A 30 de Julho de 1928, nasceu Eunice do Carmo Muñoz, na Amareleja, a menina que antes de nascer para a vida já tinha nascido para o teatro e para o espectáculo.

Conheci a Eunice em 2006 num almoço onde se juntaram muitas personalidades que me são muito queridas como os meus queridos amigos Nicolau Breyner e Rui Veloso. Nesse dia fez-se uma fotografia dos 3 juntos, pela graça de serem aniversariantes no mesmo dia. Mais tarde, tive a honra de partilhar o camarim com Eunice no Fórum Lisboa (antigo Cinema Roma) num espectáculo de solidariedade onde eu cantei e Eunice brilhantemente recitou poesia. Foram horas deliciosas de partilha em que nos conhecemos melhor. Confesso que me apeteceu mais ficar calada e ouvir, do que dizer fosse o que fosse. No meio da nossa conversa íamos deixando um traço no olho, acentuando as maçãs do rosto e dando côr aos lábios para que a boca se faça notar a quem nos vê mais ao longe na plateia. Saí dali a pairar sobre o privilégio daqueles momentos únicos em que a ouvi falar da neta com orgulho, dos filhos, do palco. Ainda nos falámos algumas vezes depois disto, pois acabei por ser cúmplice de uma solução para a aliviar dos males da coluna. Em cima da minha admiração pela actriz única que é, ficou a reinar o espanto pela simplicidade no trato, pela doçura com que fala, pela sobriedade e pelo respeito pelos mais novos.

Como nasce uma actriz tão completa que gere a voz, a palavra, a intenção, o gesto, o olhar, os silêncios e as emoções de forma tão sublime? É difícil encontrar tudo isto numa só pessoa. Mas Eunice nasceu para o teatro antes de nascer para a vida.

É curiosa a história que antecede o seu nascimento e que, no fundo, dita o seu destino.

Eunice descende de uma verdadeira dinastia de artistas. Pelo lado paterno, a família Cardinali Muñoz, em que os seus avós Angel Muñoz, espanhol, violinista da Orquestra Sinfónica de Madrid se apaixona por Albina Cardinali, italiana, artista de volteio a cavalo no circo familiar, e juntos constituem um circo ambulante, o Circo Cardinali. Pelo lado materno, os seus bisavós, António Augusto de Campos, filho primogénito do Conde de Pinhel, estudante cábula em Coimbra que perdia anos consecutivos agarrado à guitarra e a cantar fados, e que fugiu da maldição que o pai lhe destinara: a de se casar com uma viúva rica. Casou com Adelaide, tecedeira da Covilhã, por quem se apaixonou perdidamente numas férias. Foi, como se esperava, deserdado pelo pai. Depois de uma estadia no Brasil, e já com três filhos, um deles a avó (Augusta) de Eunice, constituem um grupo teatral em Lisboa. Os seus avós Francisco do Carmo e Augusta Campos Carmo, decidem formar o seu próprio grupo teatral familiar ambulante, a Troupe Carmo. Viajaram muito pela província, levando a palco peças importantes como “Mater Dolorosa”, de Júlio Dantas. A exaustão da itinerância fez com que se instalassem no Alentejo, na Amareleja, partindo sempre daí para as tournées que não duravam menos de um mês. Foi daí que um dia saiu a família em direcção a Alter do Chão para assistir ao Circo que se ali se exibia. E assim se conheceram Hernani Cardinali Muñoz e Júlia do Carmo (a Mimi) num amor intenso que trouxe ao mundo uma menina Eunice e dois meninos, Hernani e Francisco Fernando.

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À semelhança da restante família Hernani e Mimi criam a sua própria troupe, a Troupe Mimi Muñoz, a terceira companhia teatral familiar dos Carmo.

Com 5 anos, Eunice começa a fazer furor. Com uma invulgar intuição musical, e graciosidade, subia a palco a representar e a cantar. Cresceu no meio dos palcos, dos ensaios, das montagens e desmontagens. Cresceu a admirar a avó Augusta, que se tornou uma referência toda a vida. Eunice diz que a avó era uma atriz tão grande que era tão boa na comicidade como no drama. “A avó Augusta deixava-me de boca aberta e fazia-me sofrer imenso nos espetáculos dramáticos. Ia para casa lavada em lágrimas.”

Apesar da naturalidade que Eunice demonstrava, “não gostava, não gostava nada de se exibir” e havia sempre um pretexto ou uma qualquer resistência para não ir trabalhar. Talvez tentasse contrariar o seu destino.

Fruto da itinerância do Teatro Desmontável Mimi Muñoz que os pais acabaram por instituir uma vez que, por decreto, as variedades nos cinemas se tornaram inviáveis, Eunice foi cumprindo os seus estudos em diferentes cidades, ora em Lisboa onde fez a 2ª e 3ª classes, ora em Coimbra na 4ª classe, ora em Fornos de Algodres onde ingressou no Liceu. O Teatro acabou e os pais passaram a dedicar-se a pequenos conjuntos de variedades, e à actividade de empresários.

É importante retratar parte da sua carreira para que se perceba a sua gigantesca capacidade trabalho e o seu elevado grau de exigência que resultou numa excelência invulgar da representação. É reconhecida, por isso, como a maior actriz que Portugal alguma vez teve.

Em 1941, com a formação do primeiro Teatro do país, Amélia Rey Colaço procura quatro jovens para rodear a grande estrela Maria Lalande no primeiro acto do “Vendaval”. É quando Sales Ribeiro, que havia feito parte da Troupe Mimi Muñoz, sugere Eunice para integrar o elenco. Tinha apenas 13 anos, e Eunice impressionou Amélia Rey Colaço logo na sua primeira leitura. A mãe encheu-se de orgulho e alegria mas Eunice lidou com o convite com auto-confiança: “Não estás contente?” Eunice responde: “Sim, estou.” Sem a mínima expressão de alegria. A mãe insiste: “Mas não estás feliz?”, “Estou, mas porque não haviam de me convidar?” A mãe riu-se com esta segurança de criança que Eunice já carregava. João Villaret apostou que Eunice seria a futura grande actriz. Mais do que da peça, lembra-se da estreia e do terror de ver o pano de boca a subir.

Depois de “Vendaval” e “Maria Rita”, Eunice teve de esperar para completar 14 anos e inscrever-se no Conservatório (que terminou com 18 valores) para poder voltar a palco. Assim fez, e voltou a integrar o elenco do Teatro Nacional. Deu nas vistas, e nos períodos de pausa de Verão do Teatro Nacional foi chamada para integrar companhias comerciais, pisando palcos como o Teatro Avenida ou o Teatro Variedades no Parque Mayer, o que não impediu o seu regresso à “casa-mãe”. E de tal forma que Maria Lalande se ressentiu do êxito de Eunice em “Frei Luís de Sousa” e queixou-se a Amélia Rey Colaço.

Eunice sempre transitou com a maior facilidade do drama à comédia. Contracenou na sua carreira com os mais importantes actores, como Vasco Santana, Mirita Casimiro, Costinha, Maria Matos, Ribeirinho, Henrique Santana, Curado Ribeiro, António Silva, Varela Silva, João Perry, Ruy de Carvalho, …

Em Abril de 1946 sai dos palcos para as grandes telas do cinema, tinha apenas 17 anos. É com uma admirável verdade que encarna o papel de Beatriz Silva, no prestigiado e bem-sucedido filme “Camões”, de Leitão de Barros, apresentado no Festival de Cannes, e que se revela uma extraordinária actriz de cinema, o que lhe vale o Prémio de Melhor Actriz de Cinema pelo Serviço Nacional de Informação. Foi apenas o primeiro de infindáveis prémios ao longo da sua carreira.

Ao fim de quase 2 anos, depois de participar em mais três filmes, do seu primeiro casamento com o Arquitecto Rui Ângelo de Oliveira do Couto, e do nascimento da sua filha Susana, volta em finais de 1947 ao teatro, mas ao palco do Nacional só regressa em 1949. Aí surge um diferendo entre Eunice e Robles Monteiro que a leva a afastar-se e a voltar ao cinema. Em 1950 a crise teatral agudizou-se, e Eunice não encontrava uma companhia dramática que pudesse integrar. Aventura-se no Teatro de Revista.

Entre sucessos e insucessos, onde a sua reputação não se beliscava, Eunice era quem salvava peças menos interessantes com as suas interpretações impressionantes. Não desistiu nunca de evoluir, e na peça seguinte trabalhava muito para se apresentar ainda melhor.

Em 1951, com 23 anos, Eunice decide, por cansaço da única vida que conhecera, o teatro, afastar-se e conhecer outras gentes e outras profissões. Sentia necessidade de uma vida mais real e não apenas das vidas que lhe davam a representar. Surpreendeu o público ao saber-se que trabalhava ao balcão de uma conhecida loja de cortiça, a “Mr. Cork”, no Príncipe Real, em Lisboa. Ali trabalhou durante um ano. Depois foi secretária de uma fábrica de cabos elétricos e telefónicos, onde conheceu o seu segundo marido, o Engenheiro Ernesto Borges. Sente que de um certo modo foi feliz longe do teatro porque lhe interessava conhecer as pessoas, queria estar com elas, com os problemas delas e observar como era a vida delas realmente.

Durante esses quatro anos as propostas de empresários não terminavam, sobretudo a insistência de Vasco Morgado que teve como seu aliado Ernesto, que via na sua mulher um enorme talento com necessidade de se expandir. Eunice acabou por ceder, até porque a peça era um grande desafio e lhe interessava muito.

Foi a 9 de Novembro de 1955 que Eunice fez a sua reaparição sensacional em “Joana d’Arc”, devolvendo ao Teatro português a sua actriz maior, aquela genialidade, que depois de ultrapassadas as dúvidas e inquietações, encontra no entusiasmo do público e da crítica, a grande razão da sua existência. Daí em diante não mais voltou a questionar a sua permanência no teatro.

Do casamento com Ernesto Borges nasceram quatro filhos, Joana, António, Pedro e Maria, as únicas novas razões de afastamentos do palco.

Voltou à comédia, até que Vasco Morgado recorre a Eunice numa aflição, para que assumisse o papel que Lígia Teles acabara de abandonar, pouco tempo antes da estreia da peça “O Milagre de Ana Sullivan”. Eunice apaixona-se por Ana Sullivan e, fechada no hotel, saindo só para ensaios, ergue a personagem em apenas 12 dias. O sucesso foi arrebatador. Durante muito tempo a personagem ficou-lhe na pele. No Alentejo, ouviu um homem dizer-lhe “Você é aquela filha de um cabrão, que até chora de verdade”.

Chegou a vez da televisão que dava em Portugal os seus primeiros passos. Foi em “Cenas da Vida Duma Actriz” que Eunice tem a seu lado a sua mãe, Mimi Muñoz, na figura de uma fiel costureira de teatro. Não foi uma convivência fácil pois ambas estavam preocupadas com o bem-estar da outra.

Em 1965 é criada, por Raúl Solnado, a Companhia Portuguesa de Comediantes em que Eunice era figura central e tinha como director artístico Alain Oulman, o grande compositor de inúmeros êxitos de Amália Rodrigues, que pouca gente sabe ser grande conhecedor de teatro. Com um repertório mais acessível ao grande público para garantir sucesso de bilheteira, Eunice aceitou um enorme desafio que ia ao encontro do seu maior desejo que era o de representar cada vez melhor: representava um grande papel todas as noites em duas sessões e com uma matinée ao domingo, sem nenhum dia de descanso. Eunice foi notícia por ter um salário recorde: 30 contos mensais. Antes da segunda peça chegar à cena, Alain é preso pela PIDE, acusado de acções contra o regime.

Há várias peças que marcam profundamente a carreira de Eunice. Uma foi “Mãe Coragem”, de Brecht, brilhantemente encenada por João Lourenço. Outra foi “Joana d’Arc”. Outra ainda foi “Fedra”, de Jean Racine, no Teatro Experimental de Cascais, em que pela primeira vez Amélia Rey Colaço sai da sua companhia para contracenar com Eunice. Foi graças a esta peça que se deu o encontro com o poeta António Barahona da Fonseca. Apaixonaram-se arrebatadoramente.

Como já se tinha casado catolicamente, durante a tournée em África, decidiram casar à luz do rito islâmico, em Lourenço Marques. “os muçulmanos compreenderam o nosso desejo de selar essa grande paixão com qualquer coisa de superior. A religião islâmica é muito bela, com uma grande alegria, uma grande leveza.” Adoptaram os nomes de Mina e Muhammad Rashid. Mais tarde abandonou o rito. António não. Tiveram uma filha, Eunice António (a Bara), a sexta descendente de Eunice. “Sempre quis ter um filho do homem que amava, em toda a minha vida; era como uma oferta a ele e a mim.”

Na década de 70 a censura proibia muitas peças de serem apresentadas, e Eunice volta a afastar-se desanimada. É nessa altura que se apresenta com frequência a fazer recitais de poesia que culminam numa série de discos gravados a recitar textos. Voltou obviamente aos palcos, à televisão e ao cinema. Faltou-lhe mais Shakespeare. O regime não deixou. Mas fez tudo, desde o drama à comédia, das operetas aos musicais e às revistas, e às novelas em televisão.

Eunice nunca parou. Eunice não pára. Tem 92 anos e mantém um brilho nos olhos e um amor à vida que a caracterizam. Admira o talento. Bebeu dos mestres, retirando deles o seu melhor e criando o seu estilo ditado pelo domínio do gesto, do olhar, dos silêncios, capaz de reproduzir emoções na mais elevada verdade. “O actor é um fingidor”, e Eunice fingiu visceralmente envolvendo todos quantos a viram em cena. É difícil não nos comovermos com a sua capacidade de representação, de não entrarmos na história e fazer parte dela.

Assisti, a seu convite, aos seus passos seguros na estreia de “Miss Daisy”, no Teatro em Oeiras que foi baptizado com o seu nome, aos seus gestos certeiros, ao seu sentido de humor, ao seu dramatismo profundo.

Generosa e disponível, nunca se esquece do que lhe foi permitido receber pelos seus grandes exemplos, do que Amélia Rey Colaço lhe ensinou, como saber andar no palco com vestidos compridos, do que Riberinho a ajudou e à sua geração, e é humilde ao ponto de ainda hoje acreditar que a estrela maior do espectáculo é o encenador.

Sente que deve o brilho no olhar à sua família, à forma dedicada com que a tratam. Sem ela a sua vida não teria sido o que foi. Mãe dedicada a 6 filhos, avó de 8 netos e bisavó de 4 bisnetos, vive rodeada de amor e amizades eternas.

Em 2012, caiu num sério e grave acidente, durante os ensaios no Teatro Nacional D. Maria II para a reposição de “O Combóio da Madrugada”, de Tenesse Williams, e sofreu fracturas dos dois punhos e uma lesão na cervical. Levantou-se e lutou pela recuperação. Um ano depois batalhou, vencendo, contra um cancro na tiróide, cuja cirurgia lhe roubou uma das suas mais potentes armas de representação: a voz. Corajosamente, pôs-se nas mãos de um dos únicos 3 cirurgiões no mundo que fazem a delicada cirurgia de reposição de um nervo na corda vocal que deixou de funcionar. Com persistência, dedicação e muito esforço, Eunice recuperou a voz, não totalmente, mas o suficiente para voltar a representar. Ainda quer voltar ao teatro. No próximo ano celebrará 93 anos e 80 anos de uma carreira que nunca parou de se enriquecer até hoje. Acredito que ainda nos vai surpreender.

Perdeu a filha Maria em Setembro de 2019, depois de uma luta contra um cancro que a venceu. “Eu não tenho idade para perder um filho.”

Diz que terá herdado do pai o espírito “seja o que Deus quiser”, “de nunca ir para baixo, esse lado de ir para cima e, acima de tudo, amar a vida”.

Mulher apaixonada, exigente e doce, esta é a nossa Eunice.

“O Teatro vai ser eterno.”

Em Maio de 2021 desloquei-me a Pombal para ser testemunha do regresso de Eunice aos palcos para a sua tournée de despedida, com a peça “À Margem do Tempo”, confirmando o que eu já suspeitava. O seu magistral silêncio ecoou novamente nos teatros portugueses, de mãos dadas à sua neta Lídia a quem passou testemunho.

Viu nascer o seu bisneto Amadeo, talvez a sua última grande glória.

Que nos palcos dos céus receba os nossos aplausos.

É eterna, Eunice. Obrigada!