“Sem a relação transatlântica a Europa ficará à mercê da China, um mero “apêndice” da Eurásia” disse um dia o Sec. de Estado Americano (de origem alemã) Henry Kissinger. A chanceler Merkel referiu-se à observação de Kissinger num discurso em janeiro deste ano, dizendo que isso a obrigou a “olhar para o mapa”, “como europeus”, disse ela, “precisamos pensar muito sobre como nos posicionamos”.
Durante décadas, a estratégia de Bruxelas em relação a Pequim foi definida pela frase “Wandel durch Handel”, ou “mudança através do comércio”: convenceu-se que a política autoritária da China se iria transformar num sistema livre, aberto e mais democrático através de laços económicos cada vez mais estreitos. Schröder foi um dos maiores apoiantes da adesão da China à OMC em 2001: as empresas alemãs obtinham lucros sem precedentes que desencorajavam protestos contra os problemas associados a “doing business in China”, como transferências forçadas de tecnologia, uso indevido de propriedade intelectual e barreiras protecionistas ao investimento e ao acesso ao mercado.
Durante a crise de 2008, e com a agitação da zona do euro que se seguiu, os laços da Alemanha e de outros países europeus (em particular Portugal) estreitaram-se com a China e ajudaram a enfrentar a tempestade.
A maioria do público Europeu, muitos líderes políticos e empresariais não compreendem de forma plena a ameaça apresentada pela dependência entretanto criada. Olham para a China como um importante parceiro comercial sem ter em conta que, a China tem um modelo político, económico e de sociedade assente num regime cujos princípios orientadores são muito diferentes dos valores nos quais a UE foi fundada.
A Europa começou há algum tempo a fazer uma (re)avaliação dolorosa do relacionamento com a China, um desafio infinitamente mais difícil pelos laços cada vez mais tensos com os Estados Unidos com a subida de Trump ao poder. Berlim e Bruxelas compartilham muitas das preocupações de Washington com Pequim, desde a falta de reciprocidade nas relações económicas com parceiros comerciais e a disseminação de dívida e influência política através da nova “Rota da Seda”, até ao crescente uso da tecnologia de vigilância.
Mas foi apenas com início da pandemia que a Europa e o mundo Ocidental foi confrontado com o grau de dependência da China em sectores áreas-chave como é o caso da saúde, devido à forma como a economia global se desenvolveu nos últimos 40 anos: não são só as mascaras e os ventiladores, mais de 75% dos ingredientes farmacêuticos ativos da Europa vêm do exterior, principalmente da China; mais de 40% da penicilina usada nos EU é de fabricação chinesa, como é quase 100% do ibuprofeno.
O crescimento económico imparável da China na última geração esvaziou as indústrias domésticas em todo o mundo e impediu que outras nações vizinhas subissem na cadeia de valor. Muitas indústrias estão presas às empresas chinesas como seus únicos ou principais fornecedores.
Assim como o mundo nunca deveria ter sido colocado em risco pelo coronavírus, o Ocidente nunca deveria ter ficado tão economicamente dependente da China. A singularidade da epidemia decorre de conseguir reunir as duas questões aparentemente separadas. Pode ser por isso que Pequim está empenhada em não ser “the one to blame”, não apenas pela “menor diligência” numa fase inicial, mas porque os riscos do sistema que construímos estão agora visíveis para todos: “o coronavírus é um diabolus ex machina que ameaça as bases da interação moderna da China com nações estrangeiras, do turismo ao comércio e do intercâmbio cultural à colaboração científica”.
A China tem a Rússia como aliada, uma grande potência nuclear e uma fonte de matérias-primas, o que complementa muito bem o apetite industrial de Pequim. E o Paquistão permite que a China mantenha a Índia ocupada enquanto concede acesso ao Oceano Índico. Os EUA, por seu lado, têm o Japão, a Coreia, a Índia e a Austrália. E a Europa?
Como sugerem outras competições estratégicas semelhantes, incluindo Atenas-Esparta, Roma-Cartago, Roma-Grécia, Espanha-Inglaterra, Império Britânico-França, Império Britânico — Alemanha, EUA-URSS — estes conflitos são jogos prolongados. Como o xadrez multidimensional (ou o jogo chinês do Go), eles são travados nos domínios militar, económico, cultural, ideológico e até religioso. Os aliados fornecem força económica complementar, poder militar, conhecimento e alcance geográfico que a potência central não tem.
“Estamos na mesma massa terrestre que a China”, observou um diplomata alemão recentemente, apontando para um mapa na parede. “A China tem uma visão. Eles estão a avançar na nossa direção, estendendo a mão de forma firme. Queremos agarrá-la?”.
Custe o que custar a Europa não pode estender a mão em matérias que de alguma forma ameacem as suas fundações enquanto União e comprometam o seu modelo de sociedade, de desenvolvimento económico, social e político.
A Europa tem hoje, mais do que nunca, a responsabilidade de reconsiderar a sua dependência da China bem como reinventar a sua aliança com os Estados Unidos.