Hong Kong é uma ex-colónia britânica que passou para a República Popular da China sob o princípio “um país, dois sistemas”, tornando-se, em 1997, numa Região Especial Administrativa da China.
Se falarmos com qualquer Hongkonger, a primeira coisa que nos vão dizer é que não são chineses e nunca irão ser. Hong Kong tem a sua própria cultura, valores, língua e tradições.
Foi através de um acordo entre o Reino Unido e a China que este pequeno território com mais de sete milhões de habitantes passou para a soberania chinesa e foi definido que continuaria a ter o seu próprio governo, as suas leis, economia livre e capitalista, as suas relações externas, que continuara independente do sistema continental chinês.
Foi estabelecido que este novo regime, baseado no princípio fundamental “um país, dois sistemas”, vigoraria durante 50 anos, durante os quais Hong Kong manteria a sua autonomia, de forma a existir uma transição suave desta Região Especial para a China. Mas nunca foi definido o que iria acontecer depois de 2047.
Estamos perante um acordo que põe em causa gerações de hongkongers, que não tiveram qualquer voto sobre o seu destino. Um acordo entre terceiros que não respeitou os valores e a cultura de um povo.
E, portanto, a estabilidade esboroou-se. Inicialmente, Hong Kong era a mais rica das regiões pertencentes à China. E, obviamente, a China quis recuperar o controlo sobre este território. Contudo, durante as últimas décadas, a China observou um crescimento exponencial e as cidades continentais têm hoje um PIB quase igual ao de Hong Kong. O crescimento chinês trouxe um problema para Hong Kong: o fim da sua supremacia sobre a China, retirando-lhe poder negocial.
Nos últimos anos, a China deixou de tentar controlar Hong Kong de forma indireta, por meio de governos apoiados pela China, adoptando uma estratégia mais direta. Em abril de 2019, surge uma proposta de lei de extradição, que permitia aos suspeitos em processo penal serem extraditados, em determinadas circunstâncias, para o continente chinês. Uma legislação que traria enormes consequências para a justiça de Hong Kong: julgamentos parciais, extradições políticas, ameaças. E iria aumentar a influência que a China exerce sobre Hong Kong.
Milhares de pessoas ocuparam então as ruas de Hong Kong, em protestos inicialmente pacíficos, que acabaram por escalar com a resposta policial, num cenário semelhante ao de 2014, quando ficou conhecida a “Umbrella Revolution”. O Governo escondeu-se por detrás da polícia. Inicialmente, os manifestantes apenas queriam a retirada da lei de extradição, mas com o passar dos meses e com a violência policial, de uma exigência passaram a cinco. Em setembro de 2019, Carrie Lam, chefe do governo de Hong Kong, anunciou a retirada da lei da extradição, mas “too little, too late”. Os manifestantes exigiam cinco condições para abandonar as ruas: a retirada da lei de extradição, que os protestos não fossem caracterizados como motins, uma amnistia para os manifestantes presos, a abertura de um inquérito independente à brutalidade policial e a implementação de um sufrágio universal.
Com a situação pandémica atual, a força dos protestos diminuiu. E a China usou esta situação como uma nova oportunidade. Em maio de 2020, as autoridades chinesas anunciaram a implementação em Hong Kong da Lei de Segurança Nacional. Este anúncio da China aumentou o sentimento anti-Beijing e os protestos na região especial.
Ironicamente, a Lei da Segurança Nacional acabou por ser aprovada pelo governo central em 20 de junho de 2020, na véspera do 23º aniversário da passagem da soberania de Hong Kong do Reino Unido para a China. A lei foi promulgada ao abrigo da “Hong Kong Basic Law”, a Constituição de Hong Kong. Por um lado, uns culpam a falta de capacidade do governo de lidar com as exigências dos manifestantes, por outro, outros censuram o conselho legislativo, que durante 23 anos nunca logrou legislar uma lei local de segurança interna. Lacuna latente.
À data, ninguém sabia bem quais as consequências desta nova lei. Mas volvidos sete meses podemos tirar conclusões: a lei é demasiado vaga, aumentando o leque de crimes suscetíveis de autorizar a detenção legal dos manifestantes; os livros escolares foram “actualizados” de acordo com a legislação e o ensino foi alinhado com a ideologia do Partido Comunista Chinês. Note-se, que mais de 50 ativistas democratas foram presos por suspeitas de violarem a Lei de Segurança Interna e é exercida grande pressão sobre os juízes para aplicarem penas mais pesadas aos ativistas. Entre eles, Joshua Wong, que começou a servir uma pena de mais de um ano de prisão pela sua presença nos protestos de 2019 e que acabou por sair do partido democrata “Demosisto” aquando da implementação da nova Lei de Segurança.
Numa altura do ano em que Hong Kong está a encetar as comemorações do Novo Ano Chinês, a região está de luto e em luta, não só pelas vidas perdidas pela pandemia, mas também pelo sentimento de frustração e impotência perante a perda de direitos e liberdades ao abrigo da nova Lei de Segurança Nacional. O resultado é uma porta aberta ao Governo Central Chinês para intervir em todos os aspetos da autonomia de Hong Kong.
A China pretende antecipar 2047 para 2021. Quanto tempo mais durará o princípio “um país, dois sistemas”?