Filinto Elísio, aliás, Francisco Manuel do Nascimento, conheceu em vida a glória literária mercê de um extenso rol de publicações, nas quais a sua vasta formação e erudição clássicas, a sua admiração por Horácio e pelos poetas portugueses de Quinhentos ressaltam de forma evidente. Cumulativamente, a sua obra, por méritos linguísticos indiscutíveis, foi também uma espécie de cartilha por onde se aprendia a bem falar e escrever português.
Filinto Elísio já quase não é lido, mas, por ter produzido uma obra muito significativamente orientada para a defesa da língua, guindou o país a parâmetros elevados e interessou figuras como Lamartine ou Ferdinand Denis para o conhecimento da cultura, literatura e língua portuguesas. O seu afastamento compulsivo de Portugal, a recusa em tornar-se num assimilado cultural e uma postura mental que sempre rejeitou o exílio e teimosamente “vivia” no seu país, fizeram com que Francisco Manuel, pela língua que tanto amou, se tornasse um dos mais representativos corifeus da saudade portuguesa. Face ao aggiornamento que atualmente a Europa conhece e à mundialização que os meios tecnológicos permitem, a luta deste poeta surge coberta de uma nova atualidade: a importância da língua e cultura na afirmação de um país.
Gravura de Filinto Elísio, aliás, Francisco Manuel do Nascimento.
Os clássicos greco-latinos e os escritores de Quinhentos – Camões, Barros, Ferreira, Lucena, etc. – foram por ele investidos como fiéis depositários da pureza da língua portuguesa, cujo prevalecimento como emblema nacional, após a sua emancipação e sobrevivência ao reinado dos Filipes, se encontrava ameaçado por uma nova vaga: o ciclo da francesia. Acusado pelos críticos contemporâneos de usar nos seus textos “drogas de antigualha”, após o afastamento de Portugal, que seria definitivo, o poeta cristalizou a sua luta de forma perene em prol de uma língua pura, sem mácula de qualquer bastardia.
Cabe aqui fazer um reparo: o que começou por ser uma atitude de simples defesa da língua assumiu uma expressão mais lata com a saída da pátria-mãe: à pureza do falar português, Filinto associou a saudade da própria língua, que ouvia falar cada vez mais raramente e da qual circunstâncias do destino lhe foram retirando os suportes escritos de sua propriedade, e também a saudade de um país, de uma pátria, tomada metonimicamente como língua.
Num processo que encontra paralelismo em Camões, que aliás o próprio não enjeita, Filinto viveu e sentiu, no exílio, uma confusão de Babel e ansiava reiteradamente por uma Sião – pátria e língua – vivida nos seus primeiros 44 anos de vida. A luta pela verdadeira língua portuguesa consumou-se por um “verdadeiro furor vernáculo”, como afirmou Carlos Olavo, e a sua vivência em terra estranha, de uma pátria saudosa, vai ser expressão desse paraíso de heróis e bem-aventurados, a Elísia da qual tomou o nome.
No exílio, o autor elegeu como forma de compensar a ausência física do solo pátrio a recordação e consequente registo escrito da lembrança do português genuíno ouvido na sua infância às gentes do povo. Simultaneamente, usa esta recordação como arma de arremesso contra os francesismos invasores de uma língua que, em tempos, conquistou o mundo. Se lhe faltavam palavras, lá estavam os clássicos latinos ou os escritores de Quinhentos nos quais encontrava, respetivamente, quer o vocábulo necessário, quer o reavivar de termos e expressões entretanto caídas em desuso. Não se infira daqui que Filinto entendia a língua como algo imutável; ao contrário, já que a criação de termos novos também fazia parte da sua estratégia de defesa da língua; simplesmente o latim era o laboratório de onde surgiam os neologismos e, numa impossibilidade erudita, usava como elemento norteador a autoridade linguística do povo. Era mais uma forma de enriquecer a língua que, como os outros, lhe trazia vitalidade e prestígio.
O poeta, desterrado da pátria, sente-lhe a ausência, porque cada vez mais raramente a língua portuguesa lhe soa aos ouvidos e os contactos com portugueses se vão tornando menos frequentes – o exílio tornava-se demasiado longo, apesar de, como afirmou Almeida Garrett, estar lá “com os olhos postos na pátria” … As muitas traduções que fez talvez fossem (para além das óbvias necessidades de ordem económica) uma forma de presentificar essa língua, de a “ouvir falar”, de a ler, escrevendo-a. Nunca, como se apontou, Francisco Manuel perdera de vista, no exílio, a terra onde nascera e onde sempre quis viver. O entusiasmo, quase religioso, com que se entregou à restauração e enriquecimento da língua portuguesa indicia a omnipresença da pátria, as saudades que o dilaceravam e as, cada vez menos ténues, esperanças de regresso. A paixão de Filinto pela língua materna confundia-se com o seu amor por Portugal e a luta movida contra os galicismos (“estrangeirismos desnecessários e absurdos”, segundo Lopes de Mendonça) é prova definitiva disso.
Capa de um dos muitos livros de Filinto Elísio
Mas de que pátria tinha Filinto saudades? Que pátria lhe merecia labor em prol da língua? Conta Carlos Olavo que, no exílio, o espírito de Filinto se entranhara com os problemas da liberdade. Os acontecimentos por si vividos em França alimentaram-lhe a ilusão de ver transpostos para a sua pátria os bons princípios da Revolução, com a liberdade à cabeça. Filinto desejava “Ver na Pátria, que maus hoje assoberbam / Com ignorante orgulho / Suceder a Justiça à Tirania”. Saudades da pátria sim, mas de uma pátria onde pudesse viver em liberdade, deleite de que apenas pôde gozar em terra estranha. Por isso, o discurso de Filinto surge recheado de termos que remetem, incontornavelmente, para um ambiente de liberdade, e será o uso deste vocabulário que fará dele um denunciador constante do fanatismo, da opressão, da tirania em que o país vivia. A sua poesia será veículo de denúncia dessa Elísia ultrajada para a qual, politicamente, propunha novos rumos.
Os quase quarenta e um anos de exílio vividos por Francisco Manuel do Nascimento, na sua maioria em situação de miséria, fome e humilhação, foram também um período temporal de expressão de uma saudade da pátria manifestada, em especial, por uma luta contínua em prol da língua portuguesa, à qual a ausência de meios, longe de afrouxar, antes estimulou a coragem de um lutador que merece encómios pela exemplar lusitanidade de todo o conjunto da sua obra literária, traduções incluídas. Escrever foi para Filinto, nos tempos de maior dificuldade, um lenitivo, uma forma de sustento, um processo de exteriorização da saudade. Empurrado para fora da pátria, escrever na língua materna foi a ferramenta que encontrou para materializar o país que o viu nascer em tudo o que ele representava. Defender a língua materna das marcas de bastardia era defender a pátria: “Amor da Pátria, e desejos de que se não escureça inteiramente a glória, que nos granjearam entre as nações estranhas os bons Autores do nosso bom século literário, e não outro algum motivo, me incitaram a destruir (se me é possível) com as armas do ridículo, a seita do francesismo, que tanto desonra a clássica linguagem portuguesa. (…) amantes do bom Camões (…) derrotai-me esse exército ingrato, que se rebela contra a Pátria, e contra os que com as suas doutas penas a ilustraram”.
Se Fernando Pessoa pôde dizer “a minha pátria é a língua portuguesa”, Francisco Manuel do Nascimento, mais de um século antes, fez da língua uma pátria sempre desejada, porque expressão viva de uma saudade. Talvez melhor que ninguém Filinto tenha vivido a pátria (e na pátria) pelo uso da língua nacional.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência Nacional.]