer espécie viva faz as distinções nestes termos, e ainda agora, em qualquer manual de biologia, um ser humano, um membro individual da nossa espécie, é concebido nesse momento. O debate só mudou quando se começou a defender politicamente o aborto (e não ao contrário – não houve nenhuma prova científica que não era vida humana, que levou à ideia politica do aborto), e que qualquer forma de qualificar o feto recém-concebido é arbitraria e não corresponde nem à ciência, nem ao bom-senso. Devo também dizer que já várias vezes ao longo da historia se fez uma tentativa de relativizar, ou simplesmente negar que certo ser-humano não o era, como na escravatura europeia nos séculos XVI e XVII, em que se afirmava que o escravo não era ser humano, por uma razão igualmente arbitraria, a cor de pele. Ou a relativização da humanidade em certos casos, como o extermínio dos judeus, pela sua menor dignidade relativamente à raça ariana. Repare-se igualmente que nestes regimes uma pseudobiologia reinava o meio político.

Uma boa forma de resumir é a seguinte: se está a crescer, não está vivo? E se tem pais humanos, não é humano?

4. Que é o fim da lei a proteção dos bens. Por norma é colocado sobre a terminologia “direitos”, mas que afinal resulta numa adoção parafraseada do bem em causa. Inclusivo, no Direito Penal fala-se em bem penal digno de tutela. Claro que o bem mais digno de tutela é a vida humana. E pretende proteger os bens eliminando ameaças a estes.

5. O aborto é a terminação voluntária da vida do feto. Claro que mesmo esta expressão é eufemística, pois, como se trata de vida, o seu termino deve ser referido como morte. E por se tratar de uma situação de absoluta fragilidade, a do feto digo, mais agravante é a imposição da morte sobre este. Muitas vezes se retrata esta pratica como se fosse um mero “deixar de suportar a vida do feto” (ainda mais eufemístico), quando se trata de uma “remoção do conteúdo uterino” – expressão utilizada pelos manuais MSD. A remoção deste “conteúdo”, i.e., o pequeno ser humano, faz-se por meio de um aspirador que tem cerca de vinte vezes a potencia de um aspirador domestico, permitindo que o feto, ainda dentro do útero, causado pela potencia da sucção, se desfaça em partes, e estas serão sugadas. Em nenhum momento se pode deixar de chamar isto a causa direta da morte.

Por razões de economia espacial, vou ter de poupar ao leitor uma defesa mais aprofundada de cada um dos tópicos, contrário ao que me tinha proposto no inicio do artigo. Deixo por isso o silogismo final: a vida humana é sagrada, a violação da vida humana por meio do assassinato é imoral, o embrião é um ser humano, a lei pretende tutelar os bens, entre eles e como magno a vida humana, e o aborto é a prática que leva à morte do feto. Logo, a lei deve proteger o bem vida humana do feto (pequeno humano) face à ameaça do aborto.